«Este é o melhor dos cinco orçamