Presas de elefante; borboletas raras; peles de leopardo, de tigre ou de crocodilo; penas de águia ou de papagaio; dentes de grandes felinos – noutras épocas, noutras geografias ou noutras culturas seriam troféus altamente cobiçados e passíveis de render milhares de euros. Na medicina tradicional chinesa, produtos como o osso de tigre, o corno de rinoceronte e a bílis de urso são altamente valorizados por se crer que possuem propriedades quase mágicas. A bílis de urso, por exemplo, é usada para curar hemorroidas, dores de garganta, feridas, para baixar a febre, melhorar a capacidade de visão e até expurgar o fígado. Um mililitro desta substância pode custar, num país como o Laos, o equivalente a metade do salário médio mensal.
Mas, para uma instituição como o Jardim Zoológico de Lisboa, nada disto tem qualquer valor de mercado. “Nenhum subproduto, pele, chifres, unhas, osso, entre outros, pode ser aproveitado para fins comerciais”, refere a instituição, questionada pelo i. Esta regra decorre das determinações da Associação Europeia de Zoos e Aquários (EAZA), que representa cerca de 400 Zoos da Europa e Médio Oriente e da qual a instituição lisboeta é sócia fundadora.
Num documento da EAZA datado de 2008 e intitulado ‘Desenvolver o potencial de pesquisa dos zoos e aquários’ pode ler-se: “Independentemente de argumentos de sustentabilidade, os zoos e aquários não devem envolver-se no comércio de membros de animais raros ou de produtos como marfim, peles de tigre, mandíbulas de tubarão, borboletas conservadas e esqueletos de coral". Inversamente, “uma vasta variedade de materiais e métodos pode […] ser utilizada nos estudos das coleções zoológicas vivas”, como “amostras de tecido e de sangue, fezes, urina, ossos, ovos, ninhos e penas". Continua a recomendação: “Todos os animais acabam por morrer e o material recolhido post mortem pode ser estudado com proveito e depositado em museus e universidades para futura consulta".
Alimento fatal Há cerca de uma semana, o Jardim Zoológico de Lisboa viveu um momento dramático quando uma girafa-de-Angola de 11 anos, ao tentar apanhar um pedaço de comida atirado por um visitante, caiu no fosso que cria uma barreira de segurança entre aqueles animais e o público. A girafa teve morte imediata e homem, que já fora admoestado por estar a alimentar os animais, identificado e interrogado numa esquadra da Polícia. “A necropsia foi já realizada e a conclusão foi de morte provocada por colapso cardiorrespiratório, consequência da queda”, informou o Zoo poucos dias depois. “A morte desta girafa que nasceu no nosso Zoo representa uma perda incalculável para todos os elementos do parque”, continuava o comunicado. “A Girafa-de-angola é uma das espécies mais emblemáticas e uma das mais queridas dos nossos visitantes. […] O clima temperado do país e da cidade facilita a adaptação das espécies, sendo a sua taxa de reprodução bastante boa”.
“O facto desta girafa ter sido mãe em novembro do ano passado transtorna-nos ainda mais. A cria, que já se alimenta sozinha, continuará integrada no restante grupo”. Segundo notícias posteriores ao acidente, a cria estaria a experimentar dificuldades para se alimentar.
Ao i, Francisco de Assis Costa, fundador da Clínica Veterinária João XXI, explica que as girafas “não podem baixar o pescoço, sob o risco de fazerem embolias cerebrais ou AVC". Aliás, complementa, “por esta etiologia, mesmo durante qualquer transporte, deverão ser mantidas e transportadas sempre de cabeça em posição ereta ou levantada”.
Classificada como ‘Vulnerável’ pela União Internacional para a Conservação da Natureza, a girafa-de-Angola faz parte do grupo restrito de animais que em outubro do ano passado foram fotografados em Lisboa por Joel Sartore, fotógrafo da National Geographic. O norte-americano é o autor do projeto Photo Ark, uma espécie de Arca de Noé em imagens que pretende preservar para a posteridade cerca de 15 mil espécies em risco. Para Sartore fazer a foto da girafa uma grande sala teve de ser pintada de preto – assim o exige o projeto, segundo o qual toda a atenção se deve focar no animal retratado.
Carne para ração E o que acontece à carcaça quando um animal destes morre no Jardim Zoológico? Uma vez que nenhuma das suas partes pode ser aproveitada para fins comerciais, será a sua carne, pelo menos, dada de comer a outros animais em cativeiro? A resposta, mais uma vez, é negativa. “Os cadáveres de animais que morrem no Jardim Zoológico são autopsiados e posteriormente recolhidos por empresas, que estão licenciadas para esse fim, sendo objeto de destruição”, esclarece o Zoo de Lisboa. “Os animais de grande porte são recolhidos pela empresa ITS Marques de Coruche e os mais pequenos pela AMBIMED”.
Contactada pelo i, a ITS Marques confirma que foi chamada ao Jardim Zoológico para remover a carcaça do animal, no âmbito do Sistema Integrado de Recolha de Cadáveres de Animais que está contratado com o Estado. Segundo a empresa, a girafa morta foi levada para a unidade de transformação de subprodutos situada em Coruche (distrito de Santarém).
Segundo o relatório de 2016 sobre Unidades de Valorização e/ou Eliminação de Subprodutos de Origem Animal não destinados ao consumo humano, os produtos resultantes de um processo deste tipo podem ser utilizados “na indústria farmacêutica, na indústria cosmética, na indústria de fabrico de alimentos compostos para animais de criação (rações) e de fabrico de alimentos para animais de companhia (“petfood”), indústria de produção de biodiesel, de biocombustíveis ou de combustíveis renováveis, na indústria de curtumes e na indústria de fabrico de fertilizantes e corretivos orgânicos do solo”.
Mas o mais comum é mesmo a produção de rações. Questionada sobre o assunto, fonte da ITS Marques não colocou de parte essa hipótese acerca da girafa-de-Angola, o que leva a crer que o seu destino mais provável tenha sido transformar-se em farinha para a alimentação de outros animais.
Roubo organizado e mutilação Para a empresa de Coruche, lidar com animais de grande porte não é novidade. Há alguns anos já tinha sido contactada para retirar, também do Jardim Zoológico, a carcaça de um rinoceronte. Recorde-se que o corno destes animais é muito procurado sobretudo na Ásia, pelas suas propriedades afrodisíacas. Os conservacionistas não gostam de revelar o valor para não encorajar o negócio, mas estima-se que o corno de rinoceronte valha qualquer coisa como 50 mil euros por quilo e as taças de libação trabalhadas neste material atingem valores estratosféricos nas leiloeiras.
Face à elevada procura, em março de 2017 um rinoceronte branco foi abatido durante a noite no jardim zoológico de Thoiry, a 50 quilómetros de Paris, e o seu corno serrado. Na sequência desse episódio, outros jardins zoológicos optaram por uma solução radical: cortar rente os apêndices dos seus rinocerontes para desencorajar esses atos, até porque, diz a EAZA, “os animais mantidos em zoos são cada vez mais objeto de roubo organizado e mutilação”.
Consoante o peso e outras características, um corno de rinoceronte pode atingir um valor de cerca de 250 mil euros no mercado negro. No caso do espécime do Jardim Zoológico, esse dinheiro “evaporou-se”: o mais provável é que o corno, se não foi transformado em ração, tenha ficado simplesmente reduzido a cinzas.