“Há muitas coisas que ainda não sabemos e estamos um pouco impreparados para o que vai acontecer na nova economia.” Quem o diz é Jean Tirole, Prémio Nobel da Economia em 2014, que há dias esteve em Lisboa para uma conferência sobre políticas públicas nacionais e europeias na era digital.
Foi com este pano de fundo que o economista lembrou que as inovações tecnológicas afetam sempre todos os aspetos da economia. “Afetam os consumidores porque baixam os preços e melhoram os serviços, as empresas são afetadas porque as incumbentes são confrontadas com a disrupção e os trabalhadores vêm-se confrontados com a destruição de empregos”, resumiu o presidente da Escola de Economia de Toulouse.
Daí que, defendeu o economista numa palestra do ISEG – Lisbon School of Economics & Management, haverá a necessidade de “novas regras e regulamentos, a nível mundial, para a concorrência e proteção dos consumidores”.
Jean Tirole afirma que, nesta nova economia mundial, a proteção da concorrência, dos dados e dos consumidores é vital, mas que são vários os desafios à política da concorrência.
Por exemplo em relação ao Facebook, que funciona na lógica do “winner takes all”. As pessoas estão no Facebook porque as outras pessoas estão no Facebook, o que dá à “rede social um poder de mercado amplamente disseminado”.
Problemas com monopólios Um outro exemplo é a Amazon e a Uber, “dispostas a perder dinheiro durante muito tempo para comprar uma possibilidade de posição monopolista”. Na opinião do também diretor científico do Instituto de Economia Industrial de França, os monopólios poderão funcionar desde que haja “hipótese dos inovadores, que são empresas mais eficientes, de entrar no mercado”, uma vez que estes mantêm as incumbentes em alerta e impedem uma posição dominante no mercado.
Mas, diz Jean Tirole, o “acesso justo ao mercado” é uma preocupação, uma vez que mesmo que uma empresa consiga entrar, pode não o alcançar. Veja-se o caso do WhatsApp ou do Instagram, comprados pelo Facebook. Para o autor do livro recentemente editado em Portugal “Economia do Bem Comum”, o poder político e regulatório “tem de garantir que os monopólios não abusam da sua posição”.
Comércio digital Uma outra preocupação levantada pelo também professor convidado do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) em relação à nova economia de base digital prende-se com as plataformas de comércio digital, que ligam os compradores a vendedores e “obrigam estes últimos a oferecer o melhor preço”. Por exemplo, a Booking tem sempre o melhor preço “porque este é garantido pelo comerciante” em troca de aparecer nas pesquisas na plataforma, o que faz com que sejam os clientes não Booking que pagam a diferença.
Além disso, muitas vezes, as plataformas impõem sobretaxas. “Uma taxa adicional é quando, depois de um cliente preencher os dados todos, o site diz que para se efetuar o pagamento são mais dez euros para se usar o cartão de crédito”, exemplifica Jean Tirole, dizendo que a maioria das pessoas o aceita porque já usou demasiado tempo com o preenchimento dos dados.
Mas os reguladores, em especial na Europa, já têm atuado, e no caso da Booking, revela Tirole, “na Alemanha, foi proibida de exigir os preços mais baixos” e, “em França, os hotéis semelhantes podem oferecer condições melhores noutras plataformas.
Privacidade Outro dos aspetos da nova economia digital realçado pelo economista na sua conferência no ISEG prendeu-se com a relação das pessoas, das empresas e do setor público com os dados e as questões da privacidade.
O “consentimento, o direito ao esquecimento mais o direito à identificação dos dados incorretos”, a que se junta o direito “a aceder para se saber o que está a ser feito com a informação” e ainda a “segurança melhorada” e a “notificação mais rápida dos problemas” são, de acordo com Jean Tirole, aspetos basilares para a construção da nova economia.
De acordo com o professor de Economia, uma “preocupação para os consumidores é que mesmo que não cedam dados são impactados pela informação disponibilizada pelas redes sociais” e esta disseminação de dados levanta vários problemas.
Desde logo, afiança Tirole, “a quebra de confiança e segurança, por exemplo na saúde”, ou “um aumento do risco que vem com o malware”.
Daí que, na perspetiva do vencedor do Prémio Nobel da Economia, “nós, como consumidores, temos de ser protegidos porque é difícil fazê-lo por nós próprios”, e dá como exemplo a regulamentação bancária ou da segurança alimentar, que “surgiram como resposta a problemas que são esmagadores para os depositantes ou consumidores”.
Par Jean Tirole, as autoridades públicas devem ajudar os consumidores de uma “forma orientadora e não impositiva”, através de “políticas de base standardizadas e que sejam familiares aos utilizadores”. Uma melhor regulação e proteção dos consumidores e da concorrência é uma ferramenta definidora da nova economia digital.
