A concentração editorial marcou os primeiros anos do século XXI no sector do livro em Portugal, com o Estado a assistir passivamente. Nesses anos a Imprensa Nacional não se desviou um milímetro do que vinha fazendo. E parecia ter virado as costas ao seu período de ouro, nos anos 1980. Até há uns anos, esta ruminava no prado académico, restringindo a sua ação difusora aos textos canónicos, tendo feito muito pouco para assegurar espaço para a criação, particularmente nos géneros minoritários – Ensaio, Ficção, Poesia e Teatro -, marginalizados nos catálogos dos grandes grupos editoriais. Em 2010, Duarte Azinheira assumiu a direção editorial da instituição e, hoje, a Imprensa Nacional está a dar sinais entusiasmantes de que pretende reafirmar o seu papel na defesa de áreas essenciais da cultura quando os privados já não a asseguram.
Como vão assinalar por cá os 250 anos da INCM?
Em 2019, iremos realizar uma grande exposição em Lisboa. A que está, actualmente, na Escola de Design de Matosinhos vai-se manter até ao final do ano. Tem cerca de 1500 metros quadrados de área expositiva, e inteiramente centrada na arte e no processo tipográfico. Aliás, o título da exposição é precisamente “Arte e Processo nos 250 anos da Imprensa Nacional”.
E vai ser transplantada para cá?
Não. Não vai ser de todo transplantada. Há com certeza uma parte que será exposta cá, mas não será mais do que um núcleo. Em Lisboa, a exposição há-de contar também a história desta empresa, mas será também voltada para o futuro. Aquela é centrada nas edições, nos livros. Esse trabalho tem uma grande importância, mas esta instituição tem uma série de outras competências que passam pelos documentos oficiais (passaportes, cartão do cidadão, carta de condução…). É hoje uma empresa com uma grande incorporação de tecnologia. A exposição de Lisboa reflectirá isso. Sendo uma comemoração dos 250 anos, é também uma projecção para o futuro.
Há outras iniciativas a decorrer?
Estamos também a preparar uma história destes 250 anos, feita por um grupo de investigadores coordenado pela Inês Queirós, que é nossa consultora no apoio à comemoração desta data, e que também coordenou a agenda de 2018, que, neste ano, naturalmente é dedicado à história desta casa. Esse livro será lançado em Janeiro, que será o momento em Lisboa em que iremos assinalar de forma mais simbólica a data. Isto porque o dia preciso da criação da imprensa foi 24 de Dezembro de 1768. Ora nessa data já há uma outra comemoração mais proeminente.
Nestes 250 anos o que é que se manteve inalterado no papel desta instituição?
Em primeiro lugar uma orientação clara de serviço público. A perspectiva institucionalista é algo muito relevante nas sociedades democráticas, mas que em Portugal não tem grande tradição. Em países como o Reino Unido a questão institucional tem mais relevo. Parece-me que no nosso país a INCM pode marcar esse peso porque o seu compromisso com o serviço público se tem mantido independentemente dos regimes. Esta empresa trabalhou durante a monarquia, com a república, durante o Estado Novo, e tem estado a funcionar durante a democracia, e sempre com o mesmo sentido de perenidade. Aliás, não me esqueço que quando comecei a trabalhar aqui, em 2010, tendo sido convidado pelo então presidente do conselho de administração, Estêvão de Moura, ele disse-me uma coisa de que nunca me esqueci e que tenho repetido a colaboradores mais jovens:
“Não se esqueça que o senhor não vem para cá inventar a roda. Esta empresa existe há centenas de anos. Nunca se esqueça que a sua obrigação é entregar melhor do que recebeu. Isto não é uma corrida de sprint mas de estafetas. Portanto, cabe-lhe entregar melhor do que recebeu.”
Eu acho que esta frase representa bem o que são instituições como esta. A nossa obrigação é permitir que as gerações seguintes possam continuar a usufruir do seu serviço, e um que seja cada vez melhor.
