O criador que se fez culto

Tão admirado quanto conflituoso, Karl Lagerfeld existiu como muito mais do que um designer: uma figura venerada no mundo da moda. Como qualquer vedeta tinha as suas peculiaridades – e não fazia segredo disso.

Numa entrevista publicada em abril de 2018 pela revista francesa Número, a última que concedeu, Karl Lagerfeld dizia sentir-se bem apesar de já estar para lá da marca dos 80 anos. «Fizeram-me todos os exames que existem à face da terra e não descobriram nada. Ligue-me daqui a dez anos e voltamos a falar». Este janeiro, porém, menos de um ano depois, os problemas de saúde obrigaram-no a faltar ao desfile de alta costura da Chanel na semana da moda de Paris. Na terça-feira, a notícia da sua morte, aos 85 anos, apanhou o mundo de surpresa.

A entrevista à Número ficou marcada por outras declarações. As mais polémicas diziam respeito à morte recente de duas figuras do mundo da moda. «Lamento mas no último ano perdi dois dos meus melhores inimigos, Pierre Bergé [antigo companheiro de Yves Saint Laurent] e o outro. Azzedine abominava-me, imagine. E, para o funeral do Pierre, a minha florista perguntou-me: ‘Quer que mandemos um cato?’».

Lagerfeld gostava de ser provocador e não fazia segredo das suas opiniões mais controversas. Noutra ocasião disse que se tivesse nascido na Rússia seria lésbica, dado os homens russos serem tão feios, e também não poupou Meryl Streep, que uma vez apelidou de atriz «barata».

No entanto, mesmo os que o odiavam, lhe reconheciam o talento para a criação de vestidos únicos e para a gestão de grandes casas de costura. Era também admirado pelo seu estilo de vida opulento, que ficou retratado no filme Lagerfeld Confidential, de Rodolphe Marconi (2007), um retrato quase íntimo do grande ícone da moda.

Nele via-se o interior do seu apartamento em Paris, um palacete do século XVIII, onde pilhas de livros conviviam harmoniosamente com centenas de acessórios de moda sempre à mão – Lagerfeld não saía de casa sem os dedos repletos de anéis, e nunca tirava os óculos escuros, a não ser para ler ou desenhar. Dizia que era como andar sempre mascarado.

No mesmo filme, o diretor criativo da Chanel falava sobre a infância no Norte da Alemanha, perto da fronteira com a Dinamarca: «Eu era uma criança muito mimada. Achava que o mundo girava à minha volta. […] As pessoas que me conheceram nessa altura dizem que eu era a Shirley Temple em versão masculina: bastante mimado e insuportável. Achava que nada era suficiente».

 

Uma caricatura de si próprio

Algumas dessas características talvez nunca o tenham abandonado: em adulto e mesmo na velhice muitos continuavam a considerá-lo petulante, egocêntrico e afetado. O facto de o seu nome e de a sua silhueta inconfundível aparecerem recorrentemente nos acessórios da sua marca diz muito sobre o seu culto da personalidade. Aliás, Lagerfeld reconhecia: «Sou uma caricatura de mim próprio».

Foi também muito jovem que descobriu a homossexualidade. Quando o realizador Rodolphe Marconi começou com rodeios a questioná-lo sobre «uma certa inclinação…», Lagerfeld foi muito direto: «Deite cá para fora de uma vez ou mude de assunto. Não há muito para contar. Quando tinha 11 anos ouvi falar pela homossexualidade pela primeira vez. […] A minha mãe dizia que não era uma questão, era como a cor do cabelo. Qual é o problema?». Referiu ainda que «era ativo desde muito cedo. Pratiquei desde os 13 anos. […] A minha meia irmã também era lésbica».

De resto, a mãe – que considerava «perfeita» mas também impiedosa, pois «fazia dos maridos e dos amantes escravos, e nunca agradecia» – era a sua confidente.

Um dia, quando Karl tinha 11 ou 12 anos e lhe contou que fora atacado e abusado sexualmente por um casal, homem e mulher, a mãe respondeu-lhe. «A culpa é tua. Se fosses mais discreto isso já não acontecia». Em novo a mãe dizia-lhe que era «estúpido». Mas quem olhasse para a carreira do designer acharia esse juízo não apenas cruel como impossível de sustentar.

