Coca-cola tem acordo para travar estudos desfavoráveis

Investigadores analisaram 87 mil páginas referentes a contratos entre a Coca Cola e diferentes instituições. Concluem que acordos incluem cláusulas que tornam possível travar estudos e pedem mudança no sistema académico.

Uma investigação a contratos de financiamento científico por parte da Coca Cola revela que alguns acordos incluíam cláusulas que permitiriam à empresa ter acesso antecipado aos dados e travar a continuação de estudos ou a divulgação de resultados. As conclusões são publicadas esta quarta-feira no Journal of Public Health Policy. Os autores apelam a uma mudança no sistema académico, de forma que fique claro o contributo dos patrocinadores em cada investigação.

O trabalho é assinado por investigadores da Universidade de Cambridge, da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres e da Universidade de Bocconi, em Milão. Teve por base 87 mil páginas referentes a contratos e acordos entre a multinacional e diferentes instituições dos Estados Unidos e do Canadá, obtidos pelo think tank U.S. Right Know através de pedidos feitos ao abrigo da lei de liberdade de informação. Os autores indicam não ter encontrado evidências de que a empresa tenha impedido a publicação de resultados, mas revelam disposições que permitiriam que tal acontecesse, embora também tenham encontrado sinais de que há margem para negociação.

Em comunicado, Gary Ruskin, codiretor do think tank que também assina o artigo, diz que, desta forma, a investigação financiada pela empresa “parece mais um exercício de relações públicas”. Os autores admitem que a indústria alimentar e de bebidas pode estar a reformular os seus contratos em linha com o que são hoje os seus compromissos públicos, mas sem ver esses contratos é difícil saber, lê–se no comunicado da Universidade de Cambridge.

Determinantes comerciais da saúde A informação analisada inclui troca de correspondência e incide sobre o financiamento a estudos no campo da nutrição. Sarah Steele, do departamento de Política e Estudos Internacionais da Universidade de Cambridge e uma das autoras do estudo, explicou ao i que o trabalho surge no âmbito de uma investigação aos “determinantes comerciais da saúde”. Centrou-se na multinacional por terem sido os documentos que conseguiram identificar, justifica. Em análise estiveram os contratos, e não os resultados dos estudos, diz ainda. “A indústria afirma muitas vezes não ter influência sobre a investigação que financia. Vimos nestes contratos que contribuem em vários pontos e, nalgumas ocasiões, poderiam até terminar um estudo que se está a desenrolar desfavoravelmente. Isto não quer dizer que não podemos confiar em nenhuma investigação, mas precisamos de uma visão mais sólida sobre o que significa o financiamento em cada projeto”.

É nesse sentido que os autores apelam às revistas científicas para que passem a exigir aos autores informação mais sólida sobre conflitos de interesses e declarações de financiamento. Defendem ainda que deve ser solicitada a publicação dos acordos. Da parte dos financiadores, querem que, além da lista de patrocínios – informação que a multinacional hoje já divulga –, a empresa deve publicar listas de estudos terminados e declarações de envolvimento. “É fundamental para o público estar ciente de que, quando vê o financiamento da indústria num projeto, este pode ter sido sujeito tanto à contribuição explícita como a uma influência mais suave em que os investigadores tentam ‘não pisar os pés’ para manter a investigação. As disposições que permitem aos financiadores encerrar um estudo e, em seguida, reter todos os dados e resultados significam que investigações importantes talvez nunca vejam a luz do dia”, diz Steele.

Ao prosseguir os trabalhos, os investigadores não acabam por ser cúmplices? A autora admite que a ética dependerá sempre de vários agentes, mas recusa pôr o ónus nos investigadores. E dá o exemplo de como pode haver pressões em simultâneo das instituições. “Muitas instituições, incluindo na Europa, obrigam contratualmente os investigadores a atingir determinadas receitas científicas – se não as atingirem, pode ser motivo para não renovar o contrato. Com muitos jovens investigadores com contratos de um ou dois anos, isto pode dar-lhes um vínculo. A precarização do trabalho de investigação e o uso de contratos de curto prazo também devem ser lembrados como fatores que pressionam os investigadores”, frisa.