Esperança e frustração. As palavras surgem lado a lado no último relatório sobre o progresso na investigação em torno da doença de Alzheimer publicado em setembro de 2018 pela Alzheimer’s Disease International, federação que junta associações de doentes de todo o mundo. Desde 1998 foram testados 100 medicamentos para a doença e só quatro foram aprovados – nenhum muda o curso do Alzheimer, ajudam apenas a gerir os sintomas. O novo ano traria uma desilusão maior: em março, a farmacêutica norte-americana Biogen e a japonesa Eisai anunciaram o cancelamento de ensaios clínicos em torno da molécula que nos últimos anos era considerada a mais promissora na tentativa de travar o Alzheimer. Mais de cem anos depois de ter sido descrita pela primeira vez, a pandemia do século XXI – com 50 milhões de doentes em todo o mundo e estimativas de que os casos vão triplicar com o envelhecimento – continua sem uma solução eficaz.
«Esta doeu», disse à CNN Richard Isaacson, médico em Nova Iorque, um sentimento que apanhou doentes, famílias mas também os profissionais de saúde e investigadores que trabalham na área quando foi anunciado o fim dos ensaios do medicamento aducanumab. Na semana passada, a frustração cresceu para uma onda de indignação.
O Washington Post revelou que a Pfizer optou por não investir em ensaios clínicos para explorar um efeito protetor na doença de Alzheimer de um dos seus medicamentos usados no tratamento da artrite reumatoide. O jornal teve acesso a um power point apresentado internamente onde podia ler-se que o Etanercept (nome comercial Enbrel) poderia potencialmente prevenir, tratar ou atrasar a progressão da doença, pista que a farmacêutica descartou sem ter tornado públicos os resultados da investigação que fez durante três anos. Segundo o Washington Post, chegou a estimar-se uma redução de risco em 64%.
Há apenas registo de um artigo científico publicado em 2015 na revista científica Neurology sobre o assunto, um pequeno estudo que mostrou que o medicamento era bem tolerado pelos doentes com Alzheimer e que havia «tendências interessantes», mas com uma amostra de 41 doentes (20 que fizeram a medicação e 21 que tomaram um placebo) não foram encontradas «alterações significativas na cognição, comportamento ou função global». Ficava implícito o pedido de mais estudos. «Um grupo maior e mais heterogéneo precisa de ser testado antes de se recomendar o uso a grupos mais amplos de doentes».
As críticas ao comportamento da farmacêutica não tardaram, mas houve vozes a tentar pôr água na fervura. Derek Lowe, químico que já passou por várias farmacêuticas e autor do blogue In The Pipeline, sobre os bastidores da indústria, foi taxativo: «Geralmente as farmacêuticas não se afastam de grandes lucros se os podem ter. Tive os meus problemas com a Pfizer ao longo do tempo, mas nunca questionei a sua capacidade para fazer dinheiro. Se a Pfizer pensasse mesmo que este seria um caminho promissor para o tratamento do Alzheimer, teria encontrado forma de lucrar com isso». E vai mais longe: um dos problemas levantados em relação ao medicamento era estar próximo de perder a patente – o que daria um horizonte temporal limitado para a empresa recuperar o investimento. Outro era a sua fraca capacidade de chegar ao cérebro, dado ser uma molécula demasiado grande. «Um sinal credível para a doença de Alzheimer, por mais improvável que fosse, teria sido ocasião para procurar através de anticorpos semelhantes ou formas modificadas do Enbrel por alguns que tivessem melhor penetração. Nem é preciso dizer que estes poderiam ser patenteados de novo», diz.
Se há argumentos dos dois lados, o certo é que a pista não ficou totalmente adormecida. Clive Holmes, um dos investigadores que assina o estudo de 2015, e que assume ao Washington Post ter ficado frustrado com o abandono da linha de investigação por parte da farmacêutica, tem estado a prosseguir os estudos na Universidade de Southampton, no Reino Unido. O ensaio clínico foi registado em 2015, com o objetivo de analisar o efeito do etanercept na redução da inflamação no cérebro como forma de prevenir a doença. Não são conhecidas, de momento, conclusões.
‘O que aconteceu não é assim tão pouco usual’
Depois de um grande entusiasmo há dez anos de que as linhas de investigação poderiam estar mais perto de dar frutos parece haver um momento de maior pessimismo em torno de uma cura para a doença. Será mesmo assim? Luísa Lopes, investigadora no Instituto de Medicina Molecular, especialista em neurobiologia do envelhecimento e com trabalho na área da doença de Alzheimer, ajuda a pôr as notícias dos últimos tempos em perspetiva. No caso da Pfizer, acredita que os títulos foram mais alarmistas do que o conteúdo. «O que aconteceu, na minha opinião e na de muitos colegas da área envolvidos em ensaios, não é assim tão pouco usual. Há dados observacionais, ou seja, no decurso de outro ensaio e com outros objetivos, em doentes escolhidos para outra patologia, foi anotada uma possível associação benéfica a um efeito cognitivo. Para tirar uma conclusão sobre esse efeito, teria de ser feita uma experiência controlada e rigorosa, o que não foi o caso», diz ao SOL. «No campo das doenças neurodegenerativas, os ensaios são morosos, muito dispendiosos e muito difíceis de executar. E temos tido muita experiência com dados observacionais que têm falhado redondamente, porque uma observação é muito diferente de uma experiência com muitos pacientes, bem controlada e desenhada e com todas as variáveis rigorosamente medidas.» Não conhecendo em detalhe o caso, acredita que não teriam tido uma posição muito diferente. «Provavelmente tomaríamos a mesma decisão com base na experiência, exceto se houvesse uma evidência muito mais forte e inequívoca e que justificasse seguir esta linha de ensaio».
