Numa morte por mil cortes, as notícias sucedem-se, os tantos relatos, as histórias devoradas pelos pontos que cada um acrescenta e pelo imparável dilúvio de imagens, cercadas pelo temporal constante das opiniões, das arbitrariedades da ideologia e de todos os preconceitos. Com tudo isto, é a própria ideia de representação da realidade o que colapsa. Hoje, o mundo não tem já um rosto. Este foi despedaçado, e a sua voz perdeu-se debaixo dos escombros. O próprio vício do diagnóstico ainda sujeita o paciente a um maior desânimo. Não lhe resta nem a dignidade de definhar em paz. Neste contexto, não deixa de ser animadora a pujança insuperável de um pensador e criador como Alexander Kluge (Halberstadt, 1932). Numa recente entrevista à Electra, se não deixou de traçar um quadro preocupante sobre os desafios com que hoje nos confrontamos, deixou claro que já «não nos podemos dar ao luxo do pessimismo». E adianta: «Por volta de 1900 podia-se ser pessimista, era uma moda. Mas quando o Titanic se afunda e nós estamos no interior dele não nos podemos permitir o pessimismo. Se não temos barcos de salvação, temos de arrancar a madeira dos salões e construir jangadas.»
Este escritor e cineasta, é o autor de dezenas de filmes e de milhares de emissões televisivas, tendo produzido uma série de audaciosos programas culturais para a televisão, mas se é uma das figuras de proa do «novo cinema alemão» dos anos 60 e 70, tendo recebido o apodo de «o Godard alemão», Kluge sempre vincou que a escrita é o principal eixo da sua criação. Em Portugal, houve já margem para algumas apresentações da sua obra cinematográfica, mas o trabalho ensaístico e literário, que foi uma das influências capitais de W.G. Sebald, permanece largamente ignorado. Se não é de esperar que isso se altere de um momento para o outro, pelo menos há agora condições para uma descoberta deste autor que, antes de tudo, começa por obrigar-nos a uma certa cautela e frieza, ainda que a sua obra seja animada de uma voracidade omnívora, e que reclama a crónica com um género próprio da resistência. Uma espécie de tumulto de quem não aceita o fim da História e nem da utopia. Na introdução ao primeiro de três tomos previstos do que será uma edição portuguesa – condensada por Kluge e, em alguns aspectos acrescentada de novos textos – do seu «livro-mundo» Crónica dos Sentimentos, Vincent Pauval lembra que «se existe crónica, não se desistirá de a escrever, seja qual for a forma que venha a assumir.» Ora, a desmedida ambição desta obra responde ao desafio de reapropriação da mais vasta matéria do mundo – entre a história, a política e a cultura, e lidando com as grandes obras da literatura contemporânea e de todos os tempos num fabuloso processo de expansão da intimidade e da consciência. Como destaca António Guerreiro na entrevista que surge no 4.º número da Electra, «Kluge fez um trabalho de analista e arqueólogo que desenterra o que está submerso. Iniciou quase sozinho essa tarefa de lidar com o passado alemão. Não apenas o passado mais recente: ele achou que devia contar a história infeliz da Alemanha, seguindo esta convicção: ‘A história alemã, até nas suas raízes, é um laboratório da infelicidade’».
Tendo começado por estudar Direito, foi enquanto conselheiro judiciário no Instituto de Investigação Social de Frankfurt que conheceu Theodor W. Adorno e com ele travou amizade na década de 1950. Viria a tornar-se seu colaborador próximo, e foi por recomendação dele que deu os primeiros passos no cinema, tornando-se estagiário numa rodagem de Fritz Lang, que, no final dos anos 50, regressou à Alemanha para os filmes finais da sua obra. No longo e profundíssimo estudo com que Pauval nos apresenta ao universo de Kluge, diz-nos que «o desafio de Crónica dos Sentimentos compreende-se melhor, sem dúvida, se situarmos este livro na perspectiva crítica cultural que foi a de Adorno e de Horkheimer, quando enunciaram que ‘tendo o mundo sobrevivido ao seu próprio fim, cabe à arte o papel de o constituir a partir de uma historiografia inconsciente’». Pauval ressalva que a obra de Kluge «aquiesce implicitamente esta reivindicação, mas também a ultrapassa reavaliando a relação entre função crítica e potencial utópico».
Depois de um tão emblemático título como Caminhadas com Robert Walser, de Carl Seelig, não seria de esperar que um catálogo, que dá ainda os primeiros passos, na cartada seguinte pudesse provocar quase um efeito de consternação à volta da mesa. Não pode deixar de se assinalar que uma estreia destas, e de uma figura com tão grande peso na cultura alemã, aconteça numa minúscula editora que não se parece com nada e surge, assim, de um ângulo morto para nos lembrar um tempo em que o meio editorial tinha um papel e um peso no debate público, e não era mais um órgão do Espectáculo, mas agitava, relançando os dados. Com mais de 500 páginas, esta edição impõe desde logo um abalo na concepção cada vez mais conservadora e impotente do que se faz passar por literatura entre nós. Estamos, de facto, diante de uma obra seminal e que se lança num corpo a corpo com a realidade, e isto seguindo uma estratégia fenomenal que passa por montar um pacientíssimo cerco, traçando aproximações através de uma prosa que nos desarma com o seu absoluto despojamento, e num estilo próximo ao do relatório, como refere Pauval.
