Manuela Nogueira. ‘O meu tio Fernando tinha uns bocados para brincar e outros em que estava no seu mundo’

Nasceu há 92 anos no apartamento da Rua Coelho da Rocha onde hoje é a Casa Fernando Pessoa. Viveu lá, com os seus pais e o tio, o célebre poeta, até aos dez anos. ‘Hoje parece especial, mas para mim não havia nada de esquisito em ter aquele tio lá em casa’.

No início da conversa, perguntamos-lhe se podemos baixar o som da televisão. «Pode desligar. O comando do MEO está em cima do maple grande», indica a proprietária. «Estive casada 71 anos e meio, é uma coisa rara, e fiquei sozinha nem há dois meses. Sinto – como hei de dizer? – aquele vazio. E quando estou sozinha ponho música clássica, dá-me um bocado de companhia».

Nascida naquela que hoje é a Casa Fernando Pessoa, em Campo de Ourique (Lisboa), Manuela Nogueira vive atualmente no Estoril. «A minha mãe tinha nascido em Durban [a cidade sul-africana onde o padrasto de Fernando Pessoa, o comandante João Miguel Rosa, foi colocado como cônsul] e adorava o mar. E queria muito estar numa casa de onde se visse o mar». Para agradar à mulher, o pai da nossa entrevistada comprou o terreno e mandou construir a casa cor de rosa que hoje ostenta uma placa oval à entrada onde está escrito que Fernando Pessoa passou por ali. A rua em frente também tem o nome do poeta.

Aos 92 anos Manuela Nogueira não apenas mantém a lucidez, a memória e o espírito crítico intactos como ainda conduz. Sempre prezou a sua autonomia, e foi por isso que trabalhou como agente imobiliária, de modo a poder dispor do seu dinheiro sem ter de prestar contas ao marido. Ainda chegou a mostrar casas na zona de Azeitão a Francisco Sá-Carneiro e Snu Abecassis.

Diz que não gosta de ser comparada com ninguém, e que o facto de o seu tio ter sido o grande poeta do século XX português «não obsta a que goste de escrever». Além da escrita, também pinta. «Ali na sala tenho três pinturas feitas por mim, de flores venenosas. São as mais belas. Esquisito, não é?».

Quando falámos ao telefone disse-me que sabia pouco sobre o seu tio porque tinha só dez anos quando ele morreu. Apesar disso escreveu quatro livros sobre ele.

Quando digo que sei pouco é porque não sou uma pessoa que invente. Infelizmente, o que há mais é pessoas a inventar sobre o Fernando Pessoa. Sobre o Fernando Pessoa e sobre todas as pessoas célebres – uma maneira de ser novidade é inventar. Mas eu isso não faço.

Também é uma personalidade que se presta a que se especule, não acha?

Lá isso presta-se, o mais possível. Eu acho que ele gostava que se prestasse, quer dizer, todo ele é um teatro. Representava um papel conforme as pessoas com quem estava. Acho que essa é uma característica das pessoas que escrevem, conseguir tomar um bocadinho a personalidade do ambiente em que estão. E ele, com aquela inteligência e aquela multiplicidade de personagens interiores… Custa aguentar a nossa personalidade, imagine agora o que é aguentar várias!

É como aqueles homens que têm várias mulheres…

Exatamente! Uma já deve ser um pavor [risos].

Mas como escreveu então quatro livros se sabe pouco?

Algumas coisas são repetidas e muito vem de papéis, de documentos que existiam lá em casa. E é a grande memória da minha mãe, que fez sempre o possível para me falar do passado que eu não conheci.

Mantinha viva a memória da família?

Muito, muito… E era muito bonito, porque a minha mãe era uma pessoa muito reta e tinha uma memória autêntica – também não inventava nada. Era mais nova mas o meu tio Fernando tratava-a um bocado como se fosse mais velha, porque ela era mais assisada, por assim dizer, para a vida.

A sua mãe e o seu tio eram próximos?

Muito próximos. Quando a minha mãe veio para Portugal da África do Sul, foi para a casa alugada pelo meu tio Fernando, que é hoje a casa Fernando Pessoa – Rua Coelho da Rocha, 16, 1.º direito, era a nossa morada. E foi aí que eu nasci, nessa casa.

