Vinte para as dez são vinte minutos para o início da sessão inaugural da nova legislatura. A uma rua de olhar de frente a escadaria que pela primeira vez há de subir como deputada, Joacine Katar Moreira detém-se. O tempo corre, mas é um amigo quem lhe acena um pouco atrás. Quer mesmo dar-lhe um último abraço: «Break a leg». Vai a caminho do trabalho, não pode juntar-se aos outros: ao grupo de amigos e de membros do Livre que, segurando cravos, se junta sobre as bancadas da esquerda, nas galerias, para assistir ao momento em que, entre socialistas e comunistas, Joacine Katar Moreira ocupa pela primeira vez o seu lugar no hemiciclo. Entre eles, Rui Tavares, líder e fundador do partido, a jornalista e escritora Alexandra Lucas Coelho, o ator e encenador André e. Teodósio.
O desejo foi de sorte, mas o caminho até aqui, Joacine fê-lo com votos: os dos apoiantes do Livre que votaram no seu nome para cabeça de lista por Lisboa para estas legislativas, depois os dos eleitores que pela primeira vez deram ao partido fundado há cinco anos um assento no parlamento. Todos eles contaram para a História que se fez neste dia, um dia 25. O dia em que, na sessão da tarde, o reconduzido presidente da Assembleia da República Ferro Rodrigues, terminaria emocionado um discurso sobre a necessidade de preservar uma democracia que completará durante esta legislatura tantos anos quantos os que durou a ditadura.
«Hoje é um dia histórico. Hoje entram na Assembleia da República três mulheres de origem africana que, para além de serem de origem africana, são mulheres negras». E aqui é já uma dessas três mulheres negras quem fala. Joacine Katar Moreira, que em início desse dia histórico manteve a rotina de todos os outros. Acordar, vestir e alimentar a filha de três anos que só aos dois conseguiu matricular numa creche. Uma IPSS, detalha a deputada que, durante a campanha foi alertando para a necessidade de alargar o sistema público a uma rede de creches de acesso universal e gratuito a partir dos quatro meses de idade. «Para salvaguardar a quantidade de mulheres em situação de monoparentalidade», como é o seu caso, «com recursos económicos mínimos, mas também a maioria cujos ordenados não permitem gastar metade ou um quarto numa creche».
Encontrámo-la pouco depois disso, à entrada da estação dos Anjos. O caminho mais curto até São Bento faz-se de metro, até à Baixa-Chiado, e a partir daí a pé, descendo a Calçada do Combro. Entre os olhares curiosos que irremediavelmente atrai a pequena caravana mediática formada pelos jornalistas que autorizou a acompanharem-na desde bem cedo ao longo do dia em que tomaria posse como deputada, virá, já perto do destino, o tal abraço.
E a esse juntar-se-ia pelo menos um outro, entre a nova deputada do Livre e Isabel Moreira, do Partido Socialista, que, enquanto as bancadas se ordenavam, assim a recebeu no hemiciclo, depois de uns minutos de conversa – «uma conversa de duas mulheres que se olham com um respeito enorme». E se a primeira sessão foi curta, durou apenas seis minutos, a ela colar-se-ia a visita às instalações e o pequeno almoço com que o secretário-geral da Assembleia da República fez questão de receber, individualmente, a deputada do Livre e o seu assessor parlamentar. Como Joacine, também ele vindo da academia.
O até aqui leitor de Língua, Literatura e Cultura Portuguesas na Universidade de Oxford, Rafael Esteves Martins, e Joacine conheceram-se só durante esta campanha. Para aqui estar, ele que é membro do Livre desde a sua fundação deixou Oxford e a sua tese de doutoramento sobre literatura brasileira colonial. No dia em que se estreou na assembleia, o assessor parlamentar do Livre tornou-se tema – e não pelo seu currículo. Pela sua indumentária. Num edifício em que, do centro-esquerda à direita, a regra continua a ser o fato mais a devida gravata, tão depressa deu nas vistas pelos Passos Perdidos quanto inflamou as redes sociais, ao ponto de ter dado notícias. Joacine contou a história: «O Rafael perguntou-me se me importava que de vez em quando vestisse uma saia e eu disse: ‘Não. E vais vestir a saia na tomada de posse’».
Feitas as contas, também nisso o Livre escreveu um outro pequeno pedaço de História neste primeiro dia em que, já no seu novo gabinete – provisório, como para os outros dois novos partidos, até que possam ser acomodados em gabinetes mais próximos do hemiciclo – Joacine assinalou a felicidade de chegar a uma assembleia em que se sentam também Romualda Nunes Fernandes e Beatriz Gomes Dias, deputadas negras eleitas pelo PS e pelo Bloco de Esquerda. «É um dia e que a Assembleia da República inicia a ser mais parecida com a nossa sociedade. Hoje inaugura-se uma nova era, uma era contrária ao que está a acontecer na maioria dos países da Europa e nos Estados Unidos, com a ascensão galopante e consolidada de ideologias ultraconservadoras, nacionalistas e racistas. Hoje, Portugal está a reafirmar os valores do 25 de Abril».