Sempre quis escavar a terra e descobrir os segredos que o tempo enterrou», diz o Dr. Leidner, um ilustre arqueólogo, ao detetive Hercule Poirot. O diálogo, que surge no romance Crime na Mesopotâmia, de Agatha Christie, decorre à beira de uma escavação arqueológica no Iraque. Habitualmente, os segredos mais bem guardados – sejam eles túmulos, bunkers governamentais, vestígios de civilizações antigas, instalações atómicas ou cofres de bancos – encontram-se enterrados no subsolo.
Mas no caso do Metro de Lisboa passa-se exatamente o oposto. As galerias subterrâneas – «lá em baixo», como diz quem já lá trabalhou – fazem parte do quotidiano de centenas de milhares de lisboetas. As zonas mais reservadas, a que poucos têm acesso, essas estão à superfície.
E há mesmo um certo secretismo a envolver toda a atividade de bastidores que mantém a rede de Metro bem oleada.
Os funcionários que nos orientam na visita têm de permanecer no anonimato e nem todos os recantos podem ser captados pela lente do fotógrafo.
Um desses espaços reservados de olhares mais indiscretos é o Parque de Material e Oficinas da Pontinha, PMO III, como é conhecido por quem lá trabalha, um gigantesco pavilhão onde ressoam permanentemente ruídos de maquinaria em funcionamento, de metais a chiar e de avisos sonoros. «Estamos na coração da manutenção do melhor de transporte de Lisboa e do país», anuncia o nosso anfitrião. Embora não faltem alguns dos traços distintivos habituais nas oficinas – como o tradicional poster do Benfica colado na parede –, tudo aqui se encontra surpreendentemente limpo e arrumado. Ou melhor, quase tudo: «Não fotografe essa carruagem, que ainda precisa de ser limpa».
80 Quilos ficam pelo caminho
Quando foi inaugurado em 1999, o PMO III já funcionava há mais de um ano, desde dezembro de 1997. Em regra, das 111 carruagens da rede do Metro encontram-se aqui cerca de 10% para fazer manutenção. A duração dos trabalhos varia consoante se é uma revisão de rotina, uma pintura ou uma intervenção mais profunda, com «mudança de órgãos».
Numa composição regular, duas das três carruagens, a da frente e a de trás, são motoras, enquanto a do meio não passa de um «caixote». O que permite às carruagens deslocarem-se sobre a linha são os ‘botis’, o termo técnico que designa o conjunto dos eixos e rodas.
No uso diário, o desgaste nas rodas não acontece de maneira completamente uniforme. Com uma travagem mais forte, a fricção do metal da roda com o metal do carril faz com que o perfil daquela fique plano – uma irregularidade equivalente ao que num automóvel seria um pneu furado. Por isso, de tempos a tempos as rodas têm de ser afinadas e calibradas, de modo a recuperarem a forma de um círculo perfeito.
Também como os pneus, as rodas têm de ser substituídas periodicamente. Só para se ter uma noção do desgaste, uma roda que se encontra em fim de vida, pronta a ser vendida para sucata, pesa 200 quilos; uma nova pesa 280. Ou seja, 80 quilos perdem-se literalmente pelo caminho.
Há muito mais para consertar, como circuitos elétricos ou sistemas de ventilação. Mas os arranjos mais frequentes dizem respeito aos fechos das portas, forçados por passageiros de última hora que não querem ficar em terra, e aos bancos, danificados por atos de vandalismo.
Já quando é preciso verificar as entranhas de uma carruagem, esta é levantada por um elevador hidráulico, que a desloca uma razão de cerca de dois metros por hora. Esta velocidade estonteante tem a sua razão de ser: mesmo sem passageiros, a carruagem pesa nada menos do que 30 toneladas e é vital que tudo se mova exatamente ao mesmo tempo, sem quaisquer variações, que poderiam provocar danos irremediáveis no material.
