Numa entrevista que teve de ser feita por email por dificuldades de agenda do antigo ministro das Finanças e cujo âmbito foi limitado à questão do interior, com exceção de uma questão sobre o estado atual das contas públicas – «as nossas contas públicas não devem tranquilizar ninguém» -, Miguel Cadilhe fala com entusiasmo do radicalismo que é necessário para inverter o fatalismo com que se encara hoje a acelerada desertificação do interior do país.
O Movimento pelo Interior, pelas figuras que o compõem, entre autarcas, empresários, académicos, políticos, ex-governantes, é o grupo de pressão que faltava para fazer com que se comece a dar mais atenção ao interior?
Como sabe, o Movimento foi, mas já não é. Durou meio ano, premeditadamente. Não teve forma jurídica, nem meios orçamentais, nem estrutura orgânica, nem assessoria de imprensa, nem equipas diversificadas. Teve apenas a boa vontade e a dedicação de algumas pessoas que pensaram as 24+1 propostas. E fizeram das ideias do Movimento algo verdadeiramente conceptual e radical. É disso que o interior precisa, a par de outras coisas que são úteis mas não têm de ser radicais. O Movimento preocupou-se em ser seletivo, não quis ir a todas. Não se pôs em bicos de pés, nem derivou para um grupo de pressão. Repare, a causa do interior tem de falar por si mesma, porque ela é intrinsecamente forte, justa, legítima, necessária. Mal vão as elites nacionais se não perceberem isto.
Acha que ainda se vai a tempo de inverter a tendência das últimas décadas?
Não, não se trata de inverter tendências, mas sim propiciar uma nova tendência, que seja do século XXI e seja sustentável, que respeite os mais velhos e motive os mais novos. Ao longo de décadas, a demografia e a economia deixaram marcas profundas. E a geografia e a história são o que são. Muita da orografia do interior não consente qualquer espécie de densidade populacional. Todavia, as estradas e as telecomunicações são hoje um fator que viabiliza muita coisa. Se me perguntar se vamos a tempo de criar novas tendências, dir-lhe-ei, vamos tarde, mas mais vale tarde do que nunca.
O Movimento diz que falta ‘coragem’ para implementar as políticas necessárias para evitar a desertificação do interior do país. A quem é que tem faltado a coragem, ao PS e ao PSD? Quais são as políticas essenciais para as quais falta coragem?
Faltou coragem e discernimento a quem governa, agora e antes, um longuíssimo antes. O interior precisa de algumas medidas radicais, como as nossas 25 medidas. O radicalismo precisa de coragem. A coragem precisa de políticos de ‘p’ grande.
Teceu recentemente críticas ao PSD pela sua falta de ação nesta matéria, dizendo que ‘se o PSD continua nesta vaga de assobiar para o lado e adiar, adiar, adiar a grande causa do interior, muito mal irá a causa da social-democracia’. Vê no atual PSD vontade para deixar de assobiar para o lado? Acredita que com Rui Rio o partido poderá fazer mais pela causa do interior?
Sim, Rui Rio pode vir a fazer muito pela causa do interior. Ele caracteriza-se por ser uma pessoa de causas, e esta é uma causa que, atravessando todos os partidos, crava-se bem fundo no coração da social-democracia, nos seus princípios e valores.
Acha que são mesmo necessárias políticas de discriminação positiva? Em que medida a política fiscal deve refletir essa discriminação?
As habituais e existentes políticas de discriminação positiva a favor do interior não chegam, nem coisa que se pareça. Por vezes, elas até subvertem razões e efeitos, por vezes são exemplos do que não deve ser feito. O exemplo perfeito é o do minúsculo benefício do IRC de 12,5% exclusivo do interior, instituído em 2017, que o Movimento satirizou. Penso e redigo que o interior justifica outro grau muito superior de discriminação, ou mesmo exclusividade, mas não de regimes sub-dotados. É o que propus nas sete medidas de política fiscal.
António Barreto, numa entrevista ao i na semana passada, disse: ‘Portugal ficou pequenino, Portugal ficou rápido, ficou próximo. Dois terços da população ‘escorregou’ para o litoral, o interior é irrecuperável, você pode ter todos os planos para revitalizar, revivificar o interior, é tudo blá blá eleitoral’. Está bem de ver que tem uma opinião contrária, como é que se contraria esta perspetiva?
