O leitor certamente há-de ter já dado por si a perguntar-se que raio leva a que tantos clássicos surjam fulminados em português. Autores sobre os quais ouvimos maravilhas, mas depois damos com eles e parecem um tanto insossos: um caldo que, de tão requentado, traz até aquele ranço que alguns talvez suponham que seja o gosto que a passagem do tempo deixa nos textos. E porque se diz que o paladar se educa, não falta por aí quem fique de castigo numa dieta rígida, até amar o pastelão. Há mesmo quem aprecie na garrafa de vinho aquele depósito que fica no fundo. Se falamos de cerveja, o consenso foge menos. Dizemos que está choca, que sabe a mijo. Sinal de que lhe falta aquela frescura, morreu. Ora, entre nós há muita tradução, e particularmente de poesia, que não dá coice nenhum: sabe a mijo. E muitas vezes é de frade.
O que não falta são os tradutores muito pios, os estudiosos que tudo sabem; dá a ideia de que encarnaram o espírito de uma lei. Cheios de método, são os evangélicos da coisa. Partindo como aprendizes, logo os vemos pregando, dando sermões, falando sob procuração. E a pureza do sentido faz deles cínicos desta arte. Desdenham aqueles que vão misturando, bochechando o verso, dizendo-o alto a ver se fora da boca as asas cercam a lâmpada. É a sedução do texto o que faz a preferência destes outros, recriando-o sem abdicar da graciosidade de pontuais desvios, isto em nome do sentido de surpresa e novidade com que a poesia causa vertigens no idioma. É uma abordagem que recompensa o que inevitavelmente se perde na tradução, sem fugir ao espírito do original, mas produzindo na língua de chegada um arrebatamento inaudito. É esse fôlego que sai debaixo do eco da outra língua, e o esporeia até um limite que esta abriu ao tentar o impossível.
Aqueles que, ao invés de um acto de contrabando, se dedicam apenas a esboçar um vago contorno do original, não se ocupam com mais do que artes de restauro. E assim é natural que sobressaiam os tradutores explicadores. O texto torna-se um obstáculo e eles andam ali à volta. Em vez de safarem o verso, enchem-no de muletas, notas de pé de página, as restituições e infindas indicações sobre o contexto. Já o texto propriamente dito não descola. Serve uma mera sombra no chão seguindo o voo alto do texto original. Se não o perde de vista, também nunca ganha crédito sobre ele, e raramente o apanha na curva. Vai acumulando juros, e muitas vezes dá a sensação de que não passa de um dicionário articulado que serve ao leitor no escuro para apalpar, ao menos, essas voluptuosas formas.
E isto vem a propósito da inigualável antologia de William Wordsworth que acaba de chegar às livrarias. No que toca a aparato crítico, só traz mesmo o essencial. Nada de asteriscos, números ou outra sinalética a rasteirar o leitor, lembrando que tem de ir investigar noutra parte o alcance do verso ou corre o risco de perder todos os matizes do quadro. O poeta que traduziu e nos apresenta este volume só não prescindiu de uma selecção de observações que Wordsworth quis, ele mesmo, incluir à laia de comentário aos poemas. Daniel Jonas não vai além do estritamente necessário, e corta com aquele excesso de escrúpulo que tantas vezes submerge o leitor em desgastantes precisões.
Onde Jonas prova estar muitos furos acima desse tradutor de joelhos que não sabe quando é chegada a hora de deixar a bagagem pelo caminho, preferindo a intoxicação pelo bafio da abordagem académica àquela que realmente garante a persistência de uma obra, é no modo como se engalfinha com os ritmos, anda à bulha com o original, dá e leva, mostrando os dentes com que se bate a língua portuguesa, e resiste assim a essa derrota antecipada que se tornou a marca dos humílimos tradutores que logo renunciam ao melhor efeito da tradução, frustrando uma arte que tem sido decisiva para o curso da poesia como um fluxo transnacional.
Como Jonas referiu numa entrevista ao Sol: “O poeta é simultaneamente um tradutor, no sentido em que traduz umas imprecisas alavancagens do espírito e as corrige por escrito, para a língua do arquivo. A poesia é (como, de resto, a fala) a tradução do espírito. Porventura a tradução da música do espírito. A melhor tradução do espírito ganha.”