O que lhe tem ensinado a convivência com o legado histórico desta casa?
A Imprensa Nacional foi ao longo dos anos uma empresa pioneira. Ganhou muitos prémios internacionais quando o processo de impressão era ainda o tradicional. Ainda não passou muito tempo do uso dos caracteres de chumbo. E funcionava aqui uma tipografia que era também uma fábrica de tipos – as letras faziam-se aqui e eram vendidas para o exterior. Teve também um papel muito importante como escola tipográfica, e estão hoje a reformar-se os últimos profissionais que vieram para cá adolescentes, com cerca de 15 anos. Depois há outra coisa que importa destacar que é o jornal oficial. As pessoas que aqui trabalham no “Diário da República” são de um enorme profissionalismo. Como calculará, ao trabalhar nas leis, na publicação da legislação, têm acesso a informação confidencial, e o profissionalismo sempre foi o mesmo independentemente dos governos, fossem estes de esquerda ou direita.
Então não teve problemas com fugas de informação?
É isso que eu queria dizer. Nem no tempo em que cá estive nem tenho memória antes disso de sequer se ouvir falar em casos desses. Nunca houve problemas desses e espero que nunca haja.
E ainda fazem as moedas, e não só para Portugal.
Sim. Esta empresa, que é uma sociedade anónima, inteiramente pública, é a fusão de duas empresas que foram autónomas até 1972. Hoje (4 de Julho), aliás, faz 46 anos que essa fusão aconteceu. Por isso, hoje de manhã, como acontece todos os anos, houve uma sessão no Salão Nobre na Casa da Moeda, em que foram entregues diplomas aos funcionários que faziam 20 e 30 anos de casa. Talvez as pessoas nem façam ideia, mas, hoje, a receita principal e que sustenta a empresa é a gráfica de segurança. Os documentos de soberania do Estado português são feitos aqui. O seu passaporte, cartão do cidadão, carta de condução… São documentos com uma enorme incorporação de tecnologia, e que obrigam esta instituição a ser uma empresa muito voltada para a tecnologia. Estamos também a trabalhar para a produção de documentos oficiais de outros países, e é isso o que possibilita a intervenção da INCM na cultura. Isto porque não recebemos qualquer subsídio público para fazer o plano editorial ou programar música na biblioteca ou criar prémios literários no espaço em que se fala português. Ou seja, é dos resultados operacionais de uma empresa pública moderna e bem gerida que se faz receitas suficientes para que, depois, possa haver devolução à sociedade. Gosto de referir este aspecto da rentabilidade da empresa porque depois, a outra parte, a edição, como se pode compreender, não é comercial, não é lucrativa. É uma actividade apenas complementar daquilo que os editores privados fazem. O nosso papel aí é supletivo. Ou seja, sempre que os privados podem garantir uma edição, não há nenhuma razão para a INCM estar presente.
Toda a moeda portuguesa é feita por vós?
Sim, a moeda, as notas não. Essas são feitas pelo Banco de Portugal. Mas tanto as moedas que servem como meio de pagamento como as de colecção são unhadas pela Casa da Moeda. Depois fazemos moeda para outros países de acordo com aquilo que os governos e bancos centrais pretendem. De vez em quando os países abrem concursos para a produção de moeda e nós concorremos.
Então há um lado competitivo num âmbito internacional?
Exactamente. A minha ligação à moeda é sobretudo do ponto de vista da história, pois sou director do Museu Casa da Moeda, que tem a mais importante colecção portuguesa de moedas, mas o que lhe posso dizer a esse respeito é que as nossas moedas ganham inúmeros prémios internacionais. Portanto, com certeza que somos uma empresa de ponta na cunhagem da moeda. E sempre tivemos uma preocupação cultural importante. A de transmitir os nossos valores e dar a conhecer os vultos da nossa cultura, e isto até com grandes figuras do desporto. Houve uma moeda sobre o Eusébio, e uma sobre o Carlos Lopes. Moedas desenhadas por grandes designers portugueses, como o Eduardo Aires, que desenhou a moeda de 2 euros que celebra os 250 desta instituição., e que desenhou o nosso novo logótipo. É ele também o designer da marca do turismo do Porto que tem tido tanto sucesso lá fora.
