Tancos, 28 de junho de 2017. A lua nova fez aquela madrugada extremamente escura. Uma carrinha de caixa aberta e um Renault Mégane aproximam-se de luzes apagadas da estrada de terra batida que contorna os Paióis Nacionais de Tancos. À 1h45, este último estaciona num caminho perpendicular à vedação, enquanto a carrinha para, paralela às duas redes de dois metros de altura que protegem a instalação militar. São, de resto, os únicos impedimentos a quem quiser entrar: as câmaras de videovigilância estão avariadas, as torres de vigia estão em maus estado e sem guarnição, não há iluminação e nem as rondas são respeitadas. Fora Filipe Sousa, militar no Regimento de Engenharia nº 1, quem, sem adivinhar os desenvolvimentos que a conversa teria, dera a ideia. O furriel, num jantar em casa da mãe em que estava presente o seu tio Valter Abreu – que andava com os dois pés fora dos trilhos da lei – confidenciara que Portugal estava longe de conseguir responder a um caso de terrorismo.
Do Mégane sai Valter Abreu, conhecido como Pisca. Infiltra-se primeiro num buraco da vedação exterior e, com um alicate, corta a segunda vedação, abrindo caminho aos restantes elementos do grupo que estavam na carrinha. De cara tapada com gorros passa-montanha, João Paulino, o cabecilha, seguido dos restantes, abandona a viatura e faz-se ao caminho, enquanto Valter volta para o carro e fica a vigiar – se alguém aparecer tem de desligar o cabo da bateria e simular que o seu carro avariou ali.
Segundo a acusação do Ministério Público a que o SOL teve acesso, o grupo de sete homens que assaltaram os Paióis Nacionais de Tancos entrou no espaço militar com dois carrinhos de mão, tendo feito diversas viagens de carregamento entre os paióis 14 e 15 e a carrinha, naquela madrugada. Valter Abreu, que ouvira do sobrinho as fragilidades da base militar, dera a dica a João Paulino – a quem devia mil euros do negócio da droga, como forma de o compensar e ainda lucrar algum dinheiro.
Para o assalto, Paulino juntou um grupo de amigos ligados ao tráfico de droga, como António Laranginha, com quem se dedicara ao negócio de armas, Fernando Santos, ex-sócio num bar de Ansião, João Pais, parceiro dos excessos da juventude em Albufeira, Pedro Marques, Hugo Santos e Gabriel Moreira, ambos do seu grupo de Ansião, onde Paulino em adulto se fixara. Além da ajuda de Valter, o líder do grupo quis também a do próprio militar Filipe Sousa, que acabou por se envolver no assalto, concluíram os investigadores.
Carrinhos de mão e duas cabras que… ‘viram’ tudo
Entre as 9h do dia 27 e as 9h do dia seguinte, a guarda aos paióis pertenceu ao Regimento de Engenharia n.º 1 – que não tinha tropas de elite nem tanto rigor nestas ações quanto os paraquedistas e a unidade de apoio geral de Material do Exército, que também faziam rondas, dado que, dos 20 paióis, um era dos paraquedistas, 15 da unidade de apoio geral de Material do Exército e os restantes do Regimento, que naquela noite estava escalado.
Nessas 24 horas, o comandante da guarda aos paióis disse aos guardas para não fazerem rondas regulares, tendo deixado por escrito o contrário, que as mesmas haviam sido feitas. O próprio acabou, no entanto, por executar duas rondas não tendo encontrado nada de estranho, além de duas cabras dentro das instalações militares. Também o oficial de dia não incumbiu ninguém de fazer tais vigias.
Não era sorte, o grupo de Paulino sabia que ia encontrar um cenário daqueles, sobretudo as dificuldades do Regimento de Engenharia já descritas por Filipe Sousa.
Com os carrinhos de mão, os assaltantes aproximaram-se dos paióis n.º 14 e 15, que tinham, cada um, três compartimentos. No 14, a porta A estava fechada com fechadura de quatro entradas e selada, a porta B estava fechada sem fechadura e selada, e a porta C estava só com cadeado e corrente e selada. Paulino, usando um saca cilindros comprado em Espanha e recomendado por Paulo Lemos, o Fechaduras, abre apenas as portas A e C, uma vez que sabia que a B estava vazia. No paiol 15 a porta C não foi aberta pelo mesmo motivo.
No total, o grupo, que naquele dia se reunira na Rua Heróis do Ultramar, em Ansião, fez cinco ou seis percursos de ida e volta aos paióis, sempre munido com um carrinho de mão, tendo selecionado apenas o material que interessava, segundo as indicações de Paulino e Laranginha.
As caixas de 311 kg que foram escondidas em Tomar
As caixas transportadas pesavam, no total, 311 kg – sendo umas eram de cartão e outras de madeira. «Os arguidos João Paulino, António Laranginha (Zé), Fernando Santos (Baião), Pedro Marques, Hugo Santos, Gabriel Moreira (Tige) e João Pais (Caveirinha) terminaram o transporte do material militar até à carrinha, pelas 4h», refere a acusação. Levaram consigo material avaliado em 34.962 euros e classificado com graus de perigosidade «alta, baixa e nenhuma».