Não se trata apenas de o tradutor assumir a coautoria dos poemas que nos dá a ler. Neste caso, pode falar-se de um esforço mediúnico, com o tradutor a encostar o espelho do seu idioma para este ser embaciado pela respiração da outra. Mas, mesmo assim, ainda vai por cima escrever ele os versos, mudá-los em português (essa inflexão que Herberto Helder tão exemplarmente defendeu), e o que consegue desde logo é não vir com justificações nem desculpas, mas ser leal às “alavancagens do espírito”, recriando os poemas. E, para isso, opta por um modelo de simetria sem aquele peso de quem se autorecrimina por não poder levar tudo. E deste modo, em oposição às duras penas do tradutor como copista, temos aqui um monge infernal que se atira ao texto como quem fuma daquele lado e expele paisagens de fumo deste.
E o que se nota é que, entre uma língua reconhecidamente mais plástica e rítmica, Jonas optou geralmente por um verso mais curto, estugando o passo e resgatando o essencial, dando-nos a ler um Wordsworth fresco e cheio de ímpeto. Para isso, segurou a clareza e a vivacidade das suas descrições, fez jus à intensa seriedade de alguém que disse de si mesmo: “Quero ser encarado como um Professor ou não ser tido em conta de todo”.
Se as suas lições são preservadas, Jonas acautela sempre para que essa autoridade não se confunda com a do académico. É, antes, o tipo de confiança que, segundo John Ruskin, Wordsworth cativava ao mostrar-se “um guia em todas as coisas”. Os versos ficam, por isso, sempre a uma distância seguríssima de um tom pomposo ou moralista. E isto não impede que se perceba bem porque os grandes espíritos do período vitoriano tenham homenageado este poeta como o “doutor do espírito”.
Leslie Stephen disse que ele “era para mim o único capaz de consolar-nos”. E John Stuart Mill, na sua “Autobiografia”, tece-lhe o maior dos louvores ao creditar a leitura dos seus versos como tendo-o salvo de um colapso nervoso: “O que fez dos poemas de Wordsworth uma cura para o meu estado de espírito foi eles expressarem, não a mera beleza exterior, mas esses estados interiores, e os pensamentos coloridos por sensações, sempre contendo a excitação da beleza. Estes pareciam ser a própria nascente dos sentimentos que eu há tanto buscava.”
É importante destacar – como faz Adam Kirsch num ensaio que dedica ao poeta na “The New Yorker” – que o acontecimento central na vida de Wordsworth, e sem o qual a sua poesia não pode ser compreendida, foi a Revolução Francesa. Tinha 19 anos quando a Bastilha foi tomada, e no ano seguinte fez a viagem pela França e pelos Alpes onde, pela primeira vez, foi exposto aos ideais românticos e à esperança de rejuvenescimento que a Revolução prometia. Mais tarde, acabou por se desiludir do curso que esta tomou, e do radicalismo da sua juventude salvaram-se aqueles impulsos benevolentes que deram origem ao período mais gracioso da sua produção. Durante cerca de uma década, foi abandonando as certezas que tinha sobre o mundo, e restaram-lhe as suas dúvidas e intuições. Como disse dele o amigo Samuel Taylor Coleridge, a grande maioria dos leitores de Wordsworth eram os rapazes, jovens que buscavam um horizonte para as suas sensibilidades e intelecto, para o seu desejo de contemplação. E, como sublinha Kirsch, o motivo por que ainda hoje Wordsworth encontra tantos leitores e influencia muitos poetas é o seu uso do verso como um veículo para a introspecção e para o tipo de inquietações que moldam a nossa identidade: “Nenhum poeta antes dele prestou tão grande atenção à forma como a mente realmente opera, aos estranhos saltos que ligam as nossas ideias e percepções.”
Não temos aqui espaço para um antes e depois, que nos permitam perceber as elisões e desvios matreiros de Daniel Jonas, isto sem nunca perder de vista o original, mas ficam alguns versos para provar a forma como esta tradução usa os sentidos da língua para respeitar a expansão dos horizontes deste poeta: “(…) Humores de quem passou por longa espera/ E exausto sente a bênção finalmente/ Da súbita alegria da esperança./ Talvez fosse uma pérgula que abriga/ As violetas de cinco estações que abrem/ E murcham, por humanos nunca vistas;/ Onde as fadas nos saltos de água soam/ Pra sempre; e eu vi a espuma viva,/ E com a face sobre um seixo verde,/ Dos que, vestindo musgo, sob as copas,/ De mim se dispersavam como ovelhas,/ Ouvi eu um rumor, um rumorejo,/ Naquela complacência em que o prazer/ Preiteia a calma, e, certo do seu gozo,/ O coração se entrega a coisas vagas,/ Gastando o seu favor em cepos, pedras/ E no ar livre. (…)”