No tempo que esteve já à frente desta casa e mesmo daquilo que foi ouvindo sobre o tempo antes da sua chegada, há algum episódio ou crise que lhe pareça significativo desta identidade?
Felizmente a empresa não tem passado por crises significativas. Mas há um momento que é anterior à minha chegada, e que eu não vivi, mas que envolve uma área que está hoje sobre a minha responsabilidade (o jornal oficial) e que me parece relevante. Até 2006, o “Diário da República” era o mais importante negócio da INCM. Talvez ainda se recorde que, até então, sempre que tínhamos uma sociedade ou empresa, de cada vez que tínhamos de mudar de sede ou outro acto relevante, era preciso registá-la no “Diário da República”. Isso foi uma coisa que acabou de um dia para o outro, por vontade do governo. Ora, a empresa reagiu a isso e conseguiu transformar-se completamente, começando a investir na gráfica de segurança, tornando-se uma empresa de matriz muito diferente, muito mais tecnológica. Sendo hoje uma empresa que tem na sua equipa investigadores, engenheiros, pessoas que trabalham nessas áreas. E isso foi conseguido em muito pouco tempo, e se o destaco é porque se trata de um processo pouco habitual para o que estamos habituados a ver no caso das empresas públicas.
Acredito que, na maioria das vezes, as empresas públicas são injustamente atacadas, quando a verdade é que não têm a mesma capacidade de responder aos desafios que têm as empresas privadas, mas isso não resulta de as pessoas serem menos capazes, nem dos gestores serem menos profissionais, mas trata-se de estarem sujeitos a quadros legais mais restritivos e que impedem as empresas de não pensar noutra coisa senão nos seus lucros. Mas essa transformação da empresa, que perdeu de um momento para o outro a sua actividade mais rentável, é um bom exemplo de superação. Não foi uma crise porque a empresa soube dar volta por mérito das pessoas que cá trabalhavam na altura.
Passando à vossa actividade editorial, de há uns anos a esta parte essa função editorial da INCM parecia ter hibernado. Agora, esse papel que chegou a ser decisivo em sectores minoritários parece estar a ser recuperado. Houve mesmo uma figura central nessa acção, que foi Vasco Graça Moura, lançando uma série de colecções, e publicando uma série de títulos que teriam tido dificuldade em encontrar espaço em catálogos comerciais.