Acontece que este estilo de fragmentação narrativa vai abrindo lacunas cada vez mais poderosas, e o seu tão astuto efeito de montagem adquire uma preponderância decisiva: a sua retórica é uma arguição silenciosa. O acaso vai sendo encostado à parede, e aquilo que, inicialmente, parece fazer fronteira com os domínios do inapreensível revela-se, aos poucos, uma ofensiva. Lenta mas obstinadamente, Kluge vai arquitectando a sua tão paciente e incontestável campanha. Não recorre apenas a factos, a um entramado de relatos, estórias ou nacos da História, também se serve amiudadamente da ficção. Diz-nos Pauval que ele se afirma «através de um dispositivo que varia indiferentemente entre o biografismo e a autoficção, entre realidade e probabilidade, entre os riscos da memória e as incoerências do real». No fim, tudo funciona como uma vasta enciclopédia narrativa, que não tem fim nem começo, e que nunca se deixa inteiramente de lado. E nós, seus leitores, caímos nesta tão elegante armadilha, um jornal imenso, que nos compensa do declínio da imprensa escrita, embriagando-nos com o apelo compulsivo destas crónicas que, abolindo a dramatização, o moralismo e os juízos que espezinham tudo o que a eles não se conforma, nos deixam ébrios de realidade, de mundo. Isto é conseguido através da potência desta prosa que aprendeu com autores como André Gide (o «escritor sem estilo», como o classificou Roland Barthes) o rigor da observação.
Autor de um jornal eterno, o cronista renasce no papel de historiador apegado aos ângulos mais improváveis, iluminando os recantos escuros da História. Desce aos seus subterrâneos e dedica-se a fazer um levantamento dos detalhes que esta negligencia. Diz-nos Pauval, que Kluge o que faz é voltar a traçar a História, mas a «contrapelo, a partir dos seus elementos residuais, seguindo o olhar do Anjo da História, esgazeado perante os escombros». E lembra que Bejamin definia o cronista como «o narrador que, investido de uma missão de verdade na qual nenhum acontecimento é dado como perdido, relata sem hierarquizar». Assim, a escrita impessoal é determinada pela sua função, que a obriga a circunscrever-se a uma narração circunstanciada de certos elementos-chave, reservando para as suas escolhas toda a táctica, construindo a esse nível um efeito de persuasão formidável. Isto significa que Kluge – que foi descrito pelo poeta e ensaísta, e seu amigo, Hans-Magnus Enzensberger, como «o escritor sem coração» – consegue, ao mesmo tempo, atalhar caminho e compreender muito mais, abranger um território bem mais vasto do que esses garbosos narradores, deslumbrados com as suas faculdades dramáticas e que, tantas vezes, nos surbmergem no eflúvio das suas considerações, atirando-nos para fora do mundo.
«O meu ideal é contar constelações de romances e, para isso, é preciso concentrá-los», disse Kluge na entrevista. E Pauval esclarece que a «precaridade metódica» do seu modelo de crónica resulta de um esforço de tentar perceber «quais são as condições, as formas, a linguagem necessária para que os factos observados se possam tornar em acontecimentos, em experiências susceptíveis de serem válidas para os contemporâneos, para aqueles que não estiveram lá para as viverem? Como passar uma ‘mensagem’ ou uma ‘notícia’ e que sentido dar-lhe em definitivo, sem contribuir para a propagação de um mito?»
No prefácio que escreve para esta edição do seu livro, lembra que aquilo de que «as pessoas precisam, nos seus percursos de vida, é de orientação. Como os navios, para navegarem. É essa a função de um livro tão extenso: que o leitor se compare, se deixe repelir ou atrair – porque um livro funciona como um espelho.» Também por esta razão, Kluge mostra como a pretensão da originalidade, além de tantas vezes não passar de uma criancice, é algo que nos atrasa, e nos conduz a esforços tão desesperados quanto vãos: «Não temos de entrar em concorrência, o que é preciso é cooperar com os nossos antecessores. E mesmo que sejamos mais pequenos do que Kafka, podemos continuar a produzir, a adaptar.» E numa das legendas das tantas imagens que integram as suas crónicas defende que, no limite, «os autores modernos deviam escrever por cima de esboços mais antigos, por exemplo, As Afinidades Electivas de Goethe ou o Quarteto de Heiner Müller, de modo a que, com o tempo, daí resultasse um ‘desfecho mais feliz das tristes histórias’. Assim sendo, a modernidade não consistiria em algo de novo, mas antes na transcrição de uma história prévia com vista a um fim melhor.
Comparando a experiência deste século face ao anterior, Kluge diz-nos que se o outro foi o das tragédias, pelo menos era claro quem era o inimigo, ao passo que hoje «a realidade mente, mostra-se como um camaleão». E se «não temos um Hitler, não temos um fascismo em uniforme, temos outras regressões que são tanto mais perigosas quanto menos visíveis são», nota, rematando: «O mundo dos algoritmos é um mundo que tira realidade, subtrai realidade à vida. Para esse mundo, nós somos como indígenas.»
Fazendo uso da lição de Adorno de que «o todo é a mentira», Kluge sublinha que «a literatura argumenta a partir do particular», e reforça: «Somos advogados do particular, do detalhe e não do geral.» De Marx, entre tantas outras noções marcantes, recorda a ideia de que «todas as forças do homem trabalham em coro», e, defende que nele os sentimentos é que são os proletários – «proletários poderosos», capazes de gerar as metamorfoses do real. E isso o orienta na sua abordagem: «Os sentimentos são necessários, essa monstruosa faculdade humana, para, na sua interioridade, deslocar montanhas, construir pontes entre tempos distintos. Uma política suficientemente forte para prevenir as guerras, para prevenir um fascismo, não depois deste ter mostrado a sua fúria, mas antes do seu desenvolvimento, não consigo concebê-la a não ser em posse de todos os sentimentos. Que falte um entre todos, é um calcanhar de Aquiles.»