Até há bem pouco tempo, poucos se comoveriam com a afirmação de que o livro foi a trave mestra da nossa civilização. Mas se o livro sobrevive há algumas décadas ao crescente número dos profetas que vêm anunciando o seu desaparecimento, hoje, o fim do culto da leitura já não soa a uma improbabilidade. Giorgio Manganelli, no seu discurso da “Genesis” da civilização do livro, foi tomado de um calafrio ao conceber um tempo em que não havia literatura, uns milhões de anos em que faltou aos homens esta tecnologia formidável. Sobre esse tempo sem livros – ou “brinquedos da consciência”, como lhes chamou D. H. Lawrence -, aquilo que se lhe ofereceu dizer foi que, para “milhares de gerações, a vida na Terra deve ter sido de um extremo aborrecimento”.
E não é que a matéria-prima de que os livros são feitos estivesse em falta. Como aquele escritor italiano notava, em todo esse tempo, que por ser tão chato, por não ter deixado um vívido testemunho, parece hoje que transcorreu no tempo que chega para se “ir duas vezes ao teatro e cinco ao cinema”, os homens e as mulheres não deixaram de ter tudo o que era necessário para fazer literatura: “Tinham as palavras, os cemitérios, as exclamações, as doenças, a fome, a incerteza do amanhã, os massacres, as famílias e os adultérios…” Faltava-lhes era os meios, o próprio alfabeto, e toda a operação que liga por canais subterrâneos séculos e séculos de memória, experiência, sabedoria e o diabo a sete.
Ora, o mais curioso é que, como Manganelli notou, era-lhe bem fácil imaginar “um tempo sem automóveis nem locomotivas nem bandeiras nem primeiros-ministros nem padres”… Difícil era imaginar todas essas gerações que viveram e morreram nesta Terra sem terem usufruído dos benefícios da literatura.
Esta arenga pode parecer só um modo de o jornalista se espreguiçar antes de noticiar o arranque de mais uma edição da Feira do Livro de Lisboa, mas, como veremos, é um modo de lançar uma ponte por cima daquilo que menos importa: na sua 88.a edição, e ao longo de quase três semanas, o Parque Eduardo VII vê-se uma vez mais transformado na maior montra do livro no nosso país e, uma vez mais, em torno do livro haverá margem para a habitual barafunda, num evento que não esconde o seu desígnio populista e que, convenhamos, nem está mal do ponto de vista do incauto visitante que aprecia este rito anual de exposição e contacto dos editores e livreiros com o público.
Para quem deita a mão à mesa da vida e se contenta com o que há, acomodando o apetite à oferta, sem grande consideração por aquilo que o mundo foi ou sequer para onde vai, pouco interessa registar as recentes declarações de um histórico editor sobre os problemas que enfrenta hoje o setor do livro. Hoje à frente da Nova Vega, Assírio Bacelar (que fundou com José Antunes Ribeiro, em 1972, a Assírio & Alvim) disse ao “Público” o seguinte: “Mais tarde ou mais cedo, os livreiros e editores independentes terão de criar uma organização própria, até para servir como interlocutora com os poderes públicos, porque a APEL [Associação Portuguesa de Editores e Livreiros] está a soldo dos dois grandes grupos editoriais e livreiros” e “quase se limita hoje a fazer a Feira do Livro de Lisboa, já que a do Porto, e bem, é a câmara que a organiza.”
Seria de pensar que um remate destes provocasse algum tipo de transtorno, desse origem a algum género de réplica da APEL. Pelo menos, o leitor incauto esperaria que assim fosse. Mas de pouco serve sublinhar como a literatura se tem na conta de um sismógrafo sensível quando, na verdade, os sensores pifaram, e hoje, por falta de manutenção, qualquer acento polémico se desvanece num silêncio ensurdecedor.
Poderíamos, está claro, fazer como os restantes jornais, que se limitam por estes dias a papaguear candidamente os números da propaganda de que os responsáveis da APEL se servem para provar que o evento está de robusta saúde e cresce a olhos vistos. Nunca contestados, estes números pintam sempre uma imagem gloriosa da feira, onde se terão vendido no ano passado 400 mil livros, tendo passado pelo recinto 537 mil pessoas. A cada ano, o recinto cresce, há mais bancas com livros, milhentas iniciativas e a batelada de autores de olhar amodorrado a indagar se algum dos visitantes terá a gentileza de vir povoar-lhe a vaidade.
Para esse tipo de informações, reservamos as caixinhas na coluna à direita deste texto; por isso, o leitor que vem pelo panfletinho pode dirigir-se ali ao balcão. Aqui vamos prosseguir a visão dessa “paisagem de destroços” onde a indústria do entertainment continua a valer-se do prestígio do livro para montar uma feira popular à sua volta. Desde logo, como não entrar em êxtase perante o consistente reforço da área dedicada à gastronomia e ao showcooking. Como pode ler-se na notícia do “Público”: “Aquela zona contará com apresentações de autores que lançaram livros sobre gastronomia, alimentação ou nutrição. Haverá ainda uma ‘batalha gastronómica’, que se quer que seja uma ‘homenagem à cozinha tradicional’ e que porá, frente a frente, chefs que terão como desafio a recriação de uma receita da cozinha tradicional portuguesa.”
