Tom Wolfe. O homem que mais fez das palavras

O lendário jornalista e romancista norte-americano morreu  num hospital em Manhattan, aos 88 anos. Fundador do Novo Jornalismo, foi para a América, e o mundo, bem mais do que isso: um dos grandes intérpretes do seu tempo

Para lá da revolução da verdade sobre os factos que trouxe o (seu) Novo Jornalismo, de Tom Wolfe seguro será dizer-se que foi um dos grandes intérpretes do seu tempo. Ao colar com a sua prosa vívida e eletrizante as diferentes partes de uma América que acabou estilhaçada, hoje a braços com uma guerra civil cultural, foi um dos maiores leitores das grandes convulsões que sacudiram os Estados Unidos do fim da II Guerra aos nossos dias. O lendário jornalista e romancista norte-americano Tom Wolfe morreu ontem, aos 88 anos. 

A notícia foi avançada pelo “Guardian”: Tom Wolfe, o ensaísta, jornalista e autor de obras de culto que cativaram gerações de leitores como “A Fogueira das Vaidades” (1987), esse grande sucesso comercial adaptado ao cinema por Brian de Palma, e “The Electric Kool-Aid Acid Test”, morreu na segunda-feira aos 88 anos. Confirmou à imprensa internacional sua agente, Lynn Nesbit, que Wolfe morreu num hospital em Manhattan, onde tinha sido internado na sequência de uma infeção.

Uma das figuras centrais do movimento que ficou conhecido como New Journalism (ou jornalismo literário), Wolfe colhe até créditos ao ter sido um dos responsáveis por fixar este termo, depois de uma coleção de ensaios que publicou em 1973 com esse título ao lado de nomes como Truman Capote, Joan Didion e Hunter S. Thompson.

Trata-se de uma abordagem jornalística em que o repórter não encobre o seu rasto, e chega a assumir algum protagonismo no relato, colocando-se em cena como Tom Wolfe fazia com especial tenacidade e servindo-se de elementos típicos da escrita de ficção para capturar a atenção do leitor e enredá-lo na trama que urdia para ilustrar uma dada realidade. Técnicas que criaram um híbrido que trouxe para as páginas dos jornais um tipo de penetração da realidade que levou muitos romancistas a suporem que a ficção pudesse tornar-se um género obsoleto, uma vez que agora se juntava o talento para a observação do grande escritor com a endiabrada imaginação da realidade para criar intrigas impensáveis – que, de resto, não se guiavam por preocupações de verosimilhança. Eram reais.

Numa carreira a muitos títulos inovadora, a realidade teve nele um realizador que sabia dar ênfase a ângulos invulgares, e foi pioneiro também naquilo a que chamava “reportagem pela saturação” (”saturation reporting”) em que o jornalista acompanhava o sujeito ao longo de um período prolongado de tempo de forma a traçar um perfil caçando aquelas impressões que surgem quando a figura baixa as defesas e mostra quem é no seu ambiente. Como o próprio explicou, “para o conseguir tem de se passar longos períodos com as pessoas sobre as quais se está a escrever… tempo suficiente para se garantir que se está lá na altura em que ocorrem o tipo de situações reveladoras nas suas vidas”.

 

Um certo neo-pretensiosismo

Nascido em 1930, no estado da Virginia, Tom Wolfe mudou-se para Nova Iorque quando, em 1962, se juntou à redação do “New York Herald Tribune”. Filho de uma arquiteta paisagista e de um engenheiro agrónomo, descobriria na reportagem a sua vocação enquanto estava ainda na universidade, que deixou para se tornar repórter no “Springfield Union”, no Massachussetts. Foi aí que começou a chamar a atenção, recebendo o convite do Herald e adotando a Big Apple como casa. Ali conheceu a mulher, Sheila, com quem teve dois filhos.

Com um excecional faro para histórias picantes, personagens excessivas e figurões em busca do seu quinhão do sonho americano, Wolfe aliava ao estilo tantas vezes satírico dos seus ensaios e reportagens, um peculiar estilo na forma de vestir. À semelhança de Gay Talese, outro dos nomes maiores do New Journalism, era reconhecido pelos fatos de três peças, brancos de cima a abaixo. Gostava de causar sensação, e mantinha a elegância, mas sem abdicar de deixar uma impressão indelével. Conta o “New York Times” que era visto muitas vezes a passear na Madison Avenue com um ar entre o jovial e o viperino. Certa vez, ao ser instado a descrever o seu estilo provou o seu génio auto-irónico ao batizá-lo de “neo-pretensioso”.

