Uma gafe indesculpável

Os contos eram uma sucessão de casos de infidelidade, de traições conjugais, de suicídios de homens desesperados, de casos escaldantes, mulheres adúlteras e maridos cornudos. Uma leitura excelente, sem dúvida… mas não para uma maternidade.

Quem nunca errou que atire a primeira pedra. Mas neste caso o erro ainda me embaraça, dada a delicadeza das circunstâncias e o facto de ser suposto eu perceber alguma coisa de livros.

O episódio passou-se no dia do nascimento do meu filho mais novo. Tínhamos saído de casa como ladrões a meio da noite e, com a pressa, a minha mulher só pôs o essencial num saco de viagem. Obviamente, os livros não entravam nessa categoria.

Mas a verdade é que, como nos primeiros dias os recém-nascidos estão quase sempre a dormir, ia haver bastante tempo livre.

O bebé nasceu bem às primeiras horas da manhã. Um pouco antes da hora do almoço, escapuli-me da maternidade e dirigi-me a uma pequena livraria ali perto. Ao fim de uns minutos a perscrutar as estantes, identifiquei algo que me pareceu apropriado. Uma leitura ligeira, bem-humorada, assinada por um dos mestres do jornalismo brasileiro do século XX. Pequenos contos que se liam de um fôlego. Abri-o numa página ao acaso, uma espécie de teste que costumo fazer sempre antes de comprar um livro, e o que li provocou-me um sorriso. Fiquei convencido.

De regresso à maternidade, ofereci-o à minha mulher, muito satisfeito comigo próprio, e sentei-me um pouco no sofá a ver televisão. Quando olhei para ela, estava a dormir com o livro aberto na primeira página. ‘Está cansada’, pensei. ‘Afinal pôr um bebé no mundo e alimentá-lo deve ser muito cansativo’.

Só que, nos dias que se seguiram, a sequência de pegar no livro e adormecer quase de imediato tornou-se um padrão. Como assim? Não estávamos perante uma leitura fácil, ligeira, divertida? Como era possível que lhe provocasse sono?

Fui então ver o livro com mais atenção. É verdade que não conseguia parar de virar as páginas umas atrás das outras, mas rapidamente cheguei à conclusão de que dificilmente podia ter escolhido um livro menos apropriado. Os contos eram uma sucessão de casos de infidelidade, de traições conjugais, de suicídios de homens desesperados, de casos escaldantes, mulheres adúlteras e maridos cornudos. Uma leitura excelente, sem dúvida… mas não para uma maternidade.

Esse livro chama-se A Vida Como Ela É, de Nelson Rodrigues. Na altura em que os contos foram publicados no jornal carioca Última Hora, nas décadas de 50 e 60 do século passado, as suas cenas ‘para maiores de 18’ causaram escândalo. Não é de admirar portanto que a minha mulher, focada no bebé e nas suas necessidades, adormecesse tão facilmente ao lê-lo. Deparando-se com tamanhas indecências, o cérebro pedia-lhe simplesmente para desligar.