Desde que se vulgarizaram as pistolas, as mortes à facada passaram a ser coisa do passado. Até porque as pistolas permitiam matar à distância – enquanto as facas exigiam um contacto físico com a vítima.
Durante muitos anos, não me lembro de ouvir falar senão muito episodicamente em mortes à facada. Mas elas regressaram, desgraçadamente. De há uns cinco anos para cá, as mortes à facada tornaram-se de novo comuns. Sobretudo nas disputas entre amigos desavindos ou na violência doméstica. E as mulheres tornaram-se as principais vítimas desse flagelo.
As mortes de mulheres pelos maridos, namorados, ex-maridos ou ex-namorados começam a ser um grave problema social. Este ano já foram 9 – o que significa duas mortes por semana. E a maioria das mortes deu-se à facada.
Esta onda é muito difícil de parar. Primeiro, porque a comunicação social não pode deixar de dar as notícias – mas, ao mesmo tempo, sabe-se que estas notícias têm um efeito multiplicador. Quanto mais se fala de um assunto, mais ele se vulgariza. Quanto mais se fala de incêndios, mais indivíduos há a atear fogos.
Por outro lado, facas há em todas as casas. Para as ter não é preciso possuir licença. São ‘armas’ fáceis de comprar e baratas.
Vem isto a propósito do horrível crime praticado há uma semana. Um homem matou a sogra à facada, a quem ia supostamente entregar a filha de dois anos e meio com a qual passara o fim de semana, depois matou a criança e a seguir suicidou-se. Nesse mesmo dia ele e a ex-companheira iam a tribunal regular o poder parental. Temendo ficar sem a menina, o homem cumpriu a sentença de Salomão: eu não fico com ela, mas também não a terás viva. Enfim, uma enorme tragédia.
As televisões encheram-se de comentadores a falar do assunto, dizendo o mesmo de sempre. Estes debates e estas opiniões não servem rigorosamente para nada, como se vê: os casos têm vindo sempre a aumentar. Porque ninguém, a começar pelos políticos, tem coragem para ir à raiz do problema: a desestruturação da família.
Enquanto não se pensar nisto a sério, não se resolverá nada.
Em primeiro lugar, é preciso refletir sobre o casamento. As pessoas dizem: «Não é um papel que nos vai fazer felizes». Iludem-se. Não se trata de um papel: trata-se de um compromisso que a pessoa assume perante a outra, perante si própria e perante a sociedade. E esse momento é importante, porque leva a pessoa a interpelar-se. Inversamente, quando duas pessoas se juntam e vão deixando as coisas correr, sem esse momento de reflexão, do mesmo modo como se juntam podem separar-se. O compromisso é mais débil.
Em segundo lugar, é preciso ter em conta a responsabilidade que o casamento representa. Quando uma pessoa se casa assume a incumbência de fundar uma família, de a proteger, de a manter, de a sustentar. E essa responsabilidade não pode ser descartada na primeira oportunidade.
Dizem-se frases bonitas como «Vai onde te leva o coração». É romântico. Mas os seres humanos não podem só seguir o coração, ou o desejo, ou o instinto: a partir do momento em que constituem família têm uma responsabilidade que não podem atraiçoar na primeira curva da vida.
As pessoas não podem comandar o coração, é verdade, mas podem comandar os seus atos. Ao longo da vida podem gostar de outras pessoas, apaixonar-se até – mas uma coisa é isso e outra é abandonarem a família, abandonarem os filhos, e seguirem egoisticamente o que lhes pede o coração.
É que a separação, para lá da traição que representa em relação à pessoa com a qual assumimos um compromisso, tem consequências para os filhos – que deixam de poder viver com uma mãe e um pai, com todo o desequilíbrio que isso acarreta.
A raiz de todas as mortes a que vimos assistindo está na desestruturação das famílias. Por detrás destes crimes, está sempre uma família esfacelada.
Ora, não resolveremos o problema enquanto andarmos a combater as consequências em vez de atacarmos as causas.
A violência doméstica não se resolverá com leis – terá de ser combatida com a revalorização do papel da família, que foi uma conquista da civilização, com vista a dar aos seus membros maior estabilidade física e emocional, pelo que a sua desagregação representa um retrocesso civilizacional.
Mas da família ninguém quer falar. A esquerda por ideologia – o comunismo sempre viu a família como um produto burguês e um fator de resistência à coletivização –, a direita por vergonha, pois falar da família faz lembrar outra época, outros discursos, outros protagonistas.
Mas uma coisa é certa: sobre famílias fracas, desestruturadas, irresponsáveis, é impossível construir uma sociedade sã. A nossa sociedade está doente porque uma doença grave atingiu a instituição familiar.
Enquanto o poder político não se ocupar disto a sério, os crimes vão continuar.