Barreto tem razão porque a história que há para contar é, em grande parte, essa do blá blá, que naturalmente conduz ao fatalismo e ao encolher de ombros. Para quê se é inelutável? O gradualismo é sempre aconselhável, porém, ao ponto a que chegamos, os modos e os tempos do gradualismo no interior são blá blá. Estou de acordo, até porque isso também significa que o contrário do blá blá pode ser a radicalidade das 25 medidas que o ex-Movimento pelo Interior veio propor. Digo pode ser, porque, além do mais, tudo agora depende do soberano acolhimento pelo Governo e pelo Parlamento. E, a outro nível, depende cada vez mais da força de sensibilização que o Presidente da República vem inequivocamente exercendo em prol dos territórios do interior. Mas, voltando a António Barreto, gostaria que ele visse, não sei se viu, o conjunto e o detalhe das 25 propostas do ex-Movimento, porque elas são bastante puxadas e parecem-me capazes de fazer o real alcance, a real diferença, fazer da união de muitas condições necessárias uma condição suficiente, como nunca antes aconteceu – e, por isso mesmo, não sei se vai acontecer, já que a cultura geral é a da opção pelo costumeiro blá blá, não é a do radicalismo, moderado embora. A propósito de radicalismo, deixe-me dar o exemplo da Irlanda. Contra as fatalidades das grandes metrópoles, a Irlanda está a criar condições para que, até 1940, a região mais desenvolvida de Dublin cresça a metade do ritmo anual das duas outras regiões menos desenvolvidas, é um plano nacional de coragem política e social que força as coisas, com algum radicalismo, cá está. O plano ‘Ireland 2040’ apareceu há poucos meses. A Irlanda restabeleceu a regionalização, tem três regiões político-administrativas. Comparando com Portugal, bem sabemos, a Irlanda é fisicamente um país mais pequeno, é 76% da nossa área e 45% da nossa população; mas em nível de vida, é bastante mais rico, é 172% do nosso PIB per capita, em paridade de poderes de compra.
Pode dar um exemplo de radicalismo fiscal a favor do interior?
Por exemplo, no campo fiscal, propomos que o interior beneficie de exclusividade dos atuais dois regimes de contratos de investimento; e também beneficie de exclusividade do atual regime do IRS 20% para talentos artísticos, científicos e técnicos, alargando, atenção, este regime a pessoas oriundas do litoral que se desloquem para o interior, além de pessoas oriundas do estrangeiro. Ora, estas exclusividades, sendo muitíssimo discriminantes a favor do interior, podem levar a quê? Podem levar a que um investidor nacional ou estrangeiro passe a ponderar a sério, digo a sério, a alternativa do interior.
Pode dar um exemplo concreto dos benefícios para uma empresa no interior?
No interior, o novo progresso e o novo emprego precisam de pequenas, médias e grandes empresas que tragam tecnologia, competitividade e mercados. Vamos então pensar ‘como se’ as sete sugestões fiscais estivessem integralmente acolhidas. E vamos configurar o caso de uma empresa média-grande do interior, ou que venha para o interior. A empresa beneficiaria automaticamente do IRC 12,5% sobre todos os lucros da sua atividade, sem limites (o limitado regime ora em vigor dos 12,5% dá uns tostões). É a medida fiscal 1. Poderia, ao investir, autofinanciar-se com lucros retidos e beneficiar em IRC do regime DLRR, ‘dedução de lucros retidos e reinvestidos’, sem limites. É a medida fiscal 5. Se pretendesse investir em uma nova fábrica, suponhamos, 30 milhões de euros, e se este investimento passasse bem nas exigências legais e nos critérios de mérito, a empresa poderia celebrar com o Estado um ‘contrato de investimento’, sob o regime exclusivo do interior, para apoiar por exemplo a aquisição de equipamentos e a formação de pessoal; o dito contrato poderia incluir benefícios fiscais, incluindo DLRR, e benefícios financeiros e de outra natureza. É a medida fiscal 2. A empresa não teria acesso ao ‘Regime Fiscal de Apoio ao Investimento’, porque este e os regimes contratuais são mutuamente exclusivos. É a medida fiscal 3. Poderia obter ‘auxílios estatais com finalidade regional” até 45% das chamadas aplicações relevantes (presentemente o limite é 25%). Inclui o contrato de investimento. É a medida fiscal 4.