Quando entraram na carrinha, os suspeitos terão tapado o material com cobertores, com receio de uma fiscalização na estrada, e Paulino tirou de imediato o gorro passa-montanhas. O destino era Tomar, um terreno da sua avó onde em tempos funcionara o restaurante Os Pegões e que fica a 30 kms dos paióis. O MP fez as contas e fala numa viagem de pouco mais de 30 minutos, a uma velocidade de 50 km/h.
Mas, pelo meio, segundo o MP, tal como acordado pelos arguidos, a carrinha foi acompanhar o Mégane até à entrada da A1, para que Valter pudesse seguir caminho até Aveiro, onde mora. Este elemento seguiu depois até à saída Aveiro Sul. Mais à frente, segundo a acusação, parou e atirou o alicate ao «leito da Ria de Aveiro» e foi para casa.
Os outros elementos do grupo seguiram para casa depois de deixarem as armas, chegando a Ansião já perto das 7h. Naquela jornada, os participantes desligaram os telemóveis para evitar que mais tarde fossem localizados, escrevem os investigadores.
A história do Fechaduras: de bandido a informador
No dia do assalto, o grupo já não contava, porém com o apoio de Paulo Lemos, mais conhecido como o Fechaduras. Com um passado ligado ao crime, este homem desistira do plano a meio e fizera inclusivamente uma queixa a uma procuradora do Departamento de Investigação e Ação Penal do Porto, dando conta do plano em marcha, que só não foi abortado porque a Justiça considerou que não havia indícios suficientes para autorizar diligências como a quebra do sigilo telefónico. A promessa dada pelos assaltantes ao Fechaduras era uma retribuição de 50 mil euros, independentemente de as armas serem ou não vendidas.
Depois de um almoço de preparação do assalto realizado em Sete Rios, Lisboa, no dia 10 de março de 2017, Paulo Lemos (Fechaduras) pensou melhor no papel que João Paulino tinha para si no assalto aos Paióis Nacionais de Tancos (PNT).
Segundo a acusação, «refletiu no seu passado de prática de crimes violentos relacionados com o controlo de estabelecimentos de diversão noturna do Porto, investigados no processo-crime que ficou conhecido por Noite Branca e nas consequências que teve na sua vida».
E mais: «Pensou que, quando regressou da Suíça, onde esteve emigrado, tinha jurado à mãe que não ia ser preso. E tinha mudado da zona do Porto, de onde é natural e onde vivia, para a zona de Albufeira, para se afastar do mundo do crime».
Outro dos fatores que, segundo a acusação, pesou na sua mudança de posição foi o facto de ter sido arguido num processo-crime que correu termos no Porto, cujo inquérito foi arquivado após o cumprimento de injunções, no âmbito de uma decisão de suspensão provisória do processo: «Paulo Lemos-Fechaduras ficou muito sensibilizado com a decisão da Procuradora da República, titular do processo, de não o submeter a julgamento». E, sem saber o que fazer quanto a Tancos, decidiu procurá-la, tendo a mesma encaminhado o caso para a PJ.
«O processo-crime [aberto na sequência da denúncia de Paulo Lemos antes do assalto] e a respetiva investigação seriam o meio idóneo a permitir uma situação de flagrante delito na prática do assalto aos PNT, o que não foi possível, uma vez que não foi, inicialmente, autorizada judicialmente a realização de interceções telefónicas», refere a acusação, salientando que não se podem assacar nem a ele nem a Fernando Guimarães (amigo que o apresentou a Paulino) responsabilidades sobre o assalto.
Um crime que podia alimentar a ETA
A acusação avança que, às 9h do dia 28 de junho de 2017, nem a patrulha que saiu nem a que entrou se apercebeu do assalto. E só pelas 16h30 foi feita a primeira ronda, tendo o comandante dos guardas nos paióis e o oficial de dia no seu relatório descrito o cenário encontrado, aproveitando para lembrar a falta de condições de segurança.
Segundo o Ministério Público, parte das armas poderia mesmo por acabar nas mãos dos terroristas da ETA, o que poria em causa a integridade do Estado espanhol. Os magistrados entenderam também que Paulino e Laranginha, aquando da combinação sobre a divisão de lucros, decidiram “sobretudo relativamente aos explosivos que trouxessem consigo, que António Laranginha (Zé) iria encetar contactos com elementos que tinham tido ligação com a Euskadi Ta Askatasuna (ETA), organização nacionalista basca armada, entretanto dissolvida a 16 de Abril de 2018, no sentido de lhos conseguirem vender».
«Tinham os arguidos João Paulino, António Laranginha, Fernando Santos, Pedro Marques, Hugo Santos, Gabriel Moreira, João Pais e Valter Abreu o propósito de vender material bélico, em especial explosivos, a elementos ligados à ETA, organização terrorista separatista armada que conheciam, sabendo que essa intenção era suscetível de afetar, de forma séria, a integridade, a segurança e as Instituições do Estado Português e, ainda, a integridade, a unidade, a segurança e a independência do Estado espanhol».
O Ministério Público enfatiza ainda que os arguidos sabiam que o «armamento bélico ali guardado pertencia ao espólio de guerra do Estado Português e sabiam que […] punham em causa a integridade nacional e afetavam o funcionamento do Exército português».
Quanto a Filipe Sousa, que numa conversa de família desencadeou todo este assalto, é referido que «sabia que, com o seu comportamento, violava os deveres funcionais a que estava sujeito como militar».