Na ressaca eleitoral, o país político – supostamente entretido com o processo de formação do Governo e com as vicissitudes das disputas internas no PSD, CDS ou PCP – foi sacudido pela inopinada revelação da saúde do Presidente da República, feita durante uma entrevista na SIC, e precedida da habitual ‘fuga cirúrgica’ de informação.
Não era para menos. Marcelo Rebelo de Sousa, cuja hipocondria é tão lendária como a falta de sono, resolveu contar, no estilo informal e solto que cultiva, ter de sujeitar-se em breve a um exame invasivo do foro cardiológico, atendendo a antecedentes familiares e atento aos sinais detetados noutro exame de rotina.
E dramatizou, ao admitir que dependia desse diagnóstico o candidatar-se ou não a um segundo mandato presidencial.
Claro que o país político reagiu, meio atordoado, e quem ficou a perder na atenção mediática foi o primeiro-ministro indigitado, que viu passar para segundo plano a sua recusa em ‘assinar o papel’ com os parceiros de esquerda, bem como a intenção de esvaziar o próximo Executivo de relações familiares, exorcizando ‘pecados’ antigos.
É sabido que Marcelo nunca dá ponto sem nó. E, antes mesmo de a entrevista ser emitida – cheirando a pré-lançamento da candidatura a outro mandato em Belém –, assegurou que, afinal, a sua saúde está ótima e que continua a fazer quilómetros a pé, sem aparente esforço.
Ou seja: perante o sobressalto público com a saúde do Presidente – que não é um assunto privado –, Marcelo apressou-se a desdramatizar e a corrigir eventuais equívocos.
Confuso? Não. De uma penada, ficou claro que mais vale o comentariado entreter-se com a ‘extrema-direita’ recém-chegada ao Parlamento – ou com o ‘tempo de antena’ suplementar no hemiciclo, reclamado pelos radicais do Livre, para compensar a gaguez extrema da sua deputada – do que desatarem a inventar possíveis candidatos para as presidenciais.
Percebeu-se, aliás, no gesto do Presidente, que este não tenciona ‘entregar a pasta’ tão cedo, até por não ter ficado refém de uma maioria absoluta nas legislativas, que lhe limitaria drasticamente os movimentos. Um alívio para a saúde do sistema.
Por causa deste episódio, que ‘abafou’ os rumores da formação do «Governo de continuidade», o país político marginalizou a saída de dois ministros, ‘sacrificados’ por terem familiares sentados no Conselho, e nem valorizou o apego ao poder de outros 14, que continuam nos seus postos.
Completada a ronda dos partidos, António Costa anunciou o elenco ‘remodelado’, já com a bênção presidencial – monocolor, sem ‘golpe de asa’, no qual sobram os fiéis e escasseiam as novidades.
Não se dirá o mesmo do Parlamento que, quando reabrir, terá uma composição bastante diferente, oferecendo fartas oportunidades aos media para exercitarem o seu gosto pelo ‘quem é quem’, desde a bancada social-democrata – expurgada de ‘passistas’ e de outros ‘empecilhos’ de Rui Rio –, até aos ‘debutantes’ dos pequenos partidos, que trazem muito que contar.
Pelo ‘andar da carruagem’, parece óbvio que o líder do Chega vai ser o ‘bombo da festa’, coisa que, aparentemente, não o perturba e lhe dará tanto gozo como as charlas de futebol na TV, onde ganhou notoriedade.
Há um fenómeno, aliás, recorrente, quase meio século após o 25 de Abril. Enquanto na maioria dos media, públicos ou privados, se multiplicam os comentadores de esquerda – contrastando com os poucos de direita, que precisam de estar devidamente ‘certificados’ pelas esquerdas –, pretende-se replicar o mesmo quadro na ‘Casa da Democracia’, ‘excomungando’ quem se posicione no espetro politico fora do ‘centrismo’ representado pelo CDS.
Em contrapartida, podem sentar-se em S. Bento comunistas que nunca renegaram o estalinismo, ou neocomunistas radicais de inspiração trotskista, que serão sempre bem-vindos e acolhidos como democratas de ‘boa cepa’.
A facilidade com que se recuperou o jargão de ‘fascista’, atirado a quem não faça parte das ‘seitas’, lembra o PREC, quando até o CDS e o PSD eram mal tolerados pelos revolucionários – que em novembro de 75 montaram o cerco ao Parlamento, ameaçando e insultando os não crentes nas virtudes do ‘rumo ao socialismo’.
O ambiente voltou a ficar turvo. Inventa-se racismo e xenofobia onde não existem. Criam-se géneros e subgéneros, ‘à vontade do freguês’ e dos ativismos. E até a imprensa tabloide já evita identificar etnias envolvidas em desacatos.
Depois de profetizar a crise da direita portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa antecipou que a próxima legislatura «vai depender muito da situação geopolítica e económica mundial e europeia», vaticinando um quadro internacional instável.
Se as coisas correrem mal ao Governo ‘recauchutado’, António Costa já tem o álibi….