“Nunca vi preocupação com os maiores problemas dos transexuais”

Para João Décio Ferreira, cirurgião plástico que acompanha há 15 anos casos de transexuais, as novas regras nas escolas não resolvem o principal foco de sofrimento: a demora no acesso a tratamentos. ‘É um fait-diver’, diz ao SOL. 

Mais informação e mais privacidade para todos. Para João Décio Ferreira, cirurgião plástico que acompanha desde 2005 casos de transexuais, a controvérsia em torno das novas regras nas escolas para a integração de alunos com disforia de género peca por não pôr a tónica no esclarecimento da sociedade e em não contribuir para o que acredita ser o maior foco de sofrimento das pessoas que se sentem no corpo errado. Da sua experiência em consulta, diz que, para muitas pessoas, além do sofrimento de se sentirem «no corpo errado», é a demora no acesso a tratamentos cirúrgicos que mais pesa à medida que os anos vão passando. «São precisas várias cirurgias e até agora não tem havido da parte do Estado nem capacidade nem qualquer esperança para se fazerem as cirurgias como deve ser e no tempo em que deveriam ser feitas. É tudo isto que os faz sofrer, mais do que as casas de banho, que são quase um fait-diver».

Entre 2005 e 2009, Décio Ferreira foi responsável pelas cirurgias de mudança de sexo no Hospital de Santa Maria, altura em que se reformou aos 65 anos e passou a trabalhar no privado. Hoje, admite que lhe chegam casos de pessoas que estão a aguardar resposta no Estado e avisa que este é um grupo onde o risco de suicídio é maior.

Dados disponibilizados ao jornal i em fevereiro revelam que, em 2018, foram feitas apenas nove cirurgias de reatribuição sexual na Unidade de Reconstrução Genito-Urinária e Sexual (URGUS) do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, o único serviço do SNS que recebe estes casos. Havia, à data, 14 pessoas em lista de espera para iniciar tratamentos, sendo que as nove cirurgias realizadas não significam que tenham sido intervencionadas nove pessoas no ano passado, uma vez que cada caso pode implicar um diferente número de intervenções. Desde 2011, quando Coimbra passou a receber estes casos, tinham sido feitas 78 cirurgias.

Décio Ferreira explica que são necessárias cerca de 12 cirurgias no caso da mudança de masculino para feminino e duas na mudança de feminino para masculino. O tempo que medeia as intervenções e os resultados estão entre as queixas que lhe chegam. Se nos últimos anos chegou a ser acusado de pressionar doentes a irem para o privado, rejeita falar das «guerras» e diz que, pelo contrário, chega a encaminhar doentes para cirurgias no Estado, que acompanha, além de receber doentes de outros países. Fez mais de meia centena de operações de mudança de sexo de feminino para masculino. Portugal, ao contrário das estatísticas mundiais, tem historicamente um maior registo de mudanças de sexo de feminino para masculino do que o contrário, não  existindo um balanço atualizado das mudanças de sexo feitas no país.   

Menos preconceito? Para o cirurgião, há menos preconceito face aos primeiros tempos da cirurgia de mudança de sexo em Portugal, que se inicia em 1995 no Santa Maria com o cirurgião Godinho de Matos. «Na altura havia pouco conhecimento e havia sempre a tendência para pensar que homossexuais e pessoas transexuais eram o mesmo, também porque como eram poucas pessoas associaram-se às organizações que existiam», recorda. 

Até 2011, para fazer a mudança de nome no registo civil era preciso ir a tribunal, já depois de concluir os tratamentos. «O Estado pagava os tratamentos mas obrigava as pessoas a ir a tribunal para haver uma sentença enviada às conservatórias. Em relação a esse tempo há uma grande evolução. Acompanhei 25 desses julgamentos. Num dos casos, a juiz perguntou à companheira de um homem que já tinha feito a mudança se nunca se sentiu lésbica por andar com ele, respondeu-lhe que não, que para ela sempre tinha sido o Manel, supondo que era esse o nome. Até a juíza tinha dúvidas». 

Hoje está-se no «extremo oposto», diz. Vê no reconhecimento de um cada vez maior número de géneros – cidades como Nova Iorque reconhecem mais de 30 – uma volta completa, com riscos, nomeadamente por falta de esclarecimento e se se levar essa definição ao limite. A transexualidade é um grupo dentro do universo de pessoas transgénero, que tem uma identidade de género diferente do sexo de nascença, com acompanhamento específico, explica, e que pode efetivamente manifestar-se em crianças muito novas, com três, quatro anos, quando não se reconhecem no corpo em que nasceram, contrariando assim quem entende que não têm capacidade para discernir. «Sabem perfeitamente que não são rapazes ou não são raparigas e ficam chateados quando são tratados assim». Uma diferença com razões biológicas: os órgãos genitais formam-se por volta dos três meses de gestação, quando as mesmas estruturas se diferenciam no sexo masculino ou feminino, e as mudanças no cérebro só ocorrem por volta dos cinco meses, explica. «A partir daqui pode haver diferentes gradações, fala-se de diferentes géneros. A sociedade vai evoluindo e qualquer dia não se fala de géneros, cada um tem o seu. Na altura opus-me à mudança da lei [que em 2018 passou a permitir a mudança de género no registo civil a maiores de 16 mediante relatório médico e eliminando a necessidade de avaliação médica a maiores de idade] porque se dizia que era um problema dos transexuais quando esses já tinham uma lei para os seus casos, faltava aumentar a resposta. O Parlamento é soberano, mas no fundo o que se fez foi permitir que qualquer pessoa possa mudar de nome e género no registo e o resto continua por fazer», diz. 

E se o tema do momento é se as escolas podem ser locais mais inclusivos e respeitadores do direito à autodeterminação de género e proteção das características sexuais de cada um, defende que o caminho não deve ser a «separação», com casas de banho para cada género diferente, mas o respeito por todos, com informação que permita esclarecer a comunidade escolar sobre identidade de género e não impor regras que pais e alunos podem não entender. É também aí que vê o perigo de um extremo. «Sempre o fizemos em consulta. Sempre perguntei como é que a pessoa queria ser tratada. No caso das casas de banho, qualquer dia qualquer pessoa na escola tem de ter uma casa de banho só para ela. Para garantir um ambiente mais confortável e inclusivo devia esclarecer-se antes de mais a sociedade e garantir a privacidade de todos, por exemplo em vez de se terem correntezas de urinóis em que ninguém tem privacidade, casas de banho normais com cubículos individuais dariam para todos».