Entrevista. "Temos de proteger os trabalhadores"
Jean Tirole defende que há melhorias na economia europeia, mas alerta para o perigo da desregulação. Flexibilização do mercado laboral é uma necessidade
Quais são as principais debilidades da economia portuguesa e europeia?
A Europa tem estado melhor nos últimos anos graças a um contexto mais alargado que tem permitido mais defesas, e com mais países a fazerem esforços para melhorar as economias. Na Europa, ainda há os bancos que detêm obrigações do seu Tesouro que causam desequilíbrios entre os dois. Temos de nos certificar de que não há dívida em demasia. Temos de reduzir a dívida, devagar, não quebrando as regras. Não queremos abusar da austeridade mas, ao mesmo tempo, ainda há muita dívida privada e muita dívida pública. E ainda há preocupações sobre se as novas regras serão bem implementadas. No setor bancário há questões de mais liquidez, de mais rácios de capital. E temos a união bancária, o que é bom, mas tem de haver mais regulação.
Deveria haver uma reforma laboral maior em Portugal?
Para uma reforma do mercado laboral temos de abandonar os contratos de curto prazo, mas também os contratos de muito longo prazo. Temos de proteger os trabalhadores, e não os empregos. Hoje, os empregos que se estão a criar são empregos que se evaporam muito depressa, e no futuro vai haver muitos mais, porque a inteligência artificial faz com que as coisas aconteçam mais depressa. E nenhuma empresa vai querer criar empregos permanentes e, por isso, os trabalhadores precisam de proteção. E temos de ir em direção ao sistema escandinavo, onde há poucos contratos de curto prazo, poucos contratos de muito longo prazo, e o que há são contratos com o fim em aberto. Com isto há mais flexibilidade, maior mobilidade e maior formação dos trabalhadores. Porque, se se contratarem pessoas a termo certo, elas não têm formação e isso não é bom para o trabalhador. Queremos a proteção do trabalhador e não do emprego, porque os empregos estão a mudar muito rapidamente. Outra coisa que é uma verdade universal em todo o lado é que os erros são cometidos quando as coisas correm bem. Vimos isso com a crise dos bancos, que aconteceu quando tudo estava bem e se começou a desregulamentar. E isso foi o que aconteceu. Porque quando uma crise acontece, não há boas opções. É antes da crise que é preciso tomar medidas.
Acha que as medidas que estão a ser tomadas estão corretas?
No papel, há boas medidas. As reformas de Basileia ii são boas e adaptam a economia ao que deve acontecer. Mas há diferenças entre o que está no papel e aquilo que deveria estar a acontecer. Temos de ter a certeza que a regulação é implementada. Mas há preocupações porque, se tivermos regras como as atuais, a atividade vai migrar para onde não for regulada. E na Europa há ainda o problema dos bancos que têm obrigações do Tesouro do seu próprio país, não diversificando, ficando mais vulneráveis.
Os países europeus terão de abdicar de alguma soberania?
A Europa está um pouco esquizofrénica em relação ao europeísmo. Os países dizem que querem mais Europa mas, ao mesmo tempo, querem mais soberania. Mas isso não é possível porque, se querem partilhar risco, através de dívida comum, de fundos comuns de garantia de depósitos… é preciso aceitar as mesmas regras, à semelhança do que foi feito com os bancos. Mas se cada país tiver as suas próprias leis e regras é muito difícil pedir aos outros países que intervenham quando as coisas correrem mal.
Como pensa, com os novos atores políticos, que evoluirá a economia global?
Como economista, penso que o mundo não evolui com políticas egoístas. A política dos EUA é má para o mundo, mas também para os EUA. Porque poderão ser protegidos alguns empregos, mas também vão ser destruídos muitos, porque vai haver retaliações e as exportações norte-americanas vão sofrer, e as empresas terão de dispensar pessoas.
É possível ser egoísta na economia digital?
Todas as plataformas são globais, e em áreas como a política de concorrência, política fiscal, privacidade, é preciso alguma coordenação política em todo o mundo. Mas na política fiscal e na privacidade há uma grande divisão entre a Europa e os EUA, e é preciso alguma cooperação. E essa é mais uma razão para haver preocupação com este movimento populista em todo o mundo. Os populistas estão a colocar em perigo o mundo não só a nível das alterações climatéricas, mas também a nível económico. E aquilo que disse sobre o mundo também se aplica a nível local. Os políticos têm de defender o interesse dos seus países, e não o interesse dos seus partidos. E as divisões políticas em muitos países são uma receita para o desastre, em especial com os desafios atuais.