Trabalhava devagar. Avançando, às vezes, a um ritmo de não mais que um parágrafo por dia. Tinha um génio espinhoso, que balançava entre uma confiança demolidora e uma insegurança raiando o desespero absoluto. Não era tanto o alcance das suas capacidades, mas algo que estava para lá do seu controlo: questionava-se se a literatura podia servir algum propósito realmente grandioso. Nada mais do que isso interessava a V.S. Naipaul.
O escritor britânico que morreu, aos 85 anos, este sábado, em Londres, era conhecido pela sua atitude que, mais do que impaciente, podia ser implacável com os seus interlocutores, e tinha por hábito desligar o telefone aos jornalistas ou abandonar uma sessão pública quando o aborreciam ou irritavam as perguntas que lhe dirigiam. Se não hesitava em juntar outro nome à sua longa lista de inimigos e detratores, parecia tirar prazer de causar desconcerto, mostrar-se difícil, temperamental, até desdenhoso. Uma figura que fazia esquecer a baixa estatura, com a sua expressão ameaçadora, “o rosto de falcão”, os olhos que do cansaço tinham feito uma forma de dureza, com um controlo impecável da voz, adquirido na juventude, ao editar um programa de rádio no Serviço Caribenho da BBC. Aproveitando-se da imagem distante do grande escritor, depressa punha em sentido aqueles que se lhe dirigiam. Mas um aspeto que sobressai das várias conversas que teve com Jonathan Rosen e Tarun Tejpal para a entrevista da “Paris Review” de 1998 é que, na verdade, Naipaul fazia de tudo para se proteger da vulgar tagarelice que, como um insistente fungo, assedia constantemente a conversa à volta dos livros. Com os seus contornos vagos, as suas frágeis tentativas de abarcar as grandes questões, para refocilar nos lugares-comuns, e acabar por se satisfazer com pequenas variações de generalizações míopes e frases feitas.
No começo dessa entrevista, invetiva Rosen a não esperar dele conjeturas que abarquem toda a sua obra, mas a descer a aspetos mais específicos, para que possa assim focar-se, adiantando que isso não só o estimula mais como a conversa será mais útil. A par disto, num ensaio que escreveu para a “New York Review of Books” sobre ter-se tornado escritor, lembra o exemplo de Philip Larkin, poeta e ficcionista inglês com uma obra escassa mas decisiva, e a quem atribui esse “talento doloroso” que entende ser também o seu.
“Estás a tentar descobrir o que queres dizer e, ao mesmo tempo, como dizê-lo. E isso leva tempo”, escreveu Larkin. Naipaul acrescenta que isto, se parece simples, é muito difícil de fazer. “A literatura não é como a música; não é para os jovens; não há prodígios na escrita”, vinca. “O conhecimento ou a experiência que um escritor busca transmitir pode ser social ou sentimental, mas leva tempo, pode levar a maior parte da vida de um homem para que processe essa experiência, para que perceba aquilo por que passou, e, depois, é preciso um grande cuidado e tato para que a natureza dessa experiência não se perca, não seja diluída em formas impróprias.”
Como Kenneth Ramchand refere no obituário que dedicou ao escritor que faria 86 anos na próxima sexta-feira e que nasceu em 1932 na ilha de Trindade (Antilhas), a sua maior virtude literária estava na qualidade da sua escrita para se deixar apreender de forma imediata. “Ele construía frases claras e irredutíveis, organizadas em parágrafos com um horizonte definido. O seu controlo da linguagem e a retórica nos seus romances era de tal ordem que conseguia levar–te a acreditar nele mesmo quando as suas verdades só em parte o eram.”
Vidiadhar – ou apenas Vidia, como era tratado pelos mais próximos – Surajprasad Naipaul tinha 11 anos quando o desejo de se tornar um escritor começou a visitá-lo. Diz que não demorou muito para que se tornasse uma ambição enquistada no seu espírito e tomou como um mistério o facto de isto ter acontecido muito antes de ter esboçado qualquer texto. Mais tarde, quando lhe perguntavam quem eram o seus escritores preferidos, a sua resposta era: “O meu pai.” Seepersad, chamava-se o pai, um repórter no “Trinidad Guardian” que, contrariamente aos irmãos, tivera a oportunidade de frequentar a escola e cuja grande aspiração era viver como ficcionista.
Nascido em Chanaguanas, na mais populosa das ilhas da antiga colónia britânica, o avô paterno de Vidia viera da Índia, no séc. xviii, como servo contratado para trabalhar nas plantações de cana–de-açúcar. Como James Wood referiu num ensaio de 2008, Naipaul é o escritor que ao longo da sua vida, e mesmo depois de ter forjado uma das mais ilustres carreiras literárias da segunda metade do século passado, nunca se libertou da sua ilha natal, “regressando obsessivamente à luta, à vergonha e à fragilidade dos primeiros anos de pobreza que viveu em Trindade; à improvável jornada que fez desde uma orla do Império Britânico até à metrópole central”, e isto sem se livrar do estado de “precariedade, como ele o entendia, da sua longa vida em Inglaterra – ‘um estrangeiro aqui, com a nervosa consciência de um estrangeiro’, como ele se descreve em The Enigma of Arrival (1987)”.
