Itália: Era branca a besta negra

Primeira vitória da seleção nacional depois de quatro derrotas frente à Espanha – no dia 18 de junho de 1925. Um acontecimento!

Em junho de 1925, a seleção nacional apenas havia feito quatro jogos, todos contra a Espanha, e perdera sempre: 1-3, 1-2, 0-3, 0-2. A última derrota sucedera um mês antes. Não havia tempo para carpir mágoas, no entanto. A Itália chegaria a Lisboa no dia 17 e os portugueses não queriam perder nova possibilidade de chegarem à tão desejada vitória. Curiosamente, a presença em Portugal das representações de Espanha e de Itália, países submetidos a regimes autoritários como eram o de Primo de Rivera e de Benito Mussolini, davam aos acontecimentos um peso político de alguma forma relevante. Pouco tempo antes, a 18 de abril, à semelhança do que já sucedera a 5 de março e do que se viria a repetir a 19 de julho, uma tentativa de revolta militar tinha sido sufocada pelo Governo democrático de Vitorino Guimarães. O exército e até a opinião pública começavam a desenvolver uma simpatia crescente por uma solução de tipo espanhol ou italiano. O Estado de Sítio fora declarado e imposta a censura à imprensa. O 28 de maio de 1926 estava embrionário.

Controlados no seu serviço noticioso, os jornais dão larguíssimo destaque aos Jogos Portugueses, uma competição nacional de hipismo, atletismo, ciclismo e ginástica, à estreia de uma nova companhia de circo no Coliseu com 101 artistas na arena e à inauguração dos famosos ‘haut-parleurs’ que iriam permitir a todos os espetadores serem avisados do que se passava no recinto. O jogo do Stadium do Lumiar entre portugueses e italianos despertava o entusiasmo habitual e a curiosidade acrescida de se poder ver atuar em Lisboa uma seleção de futebol que não fosse a espanhola. Balloncieri, jogador do Alessandria e ‘capitão’ da Itália, queria repetir a esplêndida exibição de quatro dias antes, face à Espanha (0-1), em Valência. O enviado-especial da Gazzetta dello Sport era claríssimo na sua apreciação a essa derrota: «Foi o fantástico Zamora que ganhou o jogo para a Espanha! Sozinho!».

É verdade que a Itália não era ainda a grande potência em que se transformaria dez anos mais tarde às mãos de Vittorio Pozzo. As suas três presenças nos Jogos Olímpicos tinham redundado em actuações pouco entusiasmantes, mas a sua experiência era incomparavelmente maior do que a dos portugueses, com frequentes desafios internacionais disputados desde 1910 entre os quais sobressaíam vitórias gordas frente à França (6-2, 9-4 e 7-0, esta em Março desse mesmo ano) mas também derrotas estrondosas face à Hungria (1-7), à Checoslováquia (1-5) e à Áustria (0-4). Não haveria, por isso, grandes motivos para dar largas ao otimismo. 

Lentamente, as pessoas foram-se juntando à volta do retângulo. Era dia de semana, a malta chegava tarde, vinda do trabalho. Mas trazia consigo alegria. 

 

O jogo…

Desde cedo na partida, Portugal  viu-se a contas com um estilo de jogo ao qual não estava minimamente habituado, assente em passes longos e bolas altas para as costas dos defesas. Demorou, por isso, a tirar partido da qualidade dos seus melhores jogadores e nunca o conseguiu verdadeiramente até final. Apenas Figueiredo se destaca da desorientação geral com lances de grande perigo para os italianos. A cinco minutos do intervalo, Domingos Neves marca um canto e o ‘keeper’ juventino Combi só consegue sacudir a bola para a frente. Na recarga, João Francisco Maia chuta com força e faz o golo. Portugal tem, então, medo de deixar fugir a tão ambicionada vitória. Dedica toda a segunda parte a defender a vantagem mas o ataque italiano também não revela grande capacidade para criar perigo junto da baliza de Francisco Vieira. Quando o árbitro, Ahenerkanf, apita para o final do jogo, o público rejubila mas sai do estádio com a certeza de que acabou de assistir a um jogo menor. 

Voltemos por mais um pouco à memória de Ricardo Ornellas, um dos grandes historiadores dos primórdios do futebol português: «Começou-se, pois, com quatro desafios contra a Espanha; não havia outro adversário… Quatro derrotas, a primeira regateada com galhardia, a segunda normal, se bem que o empate não tivesse sido impossível, a terceira ‘inglória e desilusão’, e a quarta ditada pela impressão depressiva que causou na equipa o ter havido, na primeira avançada, um remate (de João Francisco) em que a bola bateu na trave. Se tivesse sido golo, que teria sucedido? Depois, aproveitando a vinda a Espanha da equipa italiana, recebeu-se a Itália». ‘Vamos perder com certeza’, era a previsão generalizada – e com justificação. Mas não se perdeu; ganhou-se por 1-0. Um golo, então irreprimível do mesmo João Francisco, que afinal não tardou muito pois a Itália visitou-nos pouco depois da Espanha. E nestes cinco desafios se passaram quatro anos. À influência do par Pinho-Jorge Vieira, juntou-se a criação de uma linha de médios Figueiredo-Augusto Silva-César, dois setores que pertencem à história do futebol português».

As equipas alinharam assim nesse jogo histórico: Portugal – Jorge Vieira; Pinho e Jorge Figueiredo; Augusto Silva, César e Domingos Neves; Mário Carvalho, João Francisco Maia, Carlos Delfim e Manuel Fonseca. Itália – Combi; Roselta e Calligaris; Genovesi, Burlando e Gandini; Conti, Balloncieri, Da Vale, Magnozzi e Forivesi. O treinador lusitano foi Ribeiro dos Reis que não tardaria a ser substituído pelo seu grande amigo Cândido de Oliveira – este cometeu a proeza de ter permanecido três anos como selecionador.

Portugal, a equipa-de-todos-nós, como lhe chamou Ricardo Ornellas, deixara de ser a equipa-de-todas-as-derrotas. Mas seria preciso esperar quase uma ano pela seguinte: frente à França (4-0), em Março de 1926. Quanto à Itália, teria direito a desforra, em Turim (3-1), em Abril de 1927. Só que não era ainda aquela besta negra que viria a ser mais tarde para os portugueses. Tanto assim que se viu goleada no Porto (4-1), em Abril de 1928. Era apenas uma besta branca.