Ao fim de três anos de debate e mil horas de discussão, os resultados da comissão de reforço para a transparência em funções públicas, no Parlamento, ficou marcado por uma alteração ao Estatuto dos Deputados, aprovada, numa quinta-feira à noite, no passado dia 28 de março, que permite aos deputados, que são advogados, manterem as suas ligações às sociedades de advogados a que já pertenciam, antes de serem eleitos, desde que não emitam pareceres ou intervenham a favor ou contra o Estado em qualquer circunstância.
A ideia foi proposta pelo PSD, teve a abstenção do PS, e garantiu, desta forma, a sua aprovação. A partir daí somaram-se críticas. Uma das mais duras partiu de João Paulo Batalha, presidente da Associação Cívica Transparência e Integridade, ao considerar que se trata de «uma captura da comissão para o reforço da transparência em exercício de funções públicas, para violar um mandato que lhe foi conferido e transformá-la na comissão de opacidade».
Em declarações ao SOL, o responsável considera que quem fez a proposta, em nome da ideia de que não se deve prejudicar as pessoas que já têm outras atividades (prévias à atividade parlamentar), «está a defender o direito das sociedades de advogados capturarem o Parlamento».
Em causa estão as justificações do deputado Álvaro Batista, que apresentou a proposta em nome do PSD, defendendo, na altura, que «o desempenho de funções públicas não deve prejudicar quem vem de outras atividades». Na prática, uma sociedade de advogados pode ter relações com o Estado, com algumas limitações, desde que o deputado, advogado na referida sociedade, não tenha qualquer intervenção. Ou seja, a sociedade pode intervir, mas o deputado não. E a lógica que prevaleceu na proposta do PSD é a de que um escritório de advogados não pode ficar impedido de desenvolver a sua atividade pelo facto de ter um sócio que é advogado e deputado, uma espécie de ativo tóxico, segundo fontes parlamentares sociais-democratas.
Além disso, a comissão de reforço de transparência já tinha aprovado também o impedimento dos deputados deterem quotas ou participações superiores a 50 mil euros ou 10%. Ainda assim, os deputados podem permanecer ligados às referidas sociedades, desde que não intervenham em processos que envolvam o Estado. Estas regras também se aplicam ao setor financeiro.
Agora, uma semana depois da aprovação em comissão, quem fez a defesa da proposta do PSD é o seu secretário-geral, José Silvano. «Achamos que a Assembleia da República fica mais rica tendo as diversas profissões, sendo limitadas», explicou ao SOL José Silvano. O PSD sempre entendeu que «na questão dos deputados advogados, o que estava consagrado no Estatuto dos Deputados era suficiente. Já limitava a participação nas sociedades de advogados a 10 por cento, como ficou [na lei], e já tinha incompatibilidades suficientes para que os advogados não pudessem litigar contra o Estado», explica o deputado social-democrata.
«Uma vergonha», diz PCP
Na altura o PCP e o Bloco de Esquerda votaram contra estas alterações que contrariavam, segundo os próprios, a visão inicial e votações indiciárias na comissão. O deputado Jorge Machado, advogado de profissão, não poupou o PS: «Dando o dito por não dito, o PS recua, chega a acordo com o PSD, e esvazia a norma permitindo que deputados inseridos em sociedades de advogados, e noutras profissões reguladas por ordens profissionais, possam participar em negócios com o Estado. Para PS, PSD e CDS um deputado não pode vender uma resma de papel ao estado mas pode participar num negócio de milhões se inserido, por exemplo, numa sociedade de advogados. Uma vergonha», escreveu na rede social Facebook. «Isto é completamente diferente do que estava no texto, o impedimento deixa de existir», insistiu o deputado comunista que acompanhou o processo, António Filipe.
Do lado do Bloco de Esquerda, o líder parlamentar, Pedro Filipe Soares, acrescentou ontem que todo o processo acabou por ser «uma vitória de pirro dados os alçapões na lei que o centrão teima em manter», num artigo de opinião no Público.