Vale a pena, a este propósito, lembrar a crónica de sexta-feira passada de António Guerreiro nesse mesmo diário, “A ideologia gastronómica”, em que reflete sobre a forma como este fenómeno da “gastromania” a que temos assistido desarmados pela nossa indiferença, de há alguns anos se nos impôs, colonizando o espaço mediático e público, cultivando uma “obsessão pela comida, pelas dietas, pela gastronomia”. No seu efeito de estetização, este é um exemplo esplendoroso de tudo o que hoje deforma e constrange o culto da leitura. Assim, Guerreiro alertava para o modo como a cozinha se tem tornado “aquilo que ainda dá existência à wagneriana ‘obra de arte total’”.
O crítico vinca ainda a ironia na forma como os mediadores da obsessão gastronómica hoje “se sentem próximos da elaboração requintada e do luxo da comida lenta, onde se sedimentam estratos e estratos de cultura”. E conclui: “Esta gente, que é ainda capaz de acreditar no progresso das artes e da civilização, em matéria de gastronomia difunde e elogia o que há de mais reacionário. A gastromania é afinal uma ideologia.”
Dito isto, e por mais incauto que o leitor seja, não se espante se dentro de alguns anos esta grande montra der sinal da sua expansão entre os sentidos e venha a adotar como nome “Feira do Livro e da Gastronomia”.
Terminemos, no entanto, com uma nota sobre o programa de voluntariado que uma vez mais foi lançado pela APEL em vésperas da realização da feira. Dizia a organização que vinha oferecer “a oportunidade a 20 voluntários de participarem na organização do certame e conhecerem os bastidores do maior evento literário do país” – um programa que, depois de um hiato em 2016, regressou a pedido de muitas famílias pois, como refere Bruno Pires Pacheco, secretário-geral da APEL, “todos os anos, mesmo antes de divulgarmos as datas da Feira, temos pedidos para o voluntariado da Feira. (…) Consideramos que ser voluntário da Feira do Livro de Lisboa é uma oportunidade para todos aqueles que gostam de ler e, portanto, são as melhores pessoas para prestar apoio aos visitantes. Para além disso, é uma excelente oportunidade para conviver de perto com todos os autores que, ao longo dos 20 dias, passam na Feira”.
Além do envio do CV e de uma fotografia, para o processo de seleção, a APEL pediu aos candidatos que respondessem, e “de forma original (!), à questão “se a sua vida fosse um livro, quem o escreveria e porquê?”. Contactada pelo i no sentido de esclarecer de que forma a APEL vê a sua missão abrangida pelo artigo 2.o da Lei do Voluntariado – em que este é entendido como “o conjunto de ações de interesse social e comunitário (…) ao serviço dos indivíduos, das famílias e da comunidade desenvolvidos sem fins lucrativos por entidades públicas ou privadas” -, remeteu-nos para a agência de comunicação Lift, que não chegou a responder às nossas questões até ao fecho da edição. (A resposta chegou depois e é reproduzida no final do texto.)
Com tudo isto, e mesmo que não se adivinhe para breve a erradicação dos livros da face da Terra – mais fácil é pensar que esta tecnologia seja virada do avesso e os livros se tornem inimigos de um ideal de socialização da cultura e emancipação -, o compromisso total da nossa atenção que a leitura exige e o seu efeito de interrupção ou corte com o entertainment, esse, sim, pode estar ameaçado. E alguns de nós já nos imaginamos a viver num tempo, não de extremo aborrecimento, mas de uma brutal trivialidade, em resultado de todos os brinquedos da inconsciência de que hoje nos ocupamos.
RESPOSTA DA APEL
A APEL – Associação Portuguesa de Editores e Livreiros é uma instituição sem fins lucrativos, que organiza a Feira do Livro de Lisboa há 88 anos.
A Feira do Livro de Lisboa é igualmente um evento sem fins lucrativos, razão pela qual o apoio financeiro da Câmara Municipal de Lisboa é indispensável à sua realização. Não se deve confundir a atividade da APEL – a entidade que recruta os voluntários – com a dos editores participantes, esses sim com uma atividade comercial, mas sem qualquer colaboração de voluntários.
A APEL conhece, respeita e cumpre a Lei do voluntariado e é no âmbito desta legislação que a Associação e os voluntários celebram o Programa de Voluntariado da Feira do Livro de Lisboa, cujas condições são reciprocamente aceites e que asseguram aos voluntários:
– seguro de responsabilidade civil;
– pagamento das refeições;
– pagamento de transportes.
Importa referir que o voluntariado em geral é uma iniciativa inerente ao exercício de cidadania, na qual os cidadãos se predispõem a ajudar a comunidade. Na Feira do Livro de Lisboa é nisto mesmo que consiste, com os voluntários disponíveis para ajudar os visitantes.
Acresce que este Programa de Voluntariado da Feira do Livro de Lisboa, a funcionar desde 2013, tem permitido a vários voluntários uma aproximação às empresas do setor que de outra forma não seria viabilizada. Em resultado, cerca de um quinto dos voluntários conseguiu emprego em editores presentes na Feira do Livro de Lisboa.