Cimeira. Há muito no acordo vazio de Trump

Trump falhou redondamente os objetivos americanos para Singapura. No que lhe diz respeito, pessoalmente, venceu. E o mundo está melhor assim

O mundo digere com alguma confusão a cimeira de terça-feira em Singapura. É fácil compreender porquê. O encontro entre o jovem ditador coreano e o presidente americano resultou tão histórico quanto vago. O documento final, produto não apenas das cinco horas de reuniões, almoços e passeios, mas também de três meses de negociações clandestinas, contém pouco. Muito pouco. Principalmente tendo em conta os objetivos americanos. Nele repetem-se as vagas alusões coreanas das últimas décadas a um termo indeciso – “desnuclearização” – que os próprios americanos inventaram nos anos 90 para convencerem Kim Jong-il a não avançar para as bombas atómicas que ele na mesma construiu. Sobre como isso acontecerá, porém, nada se escreveu em pedra ou papel, embora Mike Pompeo afirmasse ontem que espera eliminar grande parte das armas até 2020. A promessa mais clara, aliás, é americana. Os Estados Unidos prometem não conduzir mais ensaios militares na península, como há muito desejam a China e a Coreia do Norte. O Pentágono foi apanhado de surpresa. Seul, também. Com o Japão aconteceu o mesmo. A cimeira que Donald Trump aceitou por impulso, desconvocou por receio – ou manha -, e à qual regressou com a ideia de que sairia de lá com um compromisso detalhado, verificável e irreversível sobre o fim das armas nucleares, afinal, terminou como havia começado: numa colorida declaração de intenções com consequências inesperadas.

A cimeira de terça nada fez para explicar as intenções do regime coreano ou eliminar o seu arsenal atómico e balístico. O mundo continua sem saber por que preço Pyongyang venderá as armas que construiu à socapa e a muito custo, pagando com a fome e o isolamento. No imediato, aliás, o regime reconquistou o que há muito havia perdido: o reconhecimento internacional e a confiança dos velhos aliados que o sustentam. A China e a Rússia querem que as sanções sejam reduzidas – como já o fizeram em segredo. Kim, por outras palavras, está validado. Surgiu ao lado do presidente americano, apertou-lhe a mão, tocou-lhe o braço e as costas, sorriu e ouviu-lhe elogios – “tem um ótimo sentido de humor”, garantiu Trump. O resultado era impensável há seis meses e os microfones captaram Kim dizendo isso mesmo ao ao líder americano: “muita gente no mundo pensará que isto é uma cena da ficção científica, da fantasia” disse. Falando aos jornalistas ao lado de Trump, garantiu que os dois países deixavam para trás a sua “história difícil”. Os seus gestos indicam-no. Nas últimas semanas demoliu os centros de ensaios nucleares e balísticos, e garante a Trump que destruirá também o laboratório de motores a jato. Ao final do dia de terça-feira, porém, o jovem ditador de 34 anos era um estadista de um país cujo arsenal nuclear é, por agora, um facto. A Coreia do Norte tomou um passo no sentido de se tornar um Estado nuclear reconhecido. 

Esta é a vitória de Kim. É também a derrota dos objetivos americanos. O grande negociador fez um negócio consensualmente desequilibrado. Ofereceu mais por menos. Trump garantiu à entrada do encontro que tomaria imediatamente as medidas ao ditador coreano e sairia de lá com um entendimento ambicioso que encerraria o problema nuclear da Coreia do Norte e envergonharia Barack Obama, segundo quem o regime seria o principal problema do seu sucessor na Casa Branca. Trump acabou do lado de lá. Na conferência de imprensa final imitou a linguagem de Kim ao dizer que os ensaios militares na península são “provocações” e que o seu desejo, no futuro, é remover os 32 mil militares estacionados na Coreia do Sul. “É verdadeiramente espantoso como Donald Trump, estando numa posição negocial tão forte, conseguiu obter tão pouco dos norte-coreanos”, explica Andrei Lankov, politólogo e veterano observador dos assuntos de Pyongyang, em declarações à “New Yorker”.

Lankov, porém, não considera a grande característica redentora da cimeira. É verdade que a negociação de Trump é um fracasso aos olhos da estratégia americana para a Coreia: em Washington, afinal de contas, apenas a desnuclearização é aceitável. No resto do mundo, porém, recebe-se com agrado uma cimeira que parece afastar de vez duas potências nucleares que há meio ano se encontravam com um pé de fora da falésia. Em muitos sentidos, a política do diálogo que Obama aplicou a um Irão pré-nuclear deu frutos esta semana em Singapura – Teerão, no entretanto, arde. A Coreia do Sul, que perde os exercícios militares, reage com otimismo. O mesmo conselheiro presidencial que há meses argumentava nos jornais a favor de um ataque relâmpago contra o regime, John Bolton, apertava na terça-feira a mão de Kim Jong-un. O plano para a desnuclearização é vago, provavelmente fantasioso, mas não é tão relevante num mundo em que a Coreia do Norte se aproxima ao Sul e os Estados Unidos não são mais um fantasma espreitando na esquina. As promessas do regime coreano não são novas – são, aliás, menos ambiciosas que as que Kim Jong-il fez nos anos 90 e 2005 -, e parecem destinar-se a reconquistar parte da economia desfigurada pelas sanções internacionais. Mas Kim Jong-un, ao contrário do seu pai, não precisa de escavar novos túneis e experimentar as mais recentes ogivas: as suas bombas estão terminadas e garantem-lhe já a sobrevivência que escapou a Saddam Hussein e Muammar Khadafi. 

“Procuramos a paz com o presidente que temos, não com o que desejávamos ter”, afirmou, em tempos, o ex-secretário de Estado americano, Donald Rumsfeld. E há uma paz possível – até mais provável – com uma Coreia do Norte nuclear mas em diálogo com o mundo. “A cimeira alterou a psicologia da crise nuclear e assim afastou a perspetiva de uma ação militar americana preventiva”, explica Robert Litwak, académico especialista da História das negociações coreanas, ao “New York Times”. Em Washington há uma aprendizagem difícil a fazer. O presidente americano vende a cimeira como o início de um desarmamento que, provavelmente, não acontecerá. A relação pode ruir nesse momento, mas, para já, está mais pacífica do que em qualquer outro momento desde que o Norte explodiu a primeira ogiva, em 2006. O rumo é incerto e só o tempo decidirá se a diplomacia dos gestos coloridos de Trump será recordada como uma tragédia ou uma solução visionária.