Graças à sua rede de contactos na comunidade gay, Frédéric Martel teve acesso à vida íntima de padres, bispos e cardeais no Vaticano. O resultado da sua investigação de quatro anos é um livro explosivo sobre a predominância das tendências homossexuais entre os prelados e a guerra que o combate à hipocrisia promovido pelo Papa Francisco desencadeou na Santa Sé.
É verdade que tem um ‘gaydar’ [trocadilho com radar] que lhe permite saber quem é e quem não é gay?
Não é o ‘gaydar’ que me diz seja o que for. Isto é um livro muito sério. Quando falo de alguma coisa é porque tenho fontes em primeira mão. Não quero expor as pessoas, não estou interessado nas suas vidas, o meu objetivo é sempre denunciar o sistema.
Mas o ‘gaydar’ não foi uma boa ajuda enquanto fazia a sua investigação?
Não. Acontece que, como sou gay, conheço o código, sei como as pessoas estão organizadas, sei como se fazem os contactos. Só me baseio nas fontes. Tenho padres que dormiram com pessoas, padres que foram ‘comidos’ e cortejados por cardeais. Não é por alguém usar um anel ou coisa parecida que eu vou achar que é gay. Não é assim que funciona.
O que diz a Bíblia sobre a homossexualidade?
A Bíblia não é muito clara. O Livro do Génesis diz que Sodoma foi destruída por ser uma cidade gay. Mas não é verdade, porque nenhuma cidade podia subsistir durante muito tempo só com homossexuais. A Bíblia tem muito que se lhe diga. Por exemplo, o profeta Lot dorme com as suas duas filhas. É por isso que dormir com as filhas passa a ser legítimo? Não.
Nesta sua investigação o que descobriu sobre a vida sexual dos padres? Eu diria que não era suposto eles terem qualquer atividade sexual, mas…
Isso é uma mentira. A castidade é profundamente contranatura. Quando se tem 90 anos e se é cardeal, pode-se dizer: ‘Temos de permanecer castos’. Mas acha que isso funciona para uma pessoa que tenha entre 15 e 90 anos? Acha que isso é possível? Claro que algumas pessoas são castas, provavelmente algumas até são místicas, mas para a grande maioria dos padres isso é um problema. E está na origem de múltiplos abusos sexuais. A castidade é a causa de muitos abusos sexuais.
Porque a pessoa tem de canalizar esses impulsos de alguma maneira?
Claro. O meu livro não é sobre isso – é acima de tudo sobre a homossexualidade no Vaticano. A homossexualidade, quando é reprimida, quando a pessoa se odeia a si própria e se flagela, acaba por tornar-se um problema que vem à superfície. Para muitas pessoas, a castidade pode ser uma forma de evitar a homossexualidade. E sabemos que as figuras na Igreja mais fervorosamente a favor da castidade e do celibato são muitas vezes os padres homossexuais. Entendem o celibato como um celibato heterossexual, por isso permitem-se fazer tudo o que lhes apetece… Jesuítas, dominicanos, franciscanos, todas elas são ordens extremamente gays.
Quando se deu conta de que a homossexualidade era um problema sério no seio da Igreja?
Desde o início que eu sabia deste segredo. Mas ao pesquisar, ao ir a 30 países, descobri que o sistema era gigantesco, muito maior do que eu pensava.
Mas até que ponto o seu livro não generaliza algo que são casos particulares? Não há aqui um pouco de exagero?
Espero que você tenha razão, mas acho que não tem. Não há explicação para milhares de padres acusados de abuso sexual se algo não estiver profundamente errado. Eu vivi no Vaticano, discuti isto com muita gente, tenho 27 padres gays dentro do Vaticano que me contaram o que se passou nos últimos 20, 30 anos. Pesquisei nos arquivos, entrevistei prostitutos, estudei casos no Departamento de Estado em Washington, nos arquivos no Chile, na Argentina. Penso que o meu livro até é bastante contido. Na realidade, julgo que os números são ainda mais altos.
E por que quiseram todas estas pessoas confidenciar-lhe estes segredos?
Por muitas razões.
Para prejudicarem os rivais?
Também. Às vezes as pessoas são muito maldosas para as outras. Não esqueça isto: há muitos tipos de homossexualidade. Um dos grupos é o daqueles a que eu chamo homófilos.
Aqueles que não praticam mas gostam de homens.
