O ministro da Defesa e os militares portugueses entraram em choque frontal em plena praça pública. João Gomes Cravinho sugeriu que se o chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA) considera não ter condições para cumprir as missões que lhe estão confiadas pelo Governo, então não deve continuar em funções.
Os militares levaram o discurso do ministro como uma ameaça e pedem agora a demissão de João Gomes Cravinho. Toda a polémica começou numa entrevista à Rádio Renascença, no dia 18 de julho, do Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), almirante Silva Ribeiro, na qual considerou que a situação atual das Forças Armadas (FA) portuguesas «é insustentável», devido à falta de recursos humanos nas fileiras militares. O Almirante Silva Ribeiro sublinhou também que tem alertado o Governo para este cenário, que deixa a instituição num «desequilíbrio», tendo em conta as missões a cumprir e os meios humanos para o fazer. Em menos de 24 horas, João Gomes Cravinho reagiu a estas declarações, expressando um claro desagrado com a forma como o CEMGFA se tinha pronunciado, apesar de concordar com o retrato feito.
‘Linguagem infeliz’ «Houve infelicidade na linguagem, mas o problema é real», disse o ministro, acrescentado que «esta matéria tem vindo a ser objeto» permanente da sua atenção e que tem sido «discutida no Conselho Superior de Defesa Nacional, na Assembleia da República, no Conselho Superior Militar». João Gomes Cravinho acabou por se recusar a «dramatizar» a falta de militares nas FA e, além de reforçar que «seria erróneo e redutor imaginar que nada está a ser feito», afirmou que se o CEMGFA não pode cumprir a sua missão, «então sairia» de funções. «Se ele [CEMGFA] chegasse à conclusão, que não chegou obviamente, que não pode cumprir essas medidas, então sairia. Mas não é essa a situação», disse o ministro da Defesa.
Se para o governante a linguagem do Almirante Silva Ribeiro foi infeliz, para muitos militares, a sua resposta foi inaceitável. Desde o início da semana, ao que o SOL apurou, centenas de militares dos três ramos das FA já assinaram um manifesto que exige a demissão do ministro por ter convidado «sibilinamente o CEMGFA a demitir-se, ficando no ar a ameaça de o fazer», pode ler-se no documento redigido pelo oficial da Força Aérea João José Brandão Ferreira.
Contacto pelo SOL, o tenente-coronel António Mota, presidente da Associação de Oficiais das Forças Armadas (AOFA), confirmou que a associação considera a caracterização denunciada pelo Almirante Silva Ribeiro «rigorosamente verdadeira». Quanto à demissão do ministro, o responsável garante que a associação não tem qualquer envolvimento no referido manifesto. O tenente-coronel António Mota sublinha que tal afastamento «de pouco serviria», tendo em mente que o problema não está nos executivos, mas sim «na ineficaz estratégia» que tem sido reproduzida por sucessivos Governos. Esperando que os portugueses compreendam «a gravidade da situação nas FA», o presidente da AOFA apenas ‘lamenta’ que o general piloto aviador Joaquim Borrego, chefe do Estado-Maior da Força Aérea (CEMFA), e o almirante Mendes Calado, chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), só tenham alertado para o cenário pouco tempo antes do CEMGFA, pois «é uma realidade que se tem vindo a verificar há pelo menos uma década», explicou.
Partilhando exatamente a mesma posição, o cabo-mor Luís Reis, presidente da Associação de Praças, destacou igualmente ao SOL que esta não é uma «desvalorização» de agora.
«Há cerca de 10 anos que a associação tem tido reuniões com os Chefes militares, com o Ministério da Defesa, com os grupos parlamentares e com a própria Comissão de Defesa, e em todos estes encontros previmos e denunciámos esta situação. A falta de efetivos tem vindo a aumentar ao longo dos últimos anos – simplesmente, não se tem criado soluções para que esta realidade não subsista», defendeu.
Ainda na mesma linha de pensamento, o sargento-mor Lima Coelho, presidente da Associação Nacional de Sargentos (ANS), apontou o dedo também às várias governações. «Os responsáveis são os sucessivos governos que passaram pelo país, ao longo destes anos, e que, independentemente dos partidos que os integraram, conduziram a Instituição Militar ao estado em que hoje nos encontramos», garantiu o presidente da ANS ao SOL, enfatizando não querer comentar, em específico, as declarações quer do ministro quer do CEMGFA.
O sargento-mor defendeu ainda que as FA devem ser «faladas por todos os cidadãos» e não apenas tratadas em «fóruns ou circuitos fechados com os mesmos oradores de sempre», recordando que os militares servem o país e, como tal, «o povo português tem uma palavra a dizer».
Esta quarta-feira, João Gomes Cravinho publicou um artigo de opinião no jornal Público onde, num tom mais suave, defendeu que a discussão sobre «o número de militares que hoje servem nas Forças Armadas é uma excelente oportunidade para dar a conhecer aspetos desta complexa realidade e as soluções que estão a ser desenvolvidas».
Ainda neste texto, o sucessor de Azeredo Lopes, sem fazer qualquer alusão ao pedido da sua demissão, recorda que tem havido um distanciamento entre a sociedade e as FA não só em Portugal, mas também noutros países da Europa. De seguida, o governante invoca algumas respostas que têm sido apresentadas pela tutela, como o Plano de Ação para a Profissionalização, divulgado em abril, com 34 propostas alinhadas numa estratégia para os próximos cinco anos. João Gomes Cravinho salientou iniciativas como o aumento do salário de base de entrada dos militares ou a atualização do Regulamento de Incentivos.
Sobre as mais recentes palavras do ministro, os representantes das associações contactadas pelo SOL explicaram que essas medidas não convencem, pois nunca chegam a realizar-se ou acabam por não representar reformas estruturais nas FA.
«Uma coisa é certa: quando não se concretizam as leis que se aplicam aos militares ou quando não se respeitam as funções dos militares não adianta estar a apresentar projetos se depois não são cumpridos», acrescentou ainda o sargento-mor Lima Coelho, da ANS.
O SOL contactou também o comandante Pedro Santos Serafim, responsável pelo gabinete do CEMGFA, que referiu nada mais haver a declarar por parte do órgão militar sobre o assunto.
Seis mil militares em falta Na polémica entrevista, o almirante Silva Ribeiro afirmou que faltam seis mil militares às FA e que é imperioso aumentar os salários, tendo em conta que centenas de militares abandonam a Instituição para servirem na PSP e GNR. O CEMGFA recordou também que nos últimos cinco anos saíram mais de 15 mil efetivos e que, só em 2019, já saíram mais de três mil, sendo que 2.600 pertenciam ao Exército, obrigando os militares ao serviço a um «esforço tremendo».
Esta semana foi entregue uma petição na Assembleia da República por dirigentes de estruturas representativas das Forças Armadas, Polícia Marítima e GNR, com mais de cinco mil assinaturas. Em causa está o desbloqueamento das carreiras e a não contabilização, para efeitos de progressão, do tempo em que as carreiras estiveram congeladas, desde 2011. Os militares exigem agora que seja revisto o decreto-lei 65/2019, de 20 de maio.