Carlos Pinto, antigo deputado do PSD e ex-presidente da Câmara da Covilhã, vai entregar hoje o cartão de militante ao presidente do partido, em protesto contra a posição favorável de Rui Rio sobre a eutanásia.
A decisão, comunicada numa carta a que o i teve acesso (verem baixo), acontece na véspera de o Parlamento debater os projetos de lei do PS, Bloco de Esquerda, PAN e PEV sobre a morte medicamente assistida. Rui Rio é a favor da despenalização e a direção do partido deu liberdade de voto aos deputados sociais-democratas na votação que decorre amanhã.
Para Carlos Pinto, a posição do atual presidente do PSD foi a “gota de água”. Apoiar a eutanásia, escreve o histórico, é “colar o PSD a um momento de retrocesso civilizacional” e uma decisão que “marca a rutura com a afirmação humanista, mas também marcadamente cristã, que constituíram base de valores fundacionais do próprio partido”. Entre vários outros ataques à liderança de Rio, o antigo deputado garante que “o PSD de hoje não passa de um partido sem memória”.
Na semana passada, chegaram críticas ao posicionamento de Rui Rio sobre a morte medicamente assistida, vindas das bases. O PSD de Coimbra aprovou um voto contra os projetos de legalização da eutanásia, exigindo uma discussão interna do tema. “A Rui Rio só se conhece uma posição genérica, em abstrato, no capítulo de um livro. O PSD é democrático, não é presidencialista”, disse o presidente da concelhia, Nuno Freitas.
E houve avisos de sociais-democratas de peso. Cavaco Silva reapareceu para avisar os deputados de que despenalizar a eutanásia é “a decisão mais grave” que podem tomar. O antigo Presidente da República prometeu mesmo que, nas autárquicas do próximo ano, não vai votar nos partidos que sejam a favor da eutanásia.
Tal como o jornal SOL noticiou este fim de semana, a votação dos diplomas sobre a despenalização da eutanásia será renhida, o que está a colocar o PSD debaixo de pressão. Bloco de Esquerda, PAN e PEV vão votar a favor e no PS só há um deputado contra (Ascenso Simões). Já o CDS e o PCP vão opor-se, deixando a decisão de passar a lei nas mãos dos deputados sociais-democratas – que têm liberdade de voto e estão divididos. Há pelo menos sete que já afirmaram publicamente que votarão a favor, mas o número poderá chegar aos 14 e só são precisos 10 para que os projetos passem. Entretanto, o “Expresso” garante que Marcelo Rebelo de Sousa espera que os diplomas não avancem. E, se passarem, vetará a lei, usando como argumento a votação demasiado renhida de terça-feira.
“Frouxidão” As críticas de Carlos Pinto – que foi alvo de um processo disciplinar por se ter candidatado como independente à Câmara da Covilhã e cuja inscrição do partido foi recentemente anulada – não se esgotam ao apoio de Rui Rio à eutanásia. O histórico do PSD queixa-se de que as “escolhas internas do partido” se baseiam em “manobrismo de grupos enquistados e sindicatos de voto” e acusa Rio de não exercer “o contraditório diário de combate político”, enquanto “se ouve o governo a falar de um país das maravilhas”.
“Os recentes meses mostram a ausência de um discurso claramente distinto do atual governo, sendo visível uma certa colagem e uma visível frouxidão”, lê-se na carta, que continua acusando o líder do PSD de não tentar envolver o Presidente da República nos “consensos necessários”.
Segundo Carlos Pinto, existe, por outro lado, “indiferença fria” na relação da presidência do PSD com a “militância interna”.
Leia a carta:
Caro Rui Rio
Encontrarás em anexo a esta carta o meu Cartão com o número 525, emitido originariamente quando era presidente do PPD Francisco de Sá-Carneiro.
Termina aqui a minha militância ativa de 44 anos e também cessa a minha qualidade de membro do Conselho Geral do “Instituto Francisco de Sá Carneiro”.
Durante todo este tempo, procurei contribuir, ainda que modestamente, para a implantação e afirmação do Partido, nas responsabilidades eletivas, internas e externas, que assumi.
“A social-democracia como nos países mais avançados da Europa”, assim se escrevia nos cartazes com as “linhas programáticas” que afixávamos nos “salões paroquiais” e nas “Casas do Povo” onde, com a população, em 1974 se discutia o futuro.
(…)
Ser PSD não era apenas ter uma filiação partidária, era um estado de espírito feito de liberdade, cívica e ética. E é essa liberdade que aqui me traz.
Fui candidato independente nas últimas eleições autárquicas.
E opositor a quem a bandeira do partido serviu para albergar uma vergonha pré-anunciada e confirmada.
Tudo a coberto de Estatutos que são uma verdadeira extravagância jurídico/política institucionalizada.
Hoje, no PSD, as escolhas internas baseiam-se em manobrismo de grupos “enquistados” e sindicatos de voto, à medida de obedientes seguidores.
(…)
Mas as disfunções no sistema são muitas.
Vê bem este exemplo de absurdo estatutário resultante do que venho a apontar, no paralelismo de situações e no diferente desfecho.