Se a condição do exílio é um dos traços fundamentais transversal à obra de muitos dos escritores que marcaram a literatura do séc. xx, Naipaul encarnava plenamente a sensação de estar deslocado. Tendo abandonado definitivamente a antiga colónia britânica, nunca chegou a sentir-se em casa em Inglaterra ou em qualquer outro lado. E quando o Nobel lhe foi atribuído, a Academia Sueca descreveu-o como um “circum-navegador literário que só se sentia realmente em casa estando próximo de si mesmo, dentro da sua inimitável voz”.
Contudo, como lembra Rachel Donadio no obituário do “New York Times”, a falta de uma referência existencial era algo que tanto o atraía como castigava. Assim, rejeitava furiosamente que tentassem atribuir-lhe uma identidade étnica ou religiosa específica e terá chegado ao ponto de abandonar uma editora quando se viu listado no catálogo como um “romancista das Índias Ocidentais”.
Diz Wood que, “uma e outra vez, a sensação de estar no centro de um aflitivo cerco se expande para abranger outros, e ele consegue, sem vaidade nem condescendência, misturar na sua dor a dos outros: o império de um é colonizado pelas suas personagens. E estas vão do maior ao mais humilde, do educado ao praticamente iletrado, do real ao ficcional, mas estão unidas pela sensação de deslocamento”.
Na sua extensa obra, Naipaul prova uma enorme sensibilidade e sintonia com as mudanças históricas, de tal forma que a sua autobiografia – e vários dos seus romances, incluindo aquele que o lançou e se manteve o mais famoso, “Uma Casa para Mr. Biswas” (1961), são profundamente autobiográficos – se sobrepõe à vasta história do Ocidente, como Rosen notou.
Hindu não praticante, com os anos, Naipaul foi deixando que o seu pessimismo aflorasse de forma cada vez mais insistente na sua obra e, no entanto, foi sempre um defensor da civilização ocidental. Sendo considerado um dos grandes romancistas do seu tempo, por muitos talvez até o maior, a partir de certa altura começou a mostrar-se frustrado com as limitações da ficção. Defendia que o romance tinha atingido o auge no séc. xix e que o modernismo estava morto. Confessou até que só escrevera o romance “Half a Life” (que saiu no ano em que ganhou o Nobel) para cumprir o contrato que tinha com o editor. Para Naipaul, era no campo da não ficção que estavam as novas fronteiras que cabia agora explorar. A hibridez desse género colocava-o, segundo ele, numa posição mais vantajosa para capturar as complexidades do mundo em que vivemos.
Os seus livros de viagens têm vindo a ganhar ascendente face aos romances e são muitos os escritores que assumem a influência do seu estilo, as possibilidades literárias que os seus modos de ver e descrever o mundo lhes abriu. Naipaul dizia preferi-los aos seus romances e o certo é que não dispensou muitas das conquistas formais destes ao escrever sobre as viagens que fez pelo continente africano, pelas Américas, pela Índia, Mauritânia, Indonésia, Irão, Paquistão e tantos outros cantos da terra onde desenvolveu uma leitura profunda e tantas vezes cáustica das contradições do mundo pós-colonial. Esses livros dão-nos personagens e cenas, diálogo e um fôlego narrativo que não ficam aquém dos romances. Mas ao confrontar tópicos tão complexos quanto controversos como o imperialismo e os nacionalismos emergentes, a religião e o fundamentalismo, a revolução e a mentalidade colonial, depois de ser armado cavaleiro pela rainha em 1989, na década que se seguiu tornou-se um íman dos cavaleiros da boa consciência, acusado de ilibar o colonialismo ao viajar pelo Terceiro Mundo, onde foi testemunha de uma segunda era medieval à espera de engolir novamente o mundo com as suas guerras santas, revoluções às três pancadas e fanatismos para todos os gostos lutando por bairros e esquinas. Ora, se as suas descrições, de tão vigorosas, se tornam inelutáveis e facilmente envenenam a perspetiva do leitor, se denunciou a barbárie e o primitivismo nas sociedades africanas, e se, ao escrever sobre a Índia, não conseguia ultrapassar o fenómeno da defecação pública (“Eles defecam nas colinas; defecam nas margens dos rios; eles defecam nas ruas”), certo é que só quem olha para a literatura como um simples meio ao serviço de fins sociais é que ainda exige dos escritores esses inferninhos de segunda, cheiinhos de boas intenções.
Ramchand diz que, nos anos 1990, Naipaul se tornou o cínico poeta do pós-imperialismo e o peculiar profeta da violência, da desorientação global e da sensação de não se ter uma referência, um lugar a que chamar casa neste mundo. E adianta que, por isso mesmo, muitos consideram-no o primeiro escritor moderno global. Talvez a versão dos factos que Naipaul contava fosse difícil de engolir, talvez tenha sido demasiado específico na hora de descrever o horror, talvez a sua peculiaridade tenha sido apenas a coragem de não falar em termos vagos, de pôr o dedo um pouco mais fundo, nesse nível onde a maioria das pessoas perde o interesse pela verdade.