Essa leitura é correcta. Vasco Graça Moura é, de facto, o pai da moderna edição na Imprensa Nacional. É difícil até tecer elogios à altura da sua intervenção cultural. Foi um grande escritor, um tradutor importantíssimo, um magnífico poeta, e um homem de uma erudição indiscutível, talvez até insuperável. E o Vasco foi um editor que marcou profundamente esta casa porque criou uma série de colecções novas. A Plural é uma delas, mas criou as colecções mais variadas, a de artes plásticas… E editou os grandes autores, os indiscutíveis, que pertencem ao cânone, ao mesmo tempo apostando em novas vozes. Fez edições especiais, com serigrafias numeradas e assinadas, fez uma série de coisas inovadoras para a época [anos 1980], estabelecendo parceiras com grandes instituições públicas e privadas… E, hoje, até se pode dizer que foi um editor de tal forma competente e tão pró-activo que levou a que, muitas vezes, os editores privados se tenham queixado porque sentiam que a INCM estava a invadir o seu próprio espaço editorial. Portanto, houve momento claramente em que se cruzou a fronteira em relação ao que é o normal trabalho de preservação e das edições de perfil mais comercial. Depois, quando o Vasco saiu, houve algumas pessoas que foram responsáveis por essa mudança de orientação, mas acaba por haver uma figura que marca uma inversão clara, e que foi António Braz Teixeira, que foi presidente do conselho de administração durante quase duas décadas, um homem muito ligado aos livros e à cultura, que tinha já sido director do Teatro nacional, tinha sido secretário de Estado da presidência de ministros, enfim, um homem com alto perfil político, e que teve um entendimento diferente do que devia ser o papel editorial desta empresa. Por um lado, claramente um papel mais low profile, mais recolhido, e depois mais orientado por disciplinas que ele considerava especialmente relevantes, como a Filosofia, e particularmente a Filosofia portuguesa. Assim, durante muitos anos a INCM esteve centrada nestas áreas, mas é bom dizer também que foram feitas coisas notáveis nesse período. Os grandes autores portugueses continuaram a ser editados, colecções importantíssimas como a obra de Aristóteles, que foi iniciada por António Braz Teixeira, como tantas outras que foram reconhecidas e premiadas. Porém, havia um entendimento mais recolhido, e os livros tinham até um aspecto muito mais conservador e que me parece que correspondia ao gosto das pessoas que cá estavam. E que achavam que, uma vez que o papel da INCM deve ser supletivo, não tinha de se preocupar com questões estéticas em relação aos livros. Ora, aí está uma coisa com que o Vasco se preocupava imenso. Nos anos 1980, a INCM trabalhava com os melhores designers e gráficos portugueses. Com a saída do Vasco isso foi uma coisa que se perdeu. Os livros passaram a ter um aspecto mais conservador, mais monocromático. A preocupação era mais com o conteúdo e menos com a forma. Acho que isto se prolongou durante um tempo excessivo. Não me parece que tenha posto em causa o tipo de edição que a INCM faz, a sua qualidade intrínseca – as edições críticas continuaram a ser feitas –, mas acho que a INCM se afastou do público em geral.
Mesmo os livros que fazemos hoje continuam a dirigir-se a um público culto. Não tem de ser um público profundamente especializado, mas as pessoas que se interessam pelas edições da INCM são pessoas com um certo nível intelectual… Não quero ser mal interpretado a este respeito. Qualquer pessoa pode interessar-se pelos nossos livros, mas estes são livros com um perfil pouco comercial, portanto, contam com o interesse de um público limitado. Durante aquele período parece-me que isso foi exacerbado, e a INCM estava mais centrada nos públicos universitários, em públicos muito especializados.
Um dos traços que ressalvou no vosso trabalho é a ideia de perenidade. Em que medida é que hoje não faz já sentido falar em públicos elitistas simplesmente porque quando se fala de cultura e de uma cultura que pretende ser perene isso presume já um choque violento com a cultura contemporânea que tende cada vez mais para manifestações efémeras? Quando vemos como o próprio sector editorial quase se barricou nas opções altamente comerciais, altamente vendáveis, mas que seguem tendências de estação, e que passado anos, às vezes mesmo alguns meses, já não têm a menor relevância, não lhe parece que o vosso papel, face a isto, e tentando ser perene, não pode deixar de ficar associado a uma ideia de elitismo, quando na verdade não faz mais do que defender objectos culturais que não são efémeros?
Essa pergunta é muito interessante. Por um lado, é um facto que a noção de cultura hoje é muito mais abrangente. A questão da perenidade é também vista já de um ângulo diferente. Nas sociedades contemporâneas tudo hoje se passa muito mais rapidamente, e nós temos tentado, em parte, adaptarmo-nos a isso. Aquele conceito mais estrito de cultura hoje tem uma representação diferente na oferta editorial da INCM. Hoje, temos uma colecção inteiramente dedicada ao design português. Isto seria uma coisa impensável há 20 anos. E apostámos nela porque entendemos que o design português é sem dúvida uma questão de cultura. Isso não nos oferece qualquer dúvida. Ainda por cima é um design de grande qualidade e com uma representação internacional cada vez mais importante.
