A espera vai continuar para os casais que veem na legalização da gestação de substituição em Portugal uma oportunidade de poderem ser pais, uma hipótese que começou a ser discutida no Parlamento em 2012 e acabou por só estar em vigor em Portugal durante oito meses. Marcelo enviou esta semana para o Tribunal Constitucional (TC) o diploma aprovado em julho, que voltava a permitir esta alternativa para mulheres sem útero e condições clínicas que tornem impossível a gravidez, considerando que a alteração à lei não mudou o regime declarado inconstitucional há um ano pelo TC. Em suspenso ficaram os planos de pelo menos nove casais que já tinham feito o pedido para avançar, mas quem trabalha com estes casos admite que poderão ser muitos mais. Por agora a resposta à pergunta de quando e se será possível serem pais resume-se à incerteza.
A nova versão da lei manteve que a gestante só pode revogar o seu consentimento até ao início dos tratamentos, o que os juízes do TC consideraram ser uma «limitação fundamental do desenvolvimento da personalidade» da mulher, declarando a inconstitucionalidade com força geral da norma. Havendo «uma dúvida substancial de constitucionalidade», não tem «nenhum tipo de relutância» em pedir fiscalizações ao TC, disse Marcelo, que nunca tinha enviado um diploma para os juízes do Palácio Ratton e parece adivinhar a resposta. Se o veredicto só é esperado em meados de setembro, o cenário mais provável – mantendo-se o entendimento do TC – é um novo chumbo e o regresso da legislação ao Parlamento, agora só na próxima legislatura.
O BE, que alertou que se estava a aprovar uma lei inconstitucional, foi o único partido a apresentar uma solução diferente para a questão do consentimento, levando a votação final uma avocação à lei que permitiria à grávida recuar na decisão até à entrega da criança aos pais, mas a proposta foi chumbada por PSD, CDS e PCP.
Revés anunciado
Este ponto é claro no acórdão do TC conhecido em abril do ano passado, em que os juízes consideram que a gestação é um processo «único, em que se cria uma relação entre a grávida e o feto (…) Daí poder questionar-se até que ponto é que um consentimento prestado ainda antes da gravidez (…) é verdadeiramente informado». Foi aliás o único entrave colocado à gestação de substituição. A presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA), Carla Rodrigues, classificou de previsível a decisão de Marcelo e o seu antecessor, o juiz Eurico Reis, que se demitiu depois do chumbo do TC travar a gestação de substituição e impor o fim do anonimato na doação de óvulos e espermatozoides, também considerou que uma nova declaração de inconstitucionalidade é o cenário mais provável. Ao SOL, o juiz lamenta o impasse criado em torno da lei, onde nunca viu inconstitucionalidade – e lembra que, antes do chumbo do TC, também foi promulgada por Marcelo, «um brilhante constitucionalista». «Sinto uma profunda tristeza e irritação por passados tantos anos os anseios das pessoas não poderem satisfeitos», diz Eurico Reis, recordando que o debate começou em 2011, quando o CNPMA levou a questão à comissão parlamentar de saúde, onde teve o acolhimento, à data, do Bloco e do PSD.
No ano seguinte dariam entrada as primeiras propostas de lei do BE, PSD e PS – e chegou a discutir-se o projeto para casais homossexuais – mas tudo viria a ser rejeitado em 2015. Em 2016 a mudança na lei foi aprovada, a que se seguiu um veto de Marcelo. Em 2017, o PR viria a promulgar a lei, que vigorou entre julho de 2017 e abril de 2018, data do chumbo do TC.
‘Violação do Estado de direito’
«Isto é pior ainda porque o Tribunal Constitucional não declarou inconstitucional o modelo de gestação de substituição declarado na lei, o que significa que estamos numa situação em que um direito que é reconhecido, que já não é só um mero desejo das pessoas, não pode ser exercido, o que é de certa forma uma violação do Estado de direito», sublinha Eurico Reis.
O juiz alerta que além do efeito de não nascerem dezenas de crianças, há o risco de o Estado estar a contribuir para práticas «duvidosas» noutros países. «O que está a acontecer é que pode haver dezenas de casais a pegar nos seus embriões e irem fazer a gestação de substituição a outros países. Seguramente que alguns vão, mesmo se tiverem de penhorar os seus bens para isso. Temos crianças que não vão nascer e casais que vão ser obrigados a hipotecar os seus bens para satisfazer este desejo», diz Eurico Reis.
E vão fazê-lo em condições que, essas sim, podem não ter controlo, alerta. «Se a gestação fosse feita em Portugal nas condições previstas na lei havia um controlo sanitário. Como a celebração do contrato era precedida de um processo de avaliação realizado pelo CNPMA, havia a segurança de que os direitos da gestante não estavam a ser violados. Com estes procedimentos feitos em vários países do mundo, alguns que nem estão na UE, não temos a certeza que, aí sim, não estejamos a falar de barrigas de aluguer, em que o processo é feito a troco de pagamento, ou que a vontade da gestante seja livre e esclarecimento e que haja condições adequadas sanitárias».
Cláudia Vieira, presidente da Associação Portuguesa de Fertilidade, fala também de um momento de frustração para as famílias, mas considera «prudente» o envio do diploma para o TC, por evitar alimentar ainda mais falsas expectativas quando o diploma manteve a norma declarada inconstitucional do TC contra o que considera ter sido uma proposta equilibrada do BE. Para a responsável, que admite que alguns casais possam estar a recorrer ao estrangeiro – países como EUA, Ucrânia ou Grécia são alguns dos destinos internacionais mais conhecidas – mas a maioria não terá posses para o fazer, a votação da lei no Parlamento foi uma irresponsabilidade.
Antes do chumbo do TC, o CNPMA chegou a dar luz verde a dois casos. O primeiro, de uma avó que iria ser a gestante do neto, acabou por não ter sucesso na primeira tentativa de transferência de embrião.