Já sobre o fim da investigação do aducanumab, a investigadora admite que foi um momento de deceção, mas também aí há lições que podem ajudar a trilhar melhor o caminho para a frente. «Sempre que não há tratamento para uma doença, obviamente que as expectativas depositadas num possível fármaco são enormes, tanto para os pacientes como para os clínicos e investigadores da área. Para nós foi muito dececionante, mas os dados não mentem. Ou seja, o fármaco eliminava de forma eficiente os agregados de proteínas beta-amilóide que se depositam na doença de Alzheimer, era seguro ao contrário de outros antecessores, mas infelizmente não se verificaram melhorias significativas dos défices cognitivos». E aqui está a pista. «Estes dados ajudam-nos a perceber pela primeira vez que um fármaco muito eficaz a eliminar as placas de beta-amilóide não é suficiente para reverter as perdas cognitivas, o que nos leva a pensar que temos de olhar para outros mecanismos da doença, provavelmente mais precoces e difíceis de detetar. Neste momento, temos duas estratégias, uma é a deteção muito precoce da doença de forma não invasiva por forma a intervir mais cedo e a outra de testar fármacos que atuem noutros alvos, como por exemplo a proteína Tau». Apesar das alterações nesta proteína no cérebro dos doentes de Alzheimer terem sido descobertas nos anos 80, nos últimos anos o grande alvo terapêutico tem sido as tais placas de proteína beta-amiloide que intoxicam o cérebro, jogo que começa agora a mudar.
Apesar de ainda não haver um salto no tratamento, Luísa Lopes aponta avanços nas últimas duas décadas. «Estamos cada vez melhores a detetar alterações subtis causadas pela doença, tanto através de biomarcadores no sangue, como de dados de imagiologia de funcionamento cerebral e de testes neuropsicológicos mais eficazes desde mais cedo».
Porque não há só notícias más, uma investigação publicada em janeiro na revista Nature Medicine por investigadores do Centro de Doenças Neurodegenerativas de Tübigen, na Alemanha, descreveu um método que poderá permitir despistar sinais de Alzheimer 10 anos mais cedo a partir da deteção de uma proteína no sangue e medula dos doentes. «Sabemos que a doença de Alzheimer começa no cérebro uma ou duas décadas antes de a pessoa ter sintomas. Também sabemos que a terapia tem de interferir 10 anos antes dos sintomas ou até mais cedo se queremos ter sucesso», explicou um dos autores do estudo, Mathias Jucker, ao falar do que poderá ser mais uma das peças para resolver o puzzle e conseguir abordagens mais eficazes contra a doença.
É preciso acrescentar outra: o estilo de vida. Nos últimos anos, Luísa Lopes diz que é das vertentes em que há mais dados novos. «O sono, o exercício físico e intelectual, a alimentação, o risco cardiovascular e diabetes, o isolamento social e a cafeína são hoje reconhecidos e provados como intervenção precoce que têm dado frutos. Há múltiplas equipas no mundo a tentar perceber quais os mecanismos cerebrais por detrás destes efeitos para os usar como pista para novos tratamentos», explica. O seu grupo de investigação no IMM, por exemplo, ajudou a perceber os mecanismos que fazem com que a cafeína retarde as perdas de memória associadas ao envelhecimento, uma investigação publicada em 2016 na revista Scientific Reports. E estão a tentar encontrar moléculas que repliquem esse efeito. No fundo, tentam perceber o que distingue o envelhecimento normal do envelhecimento com degeneração e perda de neurónios, explica a investigadora, para a partir das proteínas envolvidas procurar novos trilhos de intervenção.
Para Luísa Lopes, só olhando para a fotografia completa e tendo em conta o estilo de vida será realista pensar numa ‘cura’ para a doença de Alzheimer. E aceitando também que dificilmente se poderá resumir a um único comprimido, o que ajuda a calibrar as expectativas. «Acho que é realista considerar que a doença de Alzheimer é multifatorial, que o maior fator de risco é o envelhecimento do cérebro e portanto qualquer estratégia de vida por forma a preservar a saúde física intelectual o mais possível e com maior qualidade terá inquestionavelmente um efeito positivo. Tal como para outras doenças como o cancro, vamos perceber que não haverá um tratamento único, um comprimido milagroso, mas sim que temos de alterar comportamentos à medida que a esperança média de vida aumenta e nos expõe a doenças que não eram consideradas quando só vivíamos até aos 40 anos».