No caso dessa colecção, contámos com a colaboração de um designer que é, aliás, um dos maiores designers portugueses, o Jorge Silva, e que nos propôs a criação desta colecção. A colecção D, que ele dirige, seria, como disse, impossível há 20 anos atrás. Acabámos também de lançar o segundo livro da colecção Ph, o do Paulo Nozolino. Passámos por isso a ter também, desde o ano passado, uma colecção inteiramente ligada à fotografia portuguesa. Era também o tipo de oferta editorial que dificilmente se veria na INCM há 20 anos. Temos outra colecção chamada “Grandes Vidas”, que é dirigida ao público infanto-juvenil, e que resulta de uma parceria com uma das melhores editoras de livro infantil em Portugal, a Pato Lógico, e todos os anos lançamos quatro livros. Estão já todos no Plano Nacional de Leitura, e representa a nossa preocupação de levar a um público mais jovem aquelas que são as grandes figuras portuguesas. E isto com os melhores designers portugueses. Estes livros têm ganho inúmeros prémios, e representam essa visão alargada da cultura. Dito isto, isso não significa que deixemos de ter activa a edição crítica do Eça, do Camilo, do Pessoa, do Garrett, e que não se estejam a preparar novas edições de outros grandes autores portugueses. Ou seja, há um papel muito importante de natureza patrimonial, digamos assim. E, em relação a esse papel, a INCM não se pode afastar dele. É claro que corre esse risco de passar por elitista. Não é o nosso propósito, mas, se não fizermos esse trabalho, mais ninguém o vai fazer. Uma das razões, senão a principal, pela qual há uma empresa pública a ocupar-se deste tipo de edições é para garantir que não há um vazio calamitoso, e que estas edições são feitas e bem feitas. Como, de resto, acontece na generalidade das democracias ocidentais. O Estado directa ou indirectamente garante que há um conjunto de textos canónicos que têm de ser salvaguardados. Poder-se-á dizer que isso não interessa ao grande público, mas para o que interessa ao grande público já disso se ocupam os editores privados.
E também deve haver uma noção de grande público que se constituí ao longo das eras e não no momento presente.
Exactamente. É isso mesmo. Quando nós pensamos que um livro como “O Nome da Rosa”, do Umberto Eco, foi um bestseller por toda a Europa, e revisitando-se hoje um livro desses, ao darmo-nos conta da qualidade e densidade que o livro, ao passo que, hoje, ao olharmos para os tops das livrarias, não podemos deixar de nos questionar porque é que em algumas décadas isto mudou tanto. Como é que era possível que um livro daqueles tenha sido um enorme sucesso nos anos 1980, um livro que não deixa de ser exigente, que naturalmente, como todos os bons livros, tem diversos níveis de leitura, mas que está longe de ser um romance light. Portanto, o que nos dizem os tops é que o gosto claramente se alterou e, por isso, em relação às nossas edições mais clássicas, corremos claramente o risco de sermos considerados elitistas. O que posso dizer sobre isso é que continuamos no mesmo sítio.
Hoje, não parece de todo provável que os editores possam acusar a INCM de estar a invadir o espaço deles, isto embora esteja novamente a abrir o leque, e apostar na diversidade das colecções.