Três milhões de quilómetros – E ainda anda
No enorme pavilhão encontram-se preservadas duas das primeiras carruagens do Metro de Lisboa. Começaram a circular no final da década de 50 – o Metro foi inaugurado a 29 de dezembro de 1959 e abriu ao público no dia seguinte – e exibem as cores originais: a metade inferior pintada de encarnado e a superior de beije. «Vieram de barco da Alemanha para cá e foram descarregadas em Sete Rios», explicam-nos. «Fizeram três milhões de quilómetros até que em 2000 deixaram de estar ao serviço do público». Criteriosamente recuperada, a A-1 «hoje ainda sai, quando temos visitas importantes».
No interior respira-se o ar de antigamente. «Foi restaurada tal e qual como era, à traça original». Dos estofos dos bancos em napa às pegas em cabedal e alumínio, tudo era feito nas oficinas do Metro.
Estas primeiras carruagens andavam a uma velocidade máxima de 60 km/h. Curiosamente, em mais de meio século esse limite não se alterou. Embora por vezes a sensação de velocidade seja maior – sobretudo nas curvas – as carruagens atuais não excedem os 60 km/h. O processo está todo automatizado: o maquinista «põe tração, o comboio avança até ao patamar de velocidade, e a partir daí é uma espécie de cruise control».
A travagem, essa sim, é manual. E pode fazer-se de três formas. «A primeira travagem faz-se com o motor e na fase final entra o freio pneumático. Se for uma travagem de emergência entra o freio eletromagnético, que no fundo é um eletroíman que agarra o carril».
Tirando a travagem e a abertura e encerramento de portas, o maquinista tem pouca margem de manobra. Por exemplo, «se não vir o sinal vermelho, o comboio é travado automaticamente». E o mesmo acontece se estiver a circular em velocidade excessiva.
Eletrocutados e chamuscados
Estamos agora no Posto de Comando Centralizado (PCC), a sala a partir de onde é feita a gestão, vigilância e supervisão de toda a rede do Metro.
A localização deste centro nevrálgico não pode ser divulgada. Ainda assim, mesmo que o edifício do PCC fosse destruído por um ataque terrorista, por hipótese, «o Metro continuava a funcionar normalmente», garantem-nos. «A única coisa que fazemos é supervisão, não há nada de segurança que dependa daqui».
Manobrar as carruagens a partir do posto de gestão de material circulante, por exemplo, para provocar uma colisão também não seria possível. «O sistema não aceita. Todos os mecanismos utilizados têm um nível de certificação equivalente aos aviões. São Safety Integrity Level 4 – isto quer dizer que falham uma vez em não sei quantos milhões de operações e, se falharem, falham sempre no sentido da segurança».
«A única coisa que poderia fazer o sistema ir abaixo é uma falha de alimentação generalizada». Mesmo assim, «temos baterias que garantem o funcionamento durante muito tempo e se houver uma falha de alimentação temos hipótese de reorganizar e realimentar em tempo útil de maneira a manter os sistemas todos a funcionar», uma vez que o Metro dispõe de uma rede elétrica própria que gere de acordo com as suas necessidades.
Ao longo das galerias subterrâneas, a corrente elétrica segue num terceiro carril, junto à linha, o que obriga a cuidados de segurança redobrados. Os avisos de ‘Alta Tensão. Perigo de Morte’ são para levar a sério. Em princípio, qualquer ser vivo que ali toque fica eletrocutado. Com uma exceção:«Temos uma família de gatos na estação de Picoas, que ajuda a controlar as pragas de ratos, e às vezes aparecem com o dorso chamuscado de se encostarem à linha». Não é por acaso que se diz que os gatos têm sete vidas…
Arriscar a vida para aparecer no Youtube
Uma das principais preocupações, para quem zela pela segurança do Metro, é o risco de incêndio. «A qualidade dos materiais tem evoluído de forma que hoje em dia o inimigo é o fumo, não é o fogo». Recentemente foram feitos ensaios com os bancos, que são feitos num plástico que simplesmente não arde. «Ensaiámos com uma carga incandescente e quando, ao fim de alguns minutos, a retirámos a chama apagou-se. O banco estava destruído mas não propagou o incêndio».
