“Ter 20 alunos numa sala de internamento põe em causa a dignidade dos doentes”

Mapa de vagas para acesso à especialidade deixa de fora 700 médicos. Associação de Estudantes de Medicina espera há dois anos por redução do numerus clausus dos cursos e avisa que o atual cenário põe em causa a qualidade da formação. Bastonário concorda e diz que é urgente o governo intervir 

Pelo quarto ano consecutivo deverá haver várias centenas de médicos sem vaga para iniciar a especialidade no Serviço Nacional de Saúde. O mapa de vagas para os médicos poderem prosseguir a formação e tornarem–se especialistas foi divulgado ontem pela Administração Central do Sistema de Saúde: há 2480 candidatos e foram disponibilizadas 1665 vagas, pelo que há pelo menos 700 jovens médicos que não terão lugar para serem recebidos como internos nos hospitais e centros de saúde. 

O processo de escolha da vaga começa no próximo dia 11 de junho e ficará concluído este mês, começando o internato a 1 de janeiro do próximo ano. 

Edgar Simões, presidente da Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM), admitiu ao i que, tal como nos últimos anos, poderá haver médicos a desistir ao anteverem que não vão conseguir ficar nos locais que pretendem – a colocação é feita em função da classificação numa prova de seriação nacional – ou a optar por emigrar. Mas como os médicos que têm ficado sem vaga nos últimos anos podem repetir a prova e recandidatar-se, o receio da ANEM é que a “bola de neve” seja cada vez maior. No ano passado, no final do processo houve mais de duas centenas de médicos que desistiram e 347 que concorreram mas não conseguiram aceder à especialidade.

Inação do governo A ANEM lamenta a inação do governo numa matéria que considera grave e que não só compromete as expetativas dos médicos como desperdiça recursos. Edgar Simões recorda que há dois anos fizeram uma proposta ao Ministério da Ciência e Ensino Superior para a redução gradual do numerus clausus para acesso aos cursos de Medicina, que se tem mantido inalterado. Medicina foi mesmo excluída do recente corte de vagas em Lisboa e Porto. A proposta da ANEM era uma redução de 15% nas vagas para Medicina ao longo de cinco anos, 3% em cada ano. Hoje há cerca de 1500 jovens a iniciar o curso todos os anos. Simões diz que o cenário, como está, não é bom para ninguém. “Temos relatos de 20 alunos numa sala de internamento só com um médico e um doente, o que não contribui para uma formação de qualidade e põe em causa a dignidade do doente”, sublinha. 

Para o dirigente associativo, o planeamento de recursos humanos é essencial, mas também o investimento no SNS, dado que não abrem mais vagas para formação especializada porque o rácio entre internos e médicos especialistas nos hospitais e centros de saúde já está desequilibrado.

E não é por falta de necessidade de contratar médicos: muitos dos clínicos que não têm acesso à especialidade acabam a ser contratados como tarefeiros para assegurar urgências, sendo médicos indiferenciados. Como explicar o impasse? “É um tema politicamente impopular”, resume Edgar Simões. “As pessoas veem o SNS degradado e talvez não percebam como é que os médicos vêm dizer que há vagas a mais para Medicina. Dizer que há vagas a mais não significa que não faltem médicos no SNS, mas não é a formar estudantes desmesuradamente, e que não têm oportunidade de prosseguir a formação, que se resolve o problema.”

Ordem também quer reduzir vagas Miguel Guimarães, bastonário dos médicos, diz concordar a 100% com a leitura de que este é um tema politicamente impopular e sublinha que a intervenção do Estado é crucial. Há, porém, um aspeto a ponderar: a redução por si só das vagas pode fazer com que apenas os alunos com mais recursos financeiros possam prosseguir o sonho de ser médicos, tirando o curso no estrangeiro. A proposta da ordem para reduzir o numerus clausus seria cortar as vagas disponibilizadas a candidatos com outras licenciaturas e que poderiam convergir para a escola médica do Algarve, o que daria um corte de 15% nos lugares. 

Uma coisa é certa: mais vagas para formação na especialidade é impossível abrir, sublinha Guimarães. “Estamos no limite.” E não é só a ordem que não reconhece idoneidade formativa a alguns serviços. Para psiquiatria, há menos 50 vagas, mas só quatro resultaram da falta de luz verde da ordem. “São os próprios serviços que reconhecem não ter capacidade para acolher mais internos.” 

E sublinha sobretudo que importava reforçar os quadros do SNS, o que poderia aumentar a capacidade de formação de internos, também para responder a outra realidade que decorre da livre circulação: estudantes que tiram o curso fora e vêm fazer a especialidade a Portugal, a maioria portugueses, mas também estrangeiros. Com base na despesa anual com prestações de serviços médicos e no recurso a trabalho suplementar, a ordem estima que faltem 5500 médicos especialistas no SNS – ao mesmo tempo que se continuam a acumular médicos indiferenciados.