Ainda se lembra de como era?

Lembro-me de tudo, da casa toda, até já a desenhei. A pessoa não se esquece da casa onde nasceu. 

Até que idade viveu lá?

Até aos dez anos – mas não ininterruptamente. O meu pai era militar e foi colocado em Évora, onde estivemos dois ou três anos. O tio Fernando ia no comboio visitar-nos muita vez. Isto que digo pode ser absolutamente confirmado, porque nas cartas da Ofélia ela diz: ‘Porque é que foste passar os teus anos com a Teca – que era a minha mãe -, com o Chico – que era o meu pai – e com a Mimi – que era eu – e não vieste passar comigo?’.

Ficava com ciúmes?

Tinha ciúmes, o que é natural. Ele namorava-a mas ia passar o aniversário connosco. Ele tinha perdido a mãe, que era a pessoa que mais adorava, uma mulher muito inteligente e muito culta – especialmente para aquela época. Falava inglês, francês, escrevia poesia também. Foi muito triste ele ver a mãe muito diminuída ainda nova – antigamente as pessoas com 60 e tal anos já eram velhas. E então ficou muito ligado à irmã.

Fale-me um bocadinho sobre a casa na Coelho da Rocha. Como era?

Não era nada como é agora, só a fachada. E as janelas também são iguais. Entrávamos, à esquerda havia um pequeno escritório, com uma secretária e estantes de livros. Aí trabalhava o meu pai – o meu pai toda a vida trabalhou imenso, em contabilidade, em tudo quanto havia. Nunca quis ser só militar, achou que para dar uma vida melhor à família tinha de fazer outras coisas. O tio Fernando e o meu pai sempre se deram lindamente, gostavam muito um do outro, por isso vivíamos sempre com muita harmonia. A minha mãe zangava-se mais com o meu tio porque queria que ele tivesse saúde e achava que a vida que ele tinha não proporcionava saúde. Fumava doidamente, às vezes não tinha bem horas para comer…

Comia pouco?

Não. Comer, comia bem – e apreciava a comida de casa. Mas… Sabe, viver com uma pessoa assim hoje em dia parece uma coisa especial. Naquela altura era normal. Para mim não havia nada de esquisito em ter aquele tio lá em casa. Simplesmente, quando as pessoas começaram a dizer que ele era isto e aquilo, já eu era adolescente e ele tinha morrido, comecei a pensar: ‘Não era nada assim como estão a dizer’ [risos]. Porque ele realmente era uma pessoa divertidíssima. Ele vivia para fazer rir as crianças. Ele não podia estar ao pé de crianças sem fazer um monte de disparates. Mesmo disparates. Ele não era um educador, era um deseducador. E isso para crianças era uma maravilha. A vida naquela casa era uma vida normalíssima, um casal normalíssimo, a minha mãe era dona de casa, como naquela altura se era, apesar de tocar piano, e escrevia, também era uma pessoa com um certo jeito para as artes. E o meu pai trabalhava doidamente, sempre o vi a trabalhar doidamente.

O seu tio tinha um espaço dele que não gostasse que fosse invadido?

O quarto principal da casa, virado para a Rua Coelho da Rocha, ao lado do tal escritoriozinho de que eu falei, tinha duas janelas e os meus pais acharam – como era um quarto maior, com mais sol – que quem ia para lá eram as crianças. Os meus pais tinham um quarto interior com porta para esse quarto onde eu ficava e outra para o corredor, e ao lado desse quarto dos meus pais havia um mais pequeno, também sem janela, que era o do tio Fernando. Tinha sempre a porta aberta para o corredor porque em frente ficava uma sala com vista para um jardim. Portanto ele tinha muitas vezes a porta do quarto aberta porque era um desafogo, já que não tinha janela.

Era aí que ele escrevia?