Na defesa das posições do PS, Pedro Delgado Alves realçou a importância da «proibição total de deputados serem advogados ou consultores em processos contra ou a favor do Estado» além de não poderem ter mais de 10 % de quotas nas referidas sociedades. Ainda assim não se livrou das críticas à sua esquerda.
Também o antigo eurodeputado, eleito pelo PS, e constitucionalista, Vital Moreira, considerou «lamentável» a decisão da Assembleia da República, defendendo «uma incompatibilidade geral entre o cargo de deputado e a profissão de advogado, em especial os advogados de negócios (e não somente quando se trate de litigar contra ou a favor do Estado, onde existe um manifesto conflito de interesses)». A frase foi escrita no seu blogue Causa Nossa.
Numa análise mais global dos resultados da comissão para a transparência, Luís de Sousa, investigador e ex-presidente da associação cívica Transparência e Integridade, considera que «há um problema pela forma como as coisas são feitas», insistindo na necessidade de relatórios para fundamentar o processo legislativo e sustentar as propostas de alteração em sede de comissão.
Em relação à polémica sobre os deputados-advogados, Luís de Sousa deixa algumas críticas: «Eu posso ser membro de um escritório de advogados para ir à barra defender o processo de um individuo, mas a maioria dos escritórios de advogados transformaram-se em grandes consultoras e uma parte da sua atividade são consultas parlamentares» . Ou seja, o problema deve ser colocado ao nível do tipo de relação contratual para avaliar se colide, ou não, com a independência de um deputado no seu exercício de funções.
A acumulação de cargos
Luís de Sousa também defendeu ao SOL que se devia ter revisto a acumulação de cargos políticos e deu um exemplo: o deputado Pedro Delgado Alves, vice-presidente da bancada socialista e presidente da Junta de Freguesia do Lumiar. Na opinião de Luís de Sousa «a acumulação de mandatos é também um conflito de interesses, porque da mesma forma que temos um cidadão, um voto, devemos ter um eleito e um mandato (…) Este é um princípio da ética republicana».
O visado respondeu ao SOL que «a lei é há muitos anos clara quanto a incompatibilidades no exercício de funções, definindo que não são incompatíveis funções em regime de não permanência, isto é, não remuneradas». Além disso, as funções são eletivas e o deputado lembra que já exercia funções de parlamentar antes de ser eleito presidente de Junta, e que os eleitores estavam cientes disso mesmo. Tal como outros colegas de Parlamento, repetiu a experiência e foi eleito para um segundo mandato.
Na comissão de transparência verificaram-se ainda outros casos como o da regulamentação do lobbying. Neste caso caiu por terra a hipótese de se saber quem são os três maiores clientes de um lobista, após o registo públicos e, para efeitos de uma audiência com entidades como o Parlamento. Neste ponto, João Paulo Batalha não poderia ser mais claro na crítica: « Ter um registo de lobistas sem saber quem são os interesses que representam é tão útil como ter o registo – desculpe a expressão – de estucadores ou estofadores na Assembleia da República. Não serve para rigorosamente nada».
De facto, a regulamentação do lobbying está longe de ser pacífica, terá sempre os votos contra do PCP e do BE, mas já existe um acordo tácito entre deputados do PSD, PS e CDS para uma correção de última hora à versão, entretanto, aprovada. Assim, no próximo dia 11, a comissão de transparência volta a reunir e fará uma espécie de ratificação final do texto em que se prevê que as «entidades que representarem o legítimo interesses de outras devem também ser obrigadas a declarar quem representam».
Dito de outra forma, uma agência que faz lobbying a várias empresas e, reúne com um ministro, deve indicar qual a empresa que está a representar, na audiência. Ou seja, deve ficar registado o lobista, a empresa a que pertence e a terceira entidade que está a representar no momento da audiência a uma entidade pública. Neste ponto, o tema não é consensual no PSD e a direção nacional do partido ainda não decidiu se pretende abster-se ou votar contra a proposta, mas só quando a mesma chegar ao plenário da Assembleia da República. Seja como for, as alterações só devem ser aplicadas em 2020 e o projeto final não deverá ser agendado para votação antes do 25 de abril.