Poderia ainda beneficiar, sem limites, do SIFIDE, “Sistema de Incentivos Fiscais em Investigação e Desenvolvimento Empresarial’, mas sem acumular outros benefícios em IRC relativamente às despesas de ID em causa. É a medida fiscal 6. Poderia diligenciar para que os recursos humanos provenientes do ‘não-interior’ ou do estrangeiro, se raros e qualificados (elencados na portaria 12/2010), beneficiassem durante 10 anos do IRS 20%. É a medida fiscal 7.
E se aquela mesma empresa estivesse fora do interior?
Nesse caso, a empresa poderia beneficiar dos regimes DLRR e SIFIDE, mas respeitando os limites de dimensão da empresa e da coleta que atualmente já vigoram e se manteriam. A empresa não poderia beneficiar dos outros regimes fiscais que integram as medidas 1,2,3,4,7, pois estes seriam exclusivos do interior. A empresa poderia, no entanto, beneficiar das exceções previstas nas medidas 2 e 3 sobre os regimes de contratos de investimento; por exemplo, se a empresa investisse para aumentar capacidades já instaladas no litoral.
É favorável à descentralização ou à regionalização? Porquê?
Defendo há muito a descentralização político-administrativa, que tem duas principais formas: a municipalização, onde incluo as freguesias; e a regionalização. No continente, temos só descentralização política municipal, não temos descentralização política regional. Somos um caso único na Europa com quem nos comparamos. Somos também um dos países que mais centraliza a despesa pública, contudo o centralismo não impediu, ao invés, promoveu o excesso da despesa do Estado, o colapso de 2011 e os desaires do défice e da dívida.
O ministro Capoulas Santos admitiu a hipótese de um referendo. O Presidente da República comentou a hipótese dizendo: ‘Supondo que é um referendo nos termos constitucionais, isto é, não há uma revisão da Constituição para ser um referendo diferente, é uma possibilidade perfeitamente, em termos teóricos, concebível’. Acha que há condições para que 20 anos depois haja novo referendo sobre o tema? Parece-lhe que o resultado seria outro?
Referendar o quê e como? O referendo é uma diligência que a Constituição impõe contra as regiões que a Constituição impõe. Quase paradoxal, pois é, mas não foi sempre assim. A revisão constitucional de 1997, de Guterres e Marcelo, virou a Constituição contra a Constituição neste domínio das regiões do continente. Mais, veio privilegiar os antirregionalistas, como o prova, por exemplo, a matemática do rácio ‘votantes/eleitores’ e a exigência de este ser superior a 50%. Há um ensaio de 2006 do jurista António Cândido de Oliveira, da Universidade do Minho, que mostra tudo isso com toda a clareza. O terreno foi minado e todos sabem que as minas continuam lá. Depois, é sempre de pasmar o facto de termos de referendar as regiões, e não termos de referendar outras cenas da vida nacional, mais ou muito mais estruturantes, ou mesmo fraturantes.
Vê sinais preocupantes na evolução das contas públicas? Que devia fazer o governo? Acha que as negociações do próximo Orçamento do Estado poderão vir a agravar esses sinais?
Sim, as nossas contas públicas não devem tranquilizar ninguém. Estão longe da solidez, da segurança e da prudência, no lado da despesa. Ultrapassaram todos os limites do razoável, no lado do chamado esforço fiscal. E não sei se nos dizem a verdade que mais importa conhecer, que é a verdade das contas estruturais. O facto é que não estamos a criar condições para reforçar, duradouramente, as capacidades de solvência do Estado. Essas condições passam pela reforma das estruturas da despesa pública. Vê alguma coisa? Não vejo. E 2019 não vai trazer nenhuma espécie de reformismo do Estado. Pior, dez anos volvidos, 2019 poderá repetir o fatídico eleitoralismo de 2009.