Acho que não. Mesmo quando fazemos coisas infanto-juvenis temos a preocupação de fazer o tipo de livros que se enquadre no género de propostas que identificam esta casa. São sempre obras centradas na cultura portuguesa, em figuras de vulto, muitas vezes personalidades que as gerações mais novas até desconhecem, e, por isso, continua a ser um trabalho de promoção cultural. Não andamos a comprar os direitos de livros de alinhamento internacional, nem a fazer livros baratos para competir nos supermercados com os editores privados. Essa não é nem a nossa preocupação nem missão. Nunca estaremos aí. Embora alguns dos nossos parceiros sejam privados. Como é o caso da Pato Lógico, no infanto-juvenil. Estamos abertos a parceiras com editoras novas ou velhas, pequenas ou maiores. Nos anos 1980 fizemos a edição completa de Vitorino Nemésio, e agora, porque nos parece que precisamos de olhar de outra forma para esta obra, fazer livros diferentes dos que foram feitos então, seja no que toca à organização da colecção seja mesmo no que respeita ao objecto, a abordagem deve ser outra de forma a chegarmos a novos públicos. Estamos a iniciar agora uma nova edição das obras do Nemésio dirigida por Luiz Fagundes Duarte, e fizemos uma parceria com a Companhia das Ilhas, uma pequena editora açoriana , que tem editado os principais autores açorianos, e que é uma editora de qualidade literária reconhecida. Portanto, voltando às eventuais acusações de elitismo, estas não teriam cabimento porque estamos disponíveis para trabalhar com entidades com um perfil completamente diferente do nosso, desde que tenham o mesmo compromisso de qualidade que nós temos. A preocupação nestas parcerias é a seriedade no trabalho e o compromisso com a literatura. Desde que cheguei a esta instituição sempre tive o apoio dos vários conselhos de administração com os quais tenho trabalhado e temos vindo a apostar nesta lógica das parcerias. Hoje, produzimos os catálogos de uma série de museus: o Museu Nacional de Arte Antiga, o Museu Nacional de Arqueologia, o do Chiado… Enfim, muitos museus nacionais. Somos editores dos livros dos teatros nacionais, o D. Maria II, o São Carlos. E esta lógica, parece-me, é algo a que as instituições culturais portuguesas estão felizmente e finalmente a habituar-se, que é trabalharem em rede. É uma coisa que a nível internacional há muito se vez fazendo, e que não pode deixar de se fazer num país que tem recursos tão limitados.
Estão a lançar uma série de prémios literários nos países de expressão portuguesa. O prémio Eugénio Lisboa, em Moçambique, terão também um em Cabo Verde…
Sim. Já tem as inscrições abertas. É o prémio Arnaldo França. Temos um em Timor, o prémio Ruy Cinatti. Vamos ter também em breve um prémio em São Tomé que se chamará Almada Negreiros, e estamos a conversar com os nossos parceiros em Angola no sentido de perceber se poderemos criar um prémio em conjunto. Tudo isto se prende com o nosso papel de defesa e divulgação da língua. Todos estes prémios se destinam a divulgar obras escritas em português.
E como tem corrido no que toca à descoberta de obras de valor literário?
Têm sido diferente de país para país. Em Moçambique, onde o prémio foi instituído no ano passado, correu bastante bem. Tivemos trinta e tal candidatos, tivemos um júri muito qualificado, presidido por Ungulani Ba Ka Khosa, e podemos atribuir um primeiro prémio e uma menção honrosa. Quanto a Cabo Verde, tenho esperança de que corra muito bem. O prémio resulta de uma parceria com a Imprensa Nacional de Cabo Verde, e estive na sua apresentação no Festival Morabeza, na Praia, no ano passado. Houve uma grande adesão, com a imprensa a dar uma enorme cobertura e com o próprio Presidente da República cabo-verdiano a marcar presença na sessão. Admito que vá correr muito bem até porque em Cabo Verde há uma grande apetência pela cultura, seja na música e dança, seja na pintura, na literatura… Já Timor tem sido bastante mais complicado. O prémio Ruy Cinatti foi o primeiro que instituímos. Já lá vão uns seis anos e só por duas vezes é que conseguimos atribuir prémios. Temos um júri presidido por Carlos Reis que, na maioria dos anos, tem achado que não existem propostas suficientemente interessantes para poderem ser editadas. Estamos a tentar olhar para o prémio de outra forma e desenvolver mais parcerias locais para promover melhor o prémio, mas tem sido complicado.
