William Web Ellis era um sujeito extrovertido e dado a pilhérias. Nasceu emSaltford, no Lencashire no dia 24 de novembro de 1806, filho de um corneteiro do regimento de cavalaria 7th Dragoon Guards que seria transferido, três anos depois, para o 3th Dragoon Guards. Dir-se-ia uma despromoção. Passar do 7.º para o 3.º, isto é. Não foi. Foi uma promoção. O corneteiro passou a tenente e veio parar com os costados a Portugal, combatendo na Guerra Peninsular, conflito durante o qual bateu as botas no dia 1 de julho de 1812, numa batalha na região de Albuera, emEspanha, perto de Badajoz. Ann, a mãe de William, foi recompensada pela morte do marido. Recebeu 30 Libras da Coroa e com elas decidiu mudar-se de Saltford para Rugby, no Warwickshire, permitindo assim que Web e o seu irmão Thomas fossem estudar para a Rugby School, um dos colégios independentes mais antigos de toda a Grã-Bretanha.
Nesta altura Rugby não tinha nada que ver com râguebi. Seria preciso esperar mais um pouco. Até 1823. W.W. Ellis viria a tornar-se o Reverendo William Ellis em 1831, com alguma surpresa, embora toda a gente saiba de ginjeira que os reverendos anglicanos não estão obrigados àquela estucha da abstinência e nem sequer ao celibato. Apesar disso nunca casou. Sobre a abstinência não há observações históricas credíveis.
Do seu tempo na Rugby School, os testemunhos são variados. Gostava de exercício físico, sobretudo de cricket, e era suficientemente descarado para se destacar por entre o seu grupelho de camaradas mais próximos. Um deles era Matthew Holbeche Bloxam, um dos dez rebentos do clérigo Richard Rouse Bloxam, professor no colégio, ao fim ao cabo o fulano que tornaria William num homem famoso por todo o mundo. Ser filho de um docente não dava a Matthew grande popularidade. Era, sobretudo, um observador. Participava pouco nas atividades lúdicas dos fedelhos da sua idade. Ninguém estranhou que viesse a tornar-se num antiquário meticuloso e num arqueólogo amador.
Em 1823, o futebol ainda tinha regras muito escassas. As linhas laterais e de fundo já tinham sido estabelecidas mas ainda era permitido utilizar as mãos e os braços, embora num movimento só e para passar a bola a um companheiro. Ah! E sempre para trás.
No final do outono desse ano, William Webb Ellis e os amigos do colégio disputavam uma acesa pelada.Como de costume, o sisudo Bloxam assistia. Atento. A certa altura viu William receber a bola nas mãos e esperou vê-lo tocá-la para um camarada e correr para voltar a recebê-la, como era normal na altura. Mas não foi isso que aconteceu. Ellis segurou a bola de forma decidida e correu agarrado a ela para o meio campo contrário, dirigindo-se para a baliza adversa em busca do golo.
Um novo jogo
Matthew descreveu o lance desta forma e por escrito: «With a fine disregard for the rules of the game as played in his time, William Webb Ellis first took the ball in his arms and ran with it».
Nascera o râguebi. E porque nascera em Rugby, foi chamado de football rugby em contraponto ao outro futebol, o football association, que rapidamente reduziu o uso das mãos aos guarda-redes. À medida que Ellis e os seus colegas de colégio foram subindo na escala dos estudos, passando para as universidades de Oxford e Cambridge, por exemplo, o râguebi foi-se organizando e ganhando as suas próprias regras. Até que seriam publicadas em livro no ano de 1841.
Bloxam não perderia a oportunidade de se tornar, mais tarde, um especialista na história do aparecimento do râguebi. Afinal fora o único que vira com toda a atenção o desenrolar do acontecimento, não estando envolvido na disputa que quase se transformou numa tranquibérnia quando os outros jogadores desataram a discutir a legalidade do movimento de Ellis. Curiosamente, este já se tornara famoso por tentar manhosices do género em todos o desportos nos quais participava. Um dos seus antigos condiscípulos diria desassombradamente: «He was rather inclined to take unfair advantage at cricket». Intrinsecamente batoteiro, portanto.
Wiliam seguiu de Rugby para Oxford três anos após a sua aldrabice no futebol. Aproximou-se da Igreja, vá lá saber-se se por arrependimento dos pecadilhos desportivos, e ganhou destaque como padre de palavra fácil e de sermões poderosos como os que pregou sobre a Guerra da Crimeia. Depois foi viver para França, dedicou-se à caridade, juntou umas massas valentes e acabou enterrado no Cimetière du Vieux Château, em Menton, nos Alpes Marítimos, sendo a sua tumba cuidadosamente conservada pela Federação Francesa de Râguebi.
Matthew Holbeche Bloxam tentou ser advogado na sua Rugby natal, mas não tinha jeito para dirimir contenda alguma. Montou o seu negócio de antiguidades e o tribunal local ofereceu-lhe um posto de secretariado que ele aceitou agradecido do mais fundo da sua alma profundamente burocrática, mantendo-se em funções durante mais de quarenta anos.
À medida que as décadas se foram sumindo no tempo que em eras vem, surgiram versões variadas sobre o que realmente aconteceu naquela tarde sobre um relvado da Rugby School. A trafulhice de Ellis tanto era vista como um gesto de batota como era apresentada como um movimento aceitável para o jogo de futebol que se praticava na altura. Bloxam aproveitou a polémica para recolher os louros da sua visão sobre o assunto. Em dezembro de 1880, o jornal The Meteor, apresentou aos seus leitores um texto da autoria de Matthew com considerações muito assertivas sobre o episódio.
Sublinhadas por esta frase inabalável: «Ellis according to the then rules, ought to have retired back as far as he pleased, without parting with the ball, for the combatants on the opposite side could only advance to the spot where he had caught the ball, and were unable to rush forward till he had either punted it or had placed it for some one else to kick, for it was by means of these placed kicks that most of the goals were in those days kicked». Ligeiramente confuso? De acordo. A regra era de uma complexidade total e, cá para nós, ainda bem que tanto o râguebi como o futebol seguiram o caminho da simplificação das suas leis. Não sobram dúvidas que Ellis merece ser recordado, logo agora que a final do Mundial está aí. Foi um trampolineiro com chiste. Lá isso foi.