De facto, Lagerfeld teve uma ascensão meteórica no meio – e nem sequer precisou de estudar. «Se alguém teve sorte, fui eu. Nunca estudei nem tive habilitações. Foi tudo uma improvisação completa», orgulhava-se.

Sentia-se à vontade no mundo da moda, onde convivia com modelos, atrizes, primeiras-damas e a realeza.

 

A chegada à Chanel adormecida

Foi em 1955, depois de ter vencido o prémio de melhor casaco do International Wool Secretariat (no mesmo ano Yves Saint Laurent, que viria a qualificar, muito mais tarde, de «um francês mediano, muito pied noir, muito provinciano», era distinguido com o prémio de melhor vestido), mudou-se para Paris, contratado pela Balmain.

Trabalharia como assistente de Pierre Balmain ao longo de três anos, antes de se ter mudado para a Jean Patou. Aí, desenhou dez coleções de alta-costura, ao longo de cinco anos. Foi pela altura em que trocou a Balmain pela Patou que começou a apresentar as primeiras coleções em nome próprio – não como Karl Kagerfeld ainda, mas com um outro nome: Roland Karl. Coleções que não foram capazes de convencer a imprensa especializada da época – muito pelo contrário.

Chegou entretanto à Cholé, para a qual começou a colaborar com o desenho de algumas peças até à criação de coleções inteiras. Mas seria 1982 o ano que marcaria definitivamente a sua carreira, com a chegada à Chanel, como diretor criativo.

Pelo meio de várias declarações polémicas – Lagerfeld chegou a dizer que a Chanel se tinha transformado numa marca para mulheres de idade – acabaria por ser bem sucedido naquilo a que se propôs: relançar a marca fundada por Coco Chanel, que havia falecido 12 anos antes. «O que fiz, a Coco Chanel nunca teria feito. Ela tê-lo-ia odiado», diria um dia. Mas num aspeto pelo menos Lagerfeld manteve-se fiel a Chanel: a inspiração no passado para criar algo de novo. Fê-lo pela reinvenção de algumas das suas peças mais icónicas: o little black dress, as sabrinas, os tweeds e as clássicas carteiras. E a verdade é que, depois de um período de crise, a década de 1980 foi uma década de prosperidade para a Chanel, com a abertura de 40 novas lojas por todo o mundo.

Os louros, tomou-os para si: «Quando tomei conta dela, a Chanel era a Bela Adormecida. Nem Bela era. Ressonava. Mas os donos sabiam. Por isso é que me convidaram», recordou com a habitual imodéstia.

 

Uma imagem feita marca

Gostava de trabalhar no meio da desordem – «acho que ficaria paralisado numa secretária arrumada» – e não tirava as luvas de dedos cortados nem para desenhar. As luvas que, com o cabelo apanhado atrás, os óculos de sol e os anéis transformou na sua imagem de marca. Uma imagem que com os anos se transformou em marca ela própria: o seu rosto, em perfil, fazia parte do logotipo da sua marca – K Karl Lagarfeld – e, de carteiras a porta-chaves, incorporado em muitas das peças que desenhava.

Dizia que algumas das melhores coleções lhe tinham surgido em sonhos. Nem ele sabia muito bem de onde vinham.

Atualmente, a sua vida sentimental estaria reduzida à relação com a gata Choupette, com quem disse, em 2013, que gostaria de se casar caso isso fosse permitido pela lei. Apesar da enorme fortuna, estimada em 200 milhões de euros, e da imensidão de bens pessoais, gostava de se mostrar desapegado tanto das coisas como das pessoas e até dos sítios. «Como a minha mãe sempre disse, eu vivo onde estiver no momento. Não gosto da noção de viver num sítio. Sou transportável, transformável, não tenho raízes».

Para gerir as várias coleções e casas de costura, viajava constantemente – sempre com meia dúzia de malões, pelo menos, o mordomo, o cozinheiro, e uma almofada que a ama lhe dera encostada à barriga. Num voo de Nova Iorque para Paris registado em Lagerfeld Confidential vemo-lo sentado em classe executiva sem qualquer vontade de descansar. «O voo é curto. Daqui a uns anos já estarei a dormir».