O Prémio Camões foi atribuído há dias ao escritor cabo-verdiano Germano Almeida e numa entrevista recente ele disse que, em Cabo Verde, hoje, só cerca de 10% da população do país fala português. Também me foi dito por um promotor de eventos culturais, que tem viajado pelos países de língua portuguesa, que hoje em Timor é difícil encontrar quem se saiba fazer entender em português. O que me disse foi que há um grande equívoco em relação à difusão desta língua, pois se nos materiais de promoção se fala que o português é uma das cinco línguas que irá ter mais falantes no mundo – apontando para 500 milhões até 2100 –, na verdade, em muitos destes países, hoje, há cada vez menos prevalência do português face às outras línguas nacionais, e esse vínculo está a diluir-se.
Tenho um conhecimento relativamente profundo e já com alguns anos de experiência no que toca a esses assuntos. Aqui, na INCM, tenho desenvolvido trabalho neste campo, e já antes trabalhei como consultor do Instituto Camões precisamente sobre estas matérias, e trabalhei também como consultor da Gulbenkian… Aliás, um dos trabalhos mais recompensadores que fiz foi ter estudado a circulação do livro português e do livro em português, nos PALOP e no Brasil, o que deu depois origem a um livro da Fundação Calouste Gulnbenkian. Nesses países o português convive com uma série de outras línguas nacionais. Moçambique tem imensas línguas e a vantagem do português é que funciona como língua franca, permitindo que toda a gente depois se possa entender. Isto não quer dizer que no dia-a-dia todas as pessoas utilizem o português. E há, além disso, realidades aqui completamente diferentes. Timor é efectivamente uma realidade diferente. Quando nesse país encontramos uma pessoa escolarizada e que ande pelos 60 anos ou mais, garantidamente ela vai falar bem português. Essa é a experiência que eu tenho. Isto explica-se porque aquela foi uma pessoa que foi alfabetizada em português, e isto significa que as pessoas mais velhas falam português, algumas até muito bem. Depois há todo um período subsequente marcado pela ocupação indonésia e em que, naturalmente, os timorenses deixaram de aprender português. Era, aliás, bastante grave se fossem apanhados a falá-lo. Por isso, as pessoas que nasceram nesse período falam muitíssimo mal português. Há dois anos, numa deslocação que fiz a Timor, tive reuniões com muitos responsáveis, e mesmo ao mais alto nível político, e encontrei pessoas que falavam muito mal português. Pessoas que faziam um esforço muito grande para se fazer entender. Mas isto percebe-se porque têm a tal idade em que a ligação é mais forte à Indonésia, tendo sido nesse país que muitos estudaram. Mas a partir do momento em que Timor se tornou independente, o português ganhou um novo alento, e o próprio Estado português apoiou a sua reinserção, enviando muitos professores de português para apoiar o seu ensino.
O que tem esta língua a oferecer?
O que o português oferece a estes países vem do facto de ser uma língua ligada a uma cultura com 800 anos, uma língua universal, uma das línguas mais faladas do mundo. O Atlas da Língua Portuguesa que publicámos demonstra, aliás, que a implantação do português, nestes últimos 500 anos, se foi fazendo a uma velocidade duas vezes superior ao crescimento médio da população do mundo. E indica que vai voltar a ter um crescimento exponencial no século que vivemos.
Aí é que lhe pergunto se não pensa que pode haver um optimismo desligado da realidade. Percebo que as estatísticas tendem a insuflar o balão, mas o que vamos vendo nos países de língua portuguesa é que o português parece estar a perder o pé face a esses outros idiomas. Em Angola talvez possa haver também pouco interesse em defender o português… Não acredita que um estudo mais aturado e no terreno possa revelar um quadro bem menos optimista?