Partilham uma cultura, uma sensibilidade que é gay. E isso tem consequências na sua maneira de pensar. Mas são fiéis à sua visão da castidade e do celibato. São boas pessoas. Podemos estar em desacordo, mas para mim um cardeal ou um bispo ser gay não é problema. Há um problema, sim, com a vida dupla, com a hipocrisia, com aquilo a que chamo esquizofrenia. E, se reparar, ‘vida dupla’, ‘hipocrisia’, ‘esquizofrenia’, tudo isto são palavras usadas pelo Papa Francisco. Ele deu-nos o segredo e o meu livro confirma esse segredo. Francisco está no meio de ‘rainhas’ e tenta salvar a Igreja. Penso que é um bom tipo, um pouco como Gorbatchov. Está a tentar salvar o sistema, e para isso tem de o mudar. As pessoas que atacam o Papa Francisco são muitas vezes cardeais muito homofóbicos e eles próprios gays. George Pell [o cardeal australiano que acaba de ser condenado por abusos sexuais] era um opositor do Papa, extremamente conservador. E atacou Francisco porque Francisco era muito liberal na moral sexual. Entrevistei Pell, ele provavelmente é gay. E também abusou de crianças. E ao mesmo tempo diz: ‘Temos de ser contra os gays, temos de ser fiéis ao Evangelho’. Esta é a esquizofrenia de que falou Francisco. E digo a católicos: ‘Talvez não gostem do meu livro. Talvez não o queiram ler. Talvez achem que eu sou um mentiroso. Mas [se tudo se mantiver como está] nos próximos 50 anos vão continuar a ouvir esta história, todos os anos terão bispos acusados de abusos sexuais. Vai ser muito doloroso para vocês’.
Mas se o problema está tão generalizado como diz, pode ser mudado no consulado de um Papa?
O Papa tentou mudar as coisas com o primeiro sínodo. Tentou abrir a Igreja aos casais divorciados, trazer mais mulheres para a Igreja, queria ser um pouco mais tolerante com as uniões civis de gays, tentou encontrar soluções. É como Gorbachov, tenta ir, passo a passo, na boa direção. E foi travado por estes cardeais muito homofóbicos que são, eles próprios, gays.
Alguns dos prelados de que fala no seu livro são quase abertamente gays. Eles não têm medo de ser denunciados, chantageados?
Mas é isso precisamente que acontece. Vatileaks I, Vatileaks 2, os ataques contra Francisco, a história de Azevedo em Portugal [o antigo bispo auxiliar do Patriarca de Lisboa, cuja homossexualidade era conhecida e foi acusado de assédio de um sacerdote]. Tudo isso é basicamente chantagem e acontece a toda a hora. Todos os escândalos estão ligados a situações desse género.
Podemos concluir do seu livro que a Igreja se tornou uma espécie de refúgio para os homossexuais?
A ala direita da Igreja diz que há uma quinta coluna, um lóbi, que está a tentar corromper a Igreja. Não é assim. Isto é sociologia. As pessoas gays querem entrar para a Igreja porque a Igreja as aceita e promove. Porquê? Porque há um ambiente homoerótico e as pessoas heterossexuais não querem ir para lá, querem-se casar. Além de que é profundamente antinatura não ter sexo. Por tudo isso o sistema atrai os gays. Imagina o seguinte. Quando és adolescente não percebes o que se passa. Não gostas de raparigas, não queres casar, as pessoas na escola ou na universidade gozam contigo por seres demasiado efeminado ou por causa das roupas que usas ou da tua voz. Sabes que a tua vida vai ser um pesadelo. Se vieres de um meio burguês, vais ser a vergonha da família. Se vieres de uma aldeiazinha em Portugal vai ser uma vida triste. Então tornas-te padre e tudo se torna fácil. As pessoas gay sempre estiveram em segurança na Igreja.
Alguma vez sentiu isso? Foi gozado na escola ou humilhado?
Nem por isso. Cresci depois de 68, já se tinha dado a libertação gay. Mas estes padres, que agora têm 70, 75 anos, ainda estão trancados na homossexualidade dos anos 60. Hoje o casamento homossexual é permitido em Portugal, a homossexualidade já não é um crime, mas eles ainda vivem nesse mundo.
Ser gay pode ser uma vantagem para quem está na Igreja?