Se a humildade não estava entre as virtudes que mais prezava, não precisou de reivindicar a sua importância uma vez que o talento da sua prosa era titilante, infeccioso, capaz de aliar a notação incisiva ao género de “pirotecnia verbal” que deliciava os leitores. Como sublinha o “New York Times”, a sua escrita traçava com algumas penadas uma caricatura vivaz de quem lhe despertasse curiosidade, e além da pontaria com que metia nos seus textos a colorida balbúrdia da realidade, conseguia captar como Charles Dickens aqueles padrões de voz, os sotaques ou a pronúncia que indicam tanto sobre personagens numa cultura que vive de generosos cruzamentos e miscigenações. Assim, trouxe para a reportagem o puxão viciante da literatura folhetinesca, com um uso vibrante dos coloquialismos, matizando a sua frase de uma série de sinais que até visualmente espicaçavam o leitor.

O diário norte-americano caracteriza como pop essa qualidade da linguagem que Wolfe usava, falando ainda numa pontuação explosiva. E recorre às palavras de Joseph Epstein que, num ensaio para a revista “The New Republic”, disse que no que toca à criação de um estilo seguro e afinando a exuberância, ele não tem rival no Mundo Ocidental. “O estilo da sua prosa era normalmente o de uma caçadeira barroca, às vezes aproximando-se do rococó de uma metralhadora, como acontece no seu artigo sobre Las Vegas que arranca com a repetição da palavra ‘hérnia’ 57 vezes.”

No seu obituário, o “New York Times” cita ainda William F. Buckley Jr., que num ensaio na “National Review”, escusou-se a emular a qualidade de Wolfe ao louvá-la: “É provavelmente o mais habilidoso escritor da América – e o que quero dizer é que consegue fazer mais com as palavras do que qualquer outra pessoa.”

 

Um Fitzgerald não trucidado

 

Wolfe cimentou a sua popularidade depois do sucesso do primeiro volume que reunia os seus ensaios (”The Kandy-Kolored Tangerine-Flake Streamline Baby”, publicado em 1965), aplicando a sua mestria ao buscar um twist na forma como enfrentava a cultura popular, a política e, em geral, o estilo de vida americano. Como um Fitzgerald que não deixou que o seu talento fosse trucidado pelo desmazelo de uma vida vivida ao limite, a sua personagem-tipo era as diversas encarnações de Gatsby, e Wolfe foi seguindo o trilho do dinheiro e da forma como as grandes fortunas se constroem de forma a perceber como a economia estava a moldar aquela sociedade a partir do fim da II Guerra Mundial.

O seu primeiro bestseller foi “The Electric Kool-Aid Acid Test”, por muitos considerado o relato definitivo sobre as origens e o crescimento do movimento hippie, e este livro projetou-o para o centro da arena pública, numa altura em que boa parte da América (como sempre, como hoje) se mostrava perplexa com um qualquer espetáculo de insurreição no seu seio, procurando-o por algo que a pudesse orientar em relação a essa nova realidade. Wolfe passou assim a ser encarado como uma autoridade em psicadélicos. Mas, ao contrário de Hunter S. Thompson, soube observar sem nunca se misturar nem perder o pé. Numa entrevista em 2008, disse ao “Observer” que nunca tinha sequer experimentado LSD. Isto apesar de ter ouvido da boca dos dealers mais encantadores e que, então, tinham até uma aura de profetas, coisas maravilhosas sobre aquela droga: “Ainda considerei a hipótese de experimentá-la durante uns bons seis segundos”, disse.

Além desta capacidade de se submergir sem se deixar arrastar, Wolfe também nunca virava costas a uma boa zaragata intelectual. Polemista consumado, por várias vezes reagiu de forma tempestuosa aos ataques dos críticos literários – entre eles, Mailer, Updike, John Irving ou Noam Chomsky. Em 2001, lembra o “Guardian”, num ensaio com o título “The Three Stooges” (”Os Três Estarolas”), ajustou contas com Mailer, Updike e Irving, escrevendo: “Deve encanitá-los um tanto que toda a gente – incluindo eles próprios – esteja a falar sobre mim, e ninguém esteja a falar sobre eles.”