A tempestade Leslie, que atravessou Portugal no último fim de semana no meio de alertas vermelhos e da mobilização das televisões para registo dos estragos, relativizou um invulgar conjunto de factos políticos que, de outro modo, dariam ‘pano para mangas’. A remodelação cirúrgica do Governo fez o resto.
Graças ao temporal, o país mediático mal reparou numa entrevista notável de Joana Marques Vidal, concedida à SIC e ao Expresso, em vésperas de passar o testemunho; e quase apagou a demissão de Azeredo Lopes, que saiu do Governo às arrecuas, pela porta baixa, sempre a ‘sacudir a água do capote’.
O mau tempo desviou, também, as atenções de uma ácida esgrima epistolar, protagonizada por António Costa e Fernando Negrão, e foi pena.
Nos ‘intervalos da chuva’, o Conselho de Ministros – com ministros já ‘despachados’ a fingirem que eram ‘ativos importantes’ – aprovaria um Orçamento do Estado forjado à sombra da mais descabelada ‘caça ao voto’.
À boleia de Azeredo, o primeiro-ministro em exercício aproveitaria, entretanto, para substituir mais três ministros desgastados, juntando-lhes a divertida declaração, sem se rir, de que as demissões «foram todas a pedido dos próprios», sendo saudado pela ‘habilidade’.
Costa é definitivamente um brincalhão e sabe aparecer num dia, prazenteiro, a declarar um ministro de ‘pedra e cal’, despedindo-o a seguir, com o mesmo enigmático sorriso, depois deste ter participado e aprovado um Orçamento que não irá gerir.
É um modo original e sui generis de fazer política. Constava que Salazar demitia os seus ministros com um cartão pessoal. Costa é mais sofisticado. Abraça-os e conforta-os nas desgraças, enquanto lhe servem de escudo protetor, e descarta-se deles depois. Foi assim com Constança Urbano de Sousa há um ano, a seguir à tragédia dos incêndios. Repetiu-se agora.
Menos ‘meigo’ do que é costume, Luís Marques Mendes diria, no seu espaço da SIC, que Costa teve um «comportamento desastroso» em relação a Tancos, observando, cáustico, que «tem muita habilidade mas pouca capacidade de decisão e pouco sentido de Estado, como se viu em alguns momentos capitais».
Pior, só Assunção Cristas, ao ironizar que «quem precisa de ser remodelado é António Costa». Piedosamente, Rui Rio saiu da redoma onde se acomodou como líder da oposição para dizer que Costa «deu a mão à palmatória». É a personalização da banalidade.
Mas vamos por partes.
Nas despedidas, Joana Marques Vidal confessou-se surpreendida com «a dimensão da corrupção em Portugal», reconhecendo que «politicamente, a resposta não é eficaz, tem sido muito superficial» e que «não há uma estratégia nacional contra a corrupção».
A transcrição mais alargada justifica-se. A ex-PGR não hesitou em considerar que a Operação Marquês «é uma boa acusação», porque «tem a factualidade, tem a sua prova, está bem articulada» (à atenção do juiz Ivo Rosa…) e que o GES será o caso mais complexo a correr no Ministério Público.
A entrevista é fértil em ‘recados’ com destinatários certos e merece ser guardada para memória futura. Com subtileza, indicou as prioridades que se ‘colam’ à sua sucessora, perante processos não fechados. E deixou perceber – nas linhas e nas entrelinhas – como Marcelo e Costa se entenderam para afastá-la sem dor….
Já Azeredo Lopes assinou uma carta patética, alegando que se retirava para poupar as Forças Armadas ao desgaste «pelo ataque político ao ministro que as tutela».
Depois da triste figura que fez como presidente da ERC, ao proteger os desmandos de Sócrates (uma sombra que paira sobre este Governo…), o ex-ministro foi incapaz de assumir a menor autocrítica, apesar das contradições que foi semeando no caso de Tancos.
Se a carta demissionária de Azeredo é um hino à desresponsabilização, a troca de galhardetes entre António Costa e Fernando Negrão, em escrita afiada, são dois testemunhos imperdíveis. Costa sai mal da refrega. Quando reage a quente, perde as estribeiras.
Negrão elevou a fasquia ao acusar o chefe de Governo de ter «a pretensão de me conseguir intimidar». Foi um salto em frente para quem ainda não acertou no tom como líder da bancada parlamentar do PSD.
A querela pode ter servido, ainda, como contraponto às queixas de deputados sociais-democratas, que se sentem ‘silenciados’ por imposição de Rio, na sua saga contra a herança de Passos Coelho.
Por fim, a educação e a Justiça não couberam na remodelação. Foi uma oportunidade perdida. Veremos o que se segue nas cedências aos professores, às ordens da Fenprof, e nos processos pendentes, que não podem eternizar-se. Se ficarem pela secretaria, retidos nas teias burocráticas, a Justiça em Portugal perderá a face.
Afinal, há quem queira moldar a ‘rosa-dos-ventos’. Em nome da rosa…