Acho que há um sistema de promoção dentro da Igreja, sim, que é outro segredo, um grande segredo. Os cardeais preferem bispos que sejam gay, os bispos preferem núncios e padres que sejam gays. O que eles detestam são heterossexuais. A homossexualidade faz parte do código. Um padre explicou-me isso muito bem: ‘Quando estás dentro de um aquário sabes quais são as regras, para onde podes ir e para onde não podes. Por fora és homofóbico mas por dentro podes navegar no sistema’. Mas as regras têm de ser muito claras – e são muito claras: homofobia por fora, por dentro fazes o que quiseres. Ninguém faz perguntas. Não é um armário – são centenas, milhares de pequenos armários, cada um no seu.
No seu livro revela que visitou alguns cardeais que vivem em apartamentos sumptuosos. Não seria suposto estas pessoas não ligarem aos bens materiais?
Isso acontece, mas também há pessoas que vivem em casas muito pequenas, como o Papa Francisco, ou Frederico Lombardi. Há pessoas que são extremamente fiéis à sua ideia de pobreza. Conheço padres que são pessoas maravilhosas. Um deles, no seu apartamento mostrou-me uma mala de viagem e disse: ‘Isto é tudo o que eu tenho. E o meu salário é de cem euros por mês. Sou pobre e adoro ser pobre’. Eu não sou católico, mas quando encontro estas pessoas fico extremamente comovido. Sinto muita empatia com eles. Mas também são vítimas do sistema, que os obriga a mentir e lhes impõe uma vida dupla.
Tem muito respeito por esses. E pelos que vivem rodeados de luxo?
Não sou juiz, não gosto de julgar as pessoas. Atenção: este livro não é uma denúncia de quem é gay, não é um livro de escândalos. Há escândalo – falo de prostituição, de chem-sex-parties e há outras histórias que podia ter contado e fazia um livro só de escândalos. Mas não foi o que fiz. O meu tema é mais a banalidade do dia-a-dia destas pessoas que têm um segredo e não podem viver as suas vidas. E essa é a história de 100 mil padres, mesmo aqui em Portugal. A propósito: três ou quatro dos meus informadores-chave falam português.
Falávamos dos apartamentos dos cardeais. Andou a espiolhar a casa do cardeal Burke?
O apartamento é o seu escritório oficial, ele recebeu-me oficialmente. Fiquei à espera duas horas e pedi para ir à casa de banho. E foi aí que me deparei com esta coisa incrível [«um altar particular numa decoração de icebergue falso […], como uma capelinha aberta, ornamentada com uma grinalda que pisca, tendo, colocado no meio, o célebre chapéu do cardeal»]. Ele convidou-me, eu esperei, e ninguém me disse que não podia ir à casa de banho. É Burke – a caricatura de si próprio.
Houve pessoas que ficaram magoadas com o que escreveu?
Nunca menti sobre o meu nome nem sobre o que fazia. Se eu falo consigo e lhe ponho um microfone à frente, você vê o microfone. Pego no meu iPad e você vê que estou a tomar notas. E fui muito cuidadoso com as citações. Houve cardeais que me disseram: ‘Este tipo dormiu com aquele. Aquele tipo foi abusado por não sei quem. O outro é homossexual’. Eu nunca usei isso. Se eu publicasse as minhas gravações o Vaticano explodia. Literalmente. Não o vou fazer porque o objetivo do livro não é atingir a Igreja. Honestamente o livro não critica a Igreja, critica uma grande fação gay no interior da Igreja. E eu também sou gay, por isso basicamente critico a minha gente.
Mas compreende que o seu livro abala a Igreja e desacredita muita gente que faz parte dela.
Sim. Mas volto a dizer: para mim não há qualquer problema se um cardeal for gay.
Mas para muitos católicos isso é um problema.
Pois, mas é a realidade. Quando digo que o núncio Sodano, no Chile, era próximo de muitos agentes secretos gays do círculo de Pinochet, são factos. Conheci padres gays que são muito melhores do que estes tipos todos, que acreditam mesmo em Deus – no Vaticano há muitas pessoas que não acreditam em Deus da mesma maneira.
E eles sentem remorsos por serem gays ou estão em paz com isso?