Não sei. Em relação aos grandes números só nos podemos guiar pela estatísticas oficiais que existem. Quando viajamos podemos ter experiências pessoais que, sem amostras minimamente representativas, nos levem a tirar conclusões erradas, pensando que o português pode estar em perda num ou noutro lugar. O que se passa é que estes países de facto têm outras línguas nacionais. Os catalães também falam todos castelhano, agora, entre eles, cada vez mais falam em catalão. Isso não significa que o castelhano esteja a desaparecer. Acho é que nós, portugueses, como só temos de facto uma língua – exceptuando o caso do mirandês, que é uma questão muito episódica e que se restringe a uma pequena parte do território –, Portugal tem uma identidade muito marcada. Nunca tivemos um problema linguístico: todos falamos uma única língua. Somos um país com fronteiras fixas há centenas e centenas de anos. Portanto, nós sofremos de facto de hiperidentidade. E sendo que em muitos outros países as coisas não se passam assim, acho que às vezes os portugueses tendem a deixar assustar com essa questão do protagonismo do português face a outras línguas no seio da comunidade lusófona.
Que experiências lhe dão confiança no desempenho desta língua?
A primeira visita que fiz, quando comecei a trabalhar neste âmbito da língua, foi a Moçambique. Já lá vão muitos anos, e tive uma reunião com um grande especialistas, que depois foi reitor de uma universidade moçambicana, e depois ministro, e nessa altura em Portugal discutia-se, a propósito da adesão de Moçambique à Commonwealth, se isso poderia significar essa decadência do português. E eu expus-lhe isso. E ele disse-me: Isso não faz qualquer sentido. Fazemos parte da Commonwealth porque partilhamos fronteiras com vários países que a integram, mas olhe que ainda aqui há pouco tempo numa reunião com Estados africanos recebemos uma série de documentação que não vinha em português, e sendo este uma das línguas oficiais, devolvemos a documentação toda dizendo que não era aceitável recebê-la sem estar em português.” E depois disse-me mais uma coisa: “Sempre gostaria de ter a certeza que o governo português, perante uma situação idêntica, teria feito a mesma coisa.” E riu-se.
O que lhe parece?
Não podemos saber o que faria o governo português, mas percebo o que ele queria dizer. Há, de facto, uma preocupação deles quanto à promoção da língua. Ainda recentemente houve um grande evento que o “Jornal de Notícias” organizou para marcar o seu aniversário, um evento em que a INCM participou, e que contou com um grande debate sobre a língua no Palácio da Bolsa, e onde marcou presença o Presidente da República, e o de Cabo Verde também, diversos ministros e o prémio Nobel Ramos Horta, enfim, uma série de gente. Também participei no debate e há uma coisa que é indiscutível… e quando me dizia isso em relação a Angola é uma coisa com a qual não posso concordar, porque todos estes países, ao tornarem-se independentes fizeram mais pela língua e pela divulgação do português do que nos fizemos quando lá estivemos. E atenção que em relação a isso os estudos universitários e as estatísticas não deixam margem para dúvida: há mais gente a falar hoje português do que havia quando os portugueses saíram, em 1974, após o 25 de Abril. E não há dúvidas a esse respeito. É assim em relação a Moçambique e em relação a Angola também. Portanto, esta língua é a língua de todos nós. É a nossa e é a língua deles. No tempo colonial falavam português os portugueses. Mas se formos fazer um estudo de quantos naturais das colónias estavam nas universidades, por exemplo, vamos ficar chocados com o número extraordinariamente baixo. Ou seja, o Estado português nunca se preocupou com a questão da língua e sua difusão junto das populações locais. O português, hoje, é tanto uma língua destes países como é nossa, e todos estes países têm feito mais pela promoção do português desde as independências nacionais do que os portugueses fizeram. Em relação a isso os estudos não deixam qualquer margem para dúvida. Por mais que nos possa custar a nós, como portugueses, aceitar isso, essa é uma verdade histórica indiscutível.