Ele muitas vezes ia para a mesa da casa de jantar com papéis e coisas assim, vi-o muitas vezes com uma máquina de escrever, também, e observei essas coisas. Mas nessa altura não ligava nenhuma. Lembro-me é de o meu pai e a minha mãe conversarem muito com ele no fim do café, depois do almoço ou do jantar. Falavam, falavam, falavam. Acho que é uma memória que a minha mãe me contou mais tarde, que dizia: ‘Ó Fernando, tens coisas tão bonitas’, porque ele lia muita coisa à minha mãe e ao meu pai, poesia, muita coisa. Dizia: ‘Esta noite não consegui dormir e escrevi isto’. E depois lia. E a minha mãe e o meu pai diziam-lhe: ‘Mas que pena, Fernando. São coisas tão maravilhosas, que pena não haver possibilidade de serem vistas, de serem publicadas’.

Era ele próprio que não queria publicar?

Acho que não. Ou a pessoa conhece jornalistas ótimos e empenhados que ajudam a revelar alguém ou se não conhece as pessoas ficam um bocado num limbo. Naquela altura, só aquele grupo à volta dele é que começou a ver que aquele homem era um bocadinho diferente da maioria e que a maneira de escrever era especial. Mas foi um grupo, apesar de ele mesmo assim ter conhecido pessoas importantes, até porque ele não era bisonho como às vezes dizem. 

Não era metido consigo?

Uma pessoa que escreve tem de ser um bocadinho retraída. Ele tinha momentos – nunca mais me esqueci da figura dele – na Rua Coelho da Rocha em que eu sabia que não o podia interromper. O corredor era em ângulo reto, e eu lembro-me de o ver andar nesse ângulo reto, mãos atrás das costas, sempre de calças cinzentas escuras e camisa branca – sempre – a passear, ininterruptamente nesse corredor. E eu tinha a noção absoluta de que naquela altura não o podia interromper, que ele não ia brincar comigo. Fiquei sempre com essa noção. Mais tarde percebi que estava a pensar, tinha algum plano na cabeça dele. E eu tinha noção de que não o podia interromper, tinha mesmo. Ele tinha uns bocados para brincar, e brincava mesmo, e outros em que estava consigo próprio. Estava no seu mundo.

A escrita dele dá ideia de que tem momentos depressivos, de maior angústia. Isso notava-se no dia-a-dia?

Eu era demasiado pequena para poder notar. Poderia perguntar isso à minha mãe, se fosse viva. Segundo a minha mãe, ele tinha épocas muito depressivas. Mas qualquer pessoa muito inteligente tem muitos períodos de interrogação. É muito mais fácil uma pessoa simples e, enfim, com pouca cultura, ser alegre. Qualquer pessoa que seja intelectualmente profunda é muito difícil manter uma jovialidade constante.

Mesmo ele diz isso naquele poema: ‘Gato que brincas na rua’ [como se fosse na cama/ invejo a sorte que é tua…].

Exatamente. É o que eu estou a dizer. É muito difícil as pessoas com um certo grau de inteligência e de cultura aceitarem o dia-a-dia sempre. As notícias que vêm nos jornais muitas vezes estúpidas, mal escritas… Hoje em dia muito mal escritas.

Mantém um espírito crítico muito aguçado.

Pois é. É bom ter espírito crítico.

Referiu que o seu tio andava sempre de calças cinzentas e camisa branca. Ele preocupava-se com o que vestia?

Ele preocupava-se muito em estar impecável. Hoje em dia dizem isto e aquilo, mas as modas mudam. Por exemplo, agora usam-se as calças muito compridas.

Rotas, até…

Isso já é outro sector – o sector dos meus netos [risos]. Isso era impossível. Mas às vezes dizem: ‘O Fernando usava as calças que parecem arregaçadas’. Naquela altura as pessoas não usavam as calças a cair em cima do sapato. Não era só o Fernando, era toda a gente. Mas dizem isso como se fosse especialidade do Fernando. Não era, era geral. Ele era muito cuidadoso. Tínhamos uma lavadeira, a dona Irene – ‘ai, se eu casasse com a filha da minha lavadeira’, isso é uma frase de um poema – que tinha um saco de pano cru debruado a vermelho e com as letras F.P. assim bordadas, que era o saco da roupa suja do Fernando Pessoa. Chegava lá a casa, batia à porta, trazia o saco, ia buscar a roupa suja dele, tratava da roupa e passados dois ou três dias vinha com um cesto à cabeça com a roupa engomada. Ele sempre se vestiu bem. Cuidadoso – nunca o vi desmazelado – e de lacinho preto, quase sempre. Por que começou a usar o lacinho preto não sei, mas sempre usou.