Enquanto militante, apoiaste publicamente um candidato à Câmara do Porto em 2013, contra a candidatura apresentada pelo próprio Partido.
Lá tinhas as tuas razões que, confesso, achei uma extensão subsidiária da mera disputa pessoal antiga, com um ex-presidente do PSD.
(Lembrei-me a este propósito, aquele dia distante de 1991 em que me procuraste no meu gabinete na Câmara da Covilhã, com o Aguiar Branco – era eu presidente no primeiro de cinco mandatos e também vice-presidente de Cavaco Silva – para me contares as guerras do Porto e já então
as vossas incompatibilidades paroquiais…)
Retomando, em 2013 o teu candidato “independente” no Porto foi eleito e não creio que o teu contributo tenha sido despiciendo, muito pelo contrário.
Agora, vê tu a vesga e dual plasticidade estatutária, face aos dois casos, avaliando como venalidade inaudita a candidatura que me fez avançar e ser eleito e que levou agora à “cessação de inscrição”, segundo o meritíssimo Conselho de Jurisdição Nacional, tribunal interno com escasso apreço pelo pleno direito ao contraditório e sem instância de recurso.
Confesso-te a minha subjacente indiferença por tal decisão, o que me leva, nessa sequência, a remeter o meu cartão, para assim facilitar o trânsito em julgado…
Mas não reter sequer o cartão como memória, tem a ver com a “gota de água” transbordante da tua presidência.
• O PSD está no limbo da indiferença como partido criador de esperança, que sempre foi.
Os recentes meses mostram a ausência de um discurso claramente distinto do atual governo, sendo visível uma certa colagem e uma visível frouxidão para com quem representa democraticamente menos votos que o PSD.
(…)
As reformas urgentes (no sistema político, na lei eleitoral, numa justiça em tempo útil, na criação de excepcionalidade fiscal para o investimento, na redução da carga fiscal dos portugueses, no reequilíbrio do território) podem andar pelos reuniões dos “conselhos de estratégia”, mas não chegam à praça pública das ideias. E, é surpreendente, estar como Presidente da República alguém que foi presidente do PSD e quanto a desbloqueio político dos impasses do regime, do partido, não nascerem palavras que envolvam esta realidade supra-partidária para os consensos necessários.
E, falando de ideias, esta tua posição de defesa da Eutanásia é, na minha opinião, colar o PSD a um momento de retrocesso civilizacional.
Marca a rutura com a afirmação humanista, mas também marcadamente cristã, que constituíram base de valores fundacionais do próprio partido.
Neste debate era necessária uma atitude quanto ao caráter sagrado da vida até ao seu último sopro; era exigida a defesa acérrima no domínio da saúde, responsabilidade do Estado, visando a criação de uma rede nacional de cuidados paliativos; e mesmo no plano da mera “materialidade do Direito”, em que muitos colocam este tema agendado pela extrema-esquerda, o universo dos valores subjacentes à Constituição (consagrando que “a vida humana é inviolável”), não deveria ceder a esta deriva legislativa na invocação do direito à “boa morte”, quando, ao mesmo tempo, pouco ou nada se cuida do direito positivo na promoção da natalidade.
Podem as consciências individuais quedar-se dilemáticas sobre o tema, porque vivemos em liberdade.
Mas um Partido político como o PSD, não pode ser um somatório atrabiliário de gestos em matéria tão sensível, com o seu líder a defender a eutanásia, numa espécie de corpo partidário em auto-gestão de posições filosóficas sobre a vida, deixando a matriz fundacional do próprio partido à deriva.
Finalmente,
• Acresce que é notório que o PSD de hoje não passa de um partido sem memória.
No plano político, o passado recente governativo que foi chamado a cumprir, saiu do discurso de quem o representa, quando se trata de trabalho patriótico e honrado que salvou o país da bancarrota. Ouve-se hoje o governo falar de um país das maravilhas; e tendo sido anunciado por ti um governo-sombra, não é visível o contraditório diário de combate político, afirmando a realidade de um país que mantém essencialmente o futuro demasiado sombrio.
No plano da relação com a militância interna, também não prima pela memória: não existe na tua Direção quem acompanhe detalhes de pessoalidade e de mero gesto político/relacional que todos os grupos devem cuidar.
No passado era impensável a pura indiferença fria, da parte de quem presidia ao partido, para com quem representou algo no partido em qualquer circunstância. Acho que se engana, porque fui dirigente nacional ao mais alto nível, como sabes, que quem esquecer que um partido também é um lugar de afectos, mesmo que a racionalidade gélida o negue, mais tarde ou mais cedo, aprenderá por si.
(…)
Está assim cumprida a missão e a ligação ao PSD.
Ser social-democrata e liberal não carece de validação partidária.
Por isso, desejo sinceramente que tenhas o talento político, em próximas eleições, para superar os 28% do núcleo votante histórico de sempre.
Menos que isso, estaremos perante a mera continuidade da tergiversação política, que pouco adianta em termos práticos ao futuro de Portugal.
Cumprimentos pessoais,
Covilhã, Maio de 2018
Carlos Pinto