Há-os de todos os tipos. É preciso compreender que se trata de um longo caminho. Uma pessoa pode não querer ser gay aos 20, autoflagelar-se e odiar-se a si própria. Quando chega aos 40, pode já estar confortável na sua pele. E aos 50 assumir. Há homófilos que são extremamente fiéis toda a vida. Pessoas que têm amantes – adoro isso. Se um cardeal tiver um amante significa que ama alguém. Conheci um teólogo que pagou para ter sexo com um prostituto e depois adotou-o, e o prostituto foi viver com ele. Deixaram de ter sexo e ele cuidou do prostituto como se fosse seu filho. Acha que isso é mau?
Não sei, tenho dúvidas…
Este tipo salvou uma vida, tomou conta deste rapaz – que tinha mais de 18 anos, devo dizer. De resto, a prostituição em Itália, tal como a homossexualidade, é legal. Eu sou um intelectual secular francês, não julgo as pessoas, para mim a lei é a lei. Por isso não tenho nada a dizer contra estas pessoas.
Fiquei com a impressão de que ao escrever este livro houve momentos em que se divertiu. Essa impressão é correta?
Nem por isso. Isto não é a minha vida, e estas pessoas não são os meus amigos. Tenho os meus amigos em Paris, não preciso de amigos novos no Vaticano. Nunca me esqueço de que sou um escritor e jornalista. Mesmo quando vou de férias com alguém ou quando fico a dormir no Vaticano, nunca esqueço que sou um jornalista. Mas também sou um escritor, e o meu livro tem de ser divertido e estimulante. Mas nunca me diverti. Estou em frente de pessoas que estão a sofrer.
Mas pareceu-me que apreciou certas conversas, conhecer os meandros daquele mundo.
Gosto de ser jornalista, dá-me gozo fazer uma descoberta ou falar, por exemplo, de uma figura como o cardeal La Montgolfiera [assim cognominado porque teria, tal como os balões Montgolfier, «uma grande figura, muito vazio e pouco peso»]. Mas sei que por detrás disso há uma história que não tem piada nenhuma.
Diz que não quer ter amigos no Vaticano. E inimigos? Fez muitos inimigos na Igreja?
As minhas fontes, algumas delas portuguesas, escreveram-me a agradecer: ‘Confiei em ti e não me traíste. Não puseste o meu nome e a citação está correta. Obrigado por teres escrito este livro’. Tenho centenas de cartas, de emails com comentários de pessoas felizes por ter contado esta história. Ao mesmo tempo, provavelmente algumas pessoas não estão contentes. Mas eu tentei protegê-las. Se houver um cardeal maldoso – alguém que mentiu e que esteve com um prostituto – que está insatisfeito, isso já não é problema meu. Na semana passada dois cardeais foram presos ou excomungados. Um núncio foi acusado pela Justiça francesa por assédio sexual a um homem. No Chile rebentou, no México rebentou, na Colômbia rebentou, em Cuba está prestes a rebentar – o escândalo está por todo o lado. Em Boston, em Filadélfia, na Irlanda, na Suíça, na Bélgica. Os católicos querem isso para a sua Igreja? Não acha que já é tempo de olhar para o que está errado e tentar encontrar uma solução? E se o celibato não funcionar, se a abstinência não existir a não ser para um pequeno número de pessoas? Hoje estamos num mundo diferente. Temos câmaras, microfones, fotografias, as vítimas falam, a imprensa escreve. Já não vai voltar atrás.
E acha que ainda só estamos a ver a ponta do icebergue?
Claro. Basta imaginar o que provavelmente aconteceu em Itália. Isto é só o início, vai ser cada vez pior nos anos que aí vêm. O meu livro é sobre a verdade e tem uma exigência de verdade que se liga à exigência de verdade do Papa Francisco. E quem o ler vai perceber porque é que Francisco está a ser atacado, está a ser vítima de um complô, de uma cabala montada por cardeais que mentem muito e querem expulsar o Papa. E até são financiados por organizações americanas de extrema-direita que lhes pagam para pôr o Papa fora.
E, por falar nisso, acha que o seu livro pode ajudar o Papa a resistir a este ataque?
Algumas pessoas disseram que foi o Papa que encomendou este livro e que foi por isso que a sua entourage me deu acesso ao Vaticano, dizem que sou uma marioneta de Francisco. Se ler o meu livro sabe que isso é treta. Não trabalho para o Papa nem contra o Papa, sou independente. Toda a gente sabe que sou um jornalista de esquerda muito moderada, sou gay há 40 anos, sou conhecido em França por fazer um trabalho sério.
Eu sou transparente. Eles não.