Os cabos elétricos também derretem a alta temperatura, mas não fazem chama. «Tentámos ainda reduzir a emissão de fumos tóxicos para não afetar as pessoas. E num procedimento de desenfumagem tiramos o fumo pelo lado contrário daquele por onde vamos evacuar as pessoas». Para já, isso apenas aconteceu em ensaios, uma vez que nunca se registou um incêndio no Metro.
Outra preocupação dos responsáveis do Metro – esta menos ‘teórica’ – são os graffiters. «Temos escalas de deteção de movimento e rondas que passam por um conjunto de pontos – portas, tampas e grelhas espalhadas pela cidade» que dão acesso aos túneis. Executar um graffiti no Metro pode ser uma proeza quase tão exigente como assaltar um banco: os autores das pinturas têm de partir correntes e cadeados, e «chegam a descer pelos poços de ventilação em rapel, de alturas de mais de 30 metros». «Por isso é que um dos maiorais dizia que o Metro não é para todos», comenta outro responsável. «Há redes internacionais, ainda há dias apanhámos um espanhol na estação do Parque. E uma das principais marcas de tinta tem um site em que eles às vezes dão entrevistas. Arriscam a vida para fazer um desenho, tirar uma fotografia e aparecer nos tais blogues ou no YouTube».
Apesar dos cuidados de vigilância, alguns comboios não escapam aos sprays dos artistas de rua. «Temos uma política em que não circulamos com comboios grafitados. Caso aconteça, o comboio é recolhido para fazer a limpeza na oficina».
Já quanto aos rabiscos nos vidros, não há nada a fazer. «Eles pegam num marcador, substituem o feltro por um ácido que se usa para fazer o vidro fosco e aplicam, mas a ação daquilo é mais lenta, no imediato não se vê. Vai corroendo o vidro e quando nos apercebemos já está gravado. Fizemos uns ensaios para polir o vidro mas demorava demasiado tempo».
Um lémure à hora de ponta
No computador da área de controlo de tráfego, ao lado de um sistema de rádio SIRESP que permite entrar em contacto com os maquinistas, o ecrã mostra se os comboios estão a cumprir o horário. «O software dá as partidas automaticamente ao maquinista, e faz uma monitorização do desvio do comboio em relação ao horário», explicam-nos. «Temos aqui comboios adiantados dois segundos, nove segundos, adiantado trinta segundos, atrasado 39 segundos…».
Não havendo engarrafamentos como nas estradas, o que pode provocar atrasos na rede do Metro?
Em primeiro lugar, as saídas e entradas de passageiros – e em particular os retardatários que forçam as portas. Em segundo lugar, avarias, que normalmente podem ser resolvidas com um «desliga, liga». Em terceiro lugar, «alguém que se sinta mal» ou mesmo um suicídio na linha, que pode obrigar os passageiros a descer da carruagem e a caminhar na galeria até à estação mais próxima. «Aí não há nada a fazer. Sabemos que vai demorar. Fazer a evacuação em galeria é tirar pessoas uma a uma por uma escadinha para a via. O tempo que demora e o impacto que tem nos clientes é muito grande». Por isso é evitado a todo o custo. Ainda assim, só acontece raramente.
Mas há fenómenos ainda mais raros. Como o caso de um lémure, um simpático primata de olhos claros e esbugalhados, que em 2010 fugiu do Jardim Zoológico e entrou nos túneis do Metro. Para garantir a segurança do animal e da equipa do Zoo, a circulação de comboios teve de ser interrompida. Cerca de uma hora depois, no pico da hora de ponta da manhã, a linha já estava de novo operacional. Tudo acabou bem – menos para o fugitivo, que teve de interromper o seu passeio pelos subterrâneos de Lisboa e de regressar ao cativeiro sob escolta.