«Tiveram a fineza de me apresentar todas as prisões do fascismo», ironizava para o título de uma das suas últimas entrevistas, em 2016, ao Observador. Também ele jornalista, num percurso de vida que foi muito para lá disso. Ruben de Carvalho, desaparecido na passada terça-feira, era o único membro do atual Comité Central do PCP que tinha estado preso nas prisões da PIDE. Foi funcionário do partido, ao qual aderiu em 1970, entre 1974 e 1997 – e deputado na Assembleia da República entre 1995 e 1998. Ficaria sobretudo conhecido como executivo da comissão organizadora da Festa do Avante!, cargo que desempenhou a partir de 1976.
O funeral de Ruben de Carvalho realiza-se neste domingo, em Lisboa, no cemitério do Alto de São João, onde o seu corpo será cremado após uma cerimónia marcada para as 15h. Hoje, o corpo do histórico comunista estárá, a partir das 17h30, em câmara ardente nos Paços do Concelho.
Na Câmara de Lisboa, era o responsável pelo Roteiro Antifascismo. E foi vereador da CDU nos anos em que a autarquia foi comandada por António Costa. «Sou suspeito para falar sobre o António Costa. Andei com ele ao colo e quando digo que andei com o António Costa ao colo não é uma figura de retórica. O meu pai e o pai do António Costa eram amigos. Quando eu tinha 18 anos o António Costa tinha dois ou três», disse na mesma entrevista ao Observador, em que comentou o facto de ter sido um dos apoiantes da solução governativa que vigorou ao longo desta legislatura.
«Votei favoravelmente esta solução que não marca nenhuma alteração particular da parte do PCP. Sempre defendemos a necessidade de uma alternativa de esquerda para a governação. Não tiramos nenhum coelho do chapéu». O que aconteceu em 2015, acrescentou, foi que se criaram «condições objetivas», referindo-se ao resultado eleitoral das últimas legislativas, «e subjetivas para que isso acontecesse».
A sua importância quer no interior do partido quer na luta pela democracia foi, na sua morte, reconhecida nas notas de pesar dos vários partidos. Não só pelo PCP. Recordou Jerónimo de Sousa a forma como «abraçou, durante toda a sua vida, a luta pelo projeto do partido que o animava, que o acompanhou durante toda a sua vida, e é neste quadro que podemos dizer que era um homem de projeto, um homem que lutou pela liberdade, pela democracia, que tinha o seu projeto de luta pelo fim da exploração do homem pelo homem, na luta pelo socialismo e pelo comunismo».
Mas também o deputado centrista Telmo Correia o lembra como «uma figura superior da política portuguesa, da cultura portuguesa. Um adversário que nos merece muitíssimo respeito. E, além disso, uma pessoa sempre afável e sempre simpática». Para António Costa, que recordou «antes de mais, um amigo», «um homem de cultura e inteligência política invulgares», que «seduzia adversários». Para o Bloco de Esquerda, um homemque, mais do que um militante do PCP, foi um «militante da democracia e da liberdade».
Nascido em Lisboa a 21 de julho de 1944, Ruben Luís Tristão de Carvalho começou muito jovem a afirmar-se como uma voz ativa na luta contra o regime ditatorial do Estado Novo. Foi preso pela primeira vez aos 18 anos, mas a sua relação com a polícia já tinha começado uns anos antes, quando foi sovado numa manifestação. Antes de se tornar militante do PCP, foi membro das comissões juvenis de apoio à candidatura do General Humberto Delgado, em 1958, e da Comissão Democrática Eleitoral (CDE), entre 1960 e 1970.
O seu envolvimento na política tornaram-no num alvo apetecível para a PIDE. Foi preso por seis vezes e levado para os estabelecimentos prisionais de Caxias e do Aljube – a última das quais, a 7 de abril de 1974, 18 dias antes da revolução. Submetido à tortura do sono repetidas vezes, chegou a passar seis meses em isolamento.
No seu percurso político, além de ter desempenhado as funções de deputado na Assembleia da República e de vereador na Câmara de Lisboa, foi também chefe de gabinete do ministro Francisco Pereira de Moura no primeiro Governo Provisório após o 25 de Abril. Como jornalista, foi chefe de redação da Vida Mundial, redator e coordenador do jornal O Século e, entre 1974 e 1995, chefe de redação do semanário comunista Avante!. Como cronista, escreveu para vários jornais e nos últimos anos protagonizava, com Jaime Nogueira Pinto, na Antena 1, o programa de debate da atualidade Radicais Livres.
Publicou, em 1978, o livro Dossier Carlucci CIA (Editorial Avante), um livro sobre o embaixador dos EUA em Lisboa após a queda do Estado Novo, e organizou, para publicação a título póstumo, a obra de José Carlos Ary dos Santos, no livro As Palavras das Cantigas (Ed. Avante, 2018).
Vivia na Amadora, num rés-do-chão com as paredes forradas a livros e discos de vinil – uma garagem que tinha transformado em casa-biblioteca. Para lá da política, será recordado no mundo artístico como um melómano – do fado ao jazz e aos blues, género em que era especialista. E ficará para sempre associado às primeiras atuações em Portugal de nomes como Chico Buarque, Dexys Midnight Runners e Pete Seeger nas célebres festas do Avante!.
*Com Mafalda Tello Silva