Às vezes temos a ideia de que os intelectuais são pessoas desarrumadas porque não perdem tempo com essas coisas comezinhas. Era o caso do seu tio?

Não, era muito arrumado. Muitíssimo arrumado, tinha o quarto sempre impecável. Tinha uma cómoda que está hoje na casa Fernando Pessoa – não tem valor especial, só por ser dele – e uma cama que deve ter tido bicho, deitou-se fora. Era uma pessoa extremamente arrumada, não era nada de deixar a papelada toda espalhada. Muito organizado. Hoje em dia penso como é possível. Tinha a noção, talvez, de que fosse morrer cedo, e por isso deixou tudo arrumado na arca em envelopes. E por fora: ‘L.D.’, Livro do Desassossego. Uma pessoa que morre com aquela idade [aos 47 anos] não era natural pensar que ia morrer. Mas ele parece que sabia, tinha tudo muito arrumado, o que me espanta.

Acha que isso pode ter alguma coisa a ver com os cálculos astrológicos que ele fazia?

Não. Ele teve um grande amigo que gostava muito de astrologia, com quem trocava muitas impressões. Ele interessou-se verdadeiramente por tudo, não foi uma pessoa que deixasse em branco coisas dessa altura. E há modas. Naquele século a grande moda em Paris era a história da mesa de pé de galo. E a minha tia Anica – conheci-a e o aspeto dela era de uma senhora absolutamente antiga, muito digno, nunca poderia imaginar que se interessasse por alguma coisa destas, mas é verdade. Sentavam-se à volta dessa mesa, punham as mãos e falavam com pessoas que já morreram. Mas era um hábito da Europa daquela época.

E uma moda, também?

Acho que era uma moda.

O seu tio oferecia-lhe presentes?

Ele adorava oferecer e eu adorava receber. Naquela altura à mesa cada um tinha uma argola para o guardanapo. O meu tio sentava-se à minha frente e quando eu chegava e via o guardanapo levantado pensava ‘Tenho presente’. E ele adorava estar do lado contrário a apreciar a miúda pequena a tirar o boneco. Lembro-me de uma vez me dar um carrinho de boneca – antigamente não havia plástico, era tudo em folha [metálica] – então era um carrinho deste tamanho com um bonequinho de loiça lá dentro. Eu já era crescida e ainda adorava aquele bonequinho por ser tão pequenino. E o último presente que ele me deu, que até levei quando fui ao Brasil, são três rosas em metal polido – aquilo não é ouro nenhum. Foi o primeiro broche que eu tive. Guardei-o sempre porque achei que era engraçado ter uma coisa dele. Ele não tinha fortuna para comprar nada, mas tudo quando comprava era com muito gosto.

Ainda tem esse broche?

Tenho. Não sei se está aqui se está na minha casa em Lisboa.

Lembra-se do dia em que o seu tio morreu [30 de novembro de 1935]?

Nunca mais me esqueço. A minha mãe tinha nascido em Durban [África do Sul] e adorava o mar. E queria muito estar numa casa de onde se visse o mar. Então o meu pai, que fazia tudo para agradar à minha mãe, andou por aqui à procura até que encontrou este terreno, que não era muito caro, e tinha toda a vista do mar porque aquele prédio branco ainda não existia. Quando o meu tio morreu, os meus pais tinham acabado de construir esta casa e estavam tão entusiasmados que quiseram vir estreá-la e passar aqui o primeiro inverno. E o meu tio vinha cá imenso.

De comboio?

De comboio. Depois subia esta rampa por aqui acima. Vinha cá imenso e até chegou a dormir aqui umas noites. Por isso é que tenho uma lápide à porta – até tenho de mandar arranjar, que está velha, velha. Isto para dizer que no dia 27 de novembro a minha mãe fazia anos. E ficou muito admirada de o tio Fernando não aparecer. E nisto aparece um telegrama: ‘Um grande abraço de parabéns do Fernando para a Teca’. A minha mãe tinha partido uma perna aqui em baixo dois dias antes, e estava deitada, não podia sair. Então o meu pai meteu-se no comboio e foi à Coelho da Rocha. Bateu à porta e ninguém respondeu. E então bateu à porta das donas Virgínias, uma mãe e uma filha que eram tias do Jorge de Sena e moravam ao nosso lado. E elas disseram: ‘Senhor capitão, o Fernando não se sentiu bem, foi com um primo para o hospital de S. Luís.

Onde acabou por morrer.

E muito rapidamente. Ele teve um volvo [uma torção intestinal], que na altura não se operava. Ele nunca teria morrido se fosse agora. Quando percebi que isso tinha acontecido – foi a primeira morte da minha vida – fiquei sem poder enfrentar ninguém. Estava aqui em frente da casa, o chão era de saibro na altura, e eu tinha a mania de jogar o aeroplano. E pus-me a jogar o aeroplano todo o dia. E a nossa empregada, a Conceição: ‘Ó menina, venha almoçar’. Mas eu não saía do jardim. Não queria enfrentar a minha mãe. ‘Se eu estou assim tão entupida com esta notícia tão pavorosa, como é que vou olhar para a cara da minha mãe?’.

Dado que a sua mãe sabia que o modo de vida dele não era o mais saudável, também foi apanhada de surpresa ou era algo que já pudesse suspeitar?

Ele não estava especialmente doente para morrer. Ele tinha muitas coisinhas – garganta, tosse, sei lá, aquelas maleitas que as pessoas têm quando são novas, que às vezes não são graves mas maçam, não é? – e ela ralava-se. Ele bebia demais, embora nunca fosse bêbedo. Essa história do bêbedo foi inventada. Nunca ninguém o viu bêbedo. Há pessoas que bebem pouco e embebedam-se e há outras que bebem muito e não se embebedam. Havia naquela época um costume. Agora a pessoa vai tomar um cafezinho, o intervalozinho de vida é ir tomar um cafezinho. Antigamente era um copo de três. Eram hábitos diferentes. 

Como reagiu a sua mãe?

Foi um choque enorme, até porque a minha mãe nem o pôde ir ver porque estava de perna partida. E sofreu imenso com a morte dele, imenso. E eu também. Para mim ele ter morrido era uma coisa impossível de se poder aturar e aguentar. Foi uma saudade para sempre. Não tinha mais tio nenhum, porque o irmão do meu pai era oficial de marinha, andava sempre a viajar, e os irmãos da minha mãe estavam em Inglaterra. O único tio era o tio Fernando. Ainda por cima brincalhão, engraçado, cheio de ideias, fazia uma quantidade de coisas para as pessoas rirem, enfim, era uma pessoa divertidíssima.

Herdaram alguma coisa dele?

Pouca coisa, quase nada. Umas lunetas…

E papéis, livros?

Papéis sim. A arca ficou em nossa casa.

Nesta?

A grande arca, muito falada, ficou sempre na Rua das Praças, à Lapa, para onde nos mudámos. Era uma casa muito grande, num prédio todo em azulejo, tinha 13 janelas para a rua. Vinha o Gaspar Simões, montes de gente para visitar a arca.

E fotografias?

Essas que andam por aí são todas nossas. Muitas até foram feitas aqui na casa do Estoril. No jardim, quando se desce a escada, o espaço era aberto e temos a fotografia do Fernando Pessoa comigo, com o meu irmão, todos aqui em fila. Mas antigamente não se tirava tantas fotografias como agora. Hoje em dia tiram-se e desaparecem, é uma técnica que não é para a posteridade, evapora-se.

A Teresa Rita Lopes [especialista na obra de Pessoa] contou-me que a sua mãe dizia: ‘Nós não fazíamos a mínima ideia de que o Fernando viesse a ser tão importante’. Quando é que começaram a aperceber-se?

As pessoas, quando convivem com as outras… como eu lhe disse, a nossa vida era normalíssima, para mim não havia nada de extraordinário em ter aquele tio lá em casa. Sem querer comparar, porque não há comparação possível, eu já escrevi vinte livros e tenho feito palestras em vários sítios do mundo – 90% por causa do Fernando Pessoa, mas algumas também pelas coisas que eu fiz. Acha que cá em casa os meus netos e bisnetos ligam alguma coisa a isso? Nada! As minhas netas têm o meu livro assinado, mas as pessoas com quem convivemos todos os dias ao longo dos anos, com quem brincamos, fazem parte de uma gíria que não tem nada a ver com o intelectual. Com os meus netos até tenho vergonha de falar em alguma coisa que escrevi. Há um certo…

Pudor?

Pudor. Não sei porquê, mas há. Se eu souber patinar ou fazer skate ou aquelas coisas nas ondas, toda a gente quer ver. Mas a parte intelectual fica sempre nublada por uma certa cerimónia, uma certa retração.

Com a descoberta da obra do seu tio, foi conhecendo facetas diferentes. A ideia que tinha dele, da personalidade dele, foi-se alterando?

Quando somos pequenos temos uma ideia sobre as pessoas. E depois crescemos e temos outra. Com os pais também é assim. Em pequenos gostamos dos pais de uma maneira que depois se vai alterando. Com o meu tio também aconteceu isso. Eu tenho uma máxima admiração pela facilidade que ele teve em encontrar as palavras certas para ser ao mesmo tempo original, intelectual e sentimental. Urdiu estas três coisas de tal maneira que qualquer pessoa, seja mais culta ou menos culta, gosta sempre. Ele coitado nunca teve a felicidade de perceber o entusiasmo que gerou em tantas gerações. Isso é que me faz mesmo pena. Primeiro, teria vivido mais desafogadamente…

Vivia com falta de dinheiro?

Ele não ligava nenhuma ao dinheiro, mas qualquer pessoa precisa. Nunca passou fome – essa ideia é uma coisa muito postiça, porque ele dinheiro para comer, para se vestir… Ele vestia-se no Lourenço & Santos, quem se veste no Lourenço & Santos não passa fome. Não gostava muito de pedir emprestado, mas pediu, e nunca passou miséria. Ia à caixa num emprego qualquer, fazia uma notazinha, e tirava dez ou vinte escudos para uma coisa qualquer de que precisasse, e depois falava ao patrão. Mas além desse aspeto monetário, uma pessoa quando escreve é para partilhar aquilo que está a sentir. E se não partilha fica triste. Acho que ele gostaria muito de ter percebido que havia milhões de pessoas que queriam saber o que ele pensava e o que sentia.

Mas ele tinha uma grande noção do seu valor e da sua obra.

Uma pessoa que não é burra geralmente tem uma noção das suas falhas e das suas qualidades. Isso ele tinha essa noção. Mas uma coisa é ter a noção, outra coisa é ter o reconhecimento geral.

Acha que ele lidaria bem com essa grande popularidade?

Acho que não lidaria muito bem. Apesar de não se importar de se exibir. Na Coelho da Rocha fazia aquelas macaquices para a gente se rir…

Mas era num ambiente íntimo, mais protegido…

Pois era. Ele chamava àquilo desponderações. E a família toda achava graça. 

Qual é o seu poema favorito de Fernando Pessoa?

São tantos, tantos…

Sabe-os de cor?

No colégio francês tive a sorte de ter um professor extraordinário, um grande erudito. Mas obrigava-nos a saber poesia de cor. Naquela altura era o Lamartine. O dia em que dizia que eu tinha de decorar umas estrofes era o dia pior da minha vida. Sendo eu uma pessoa que adora poesia, não tenho memória nenhuma para fixar. E há tanta coisa de Fernando Pessoa que eu gosto que não podia dizer de qual gostava mais. Tanta, tanta. Há uma em que ele fala de Nossa Senhora que é muito bonita. Dizem que ele não teve fé nenhuma. Ele teve a mesma fé que as pessoas inteligentes têm, que é a fé da dúvida. Eu sou católica, mas sou uma pessoa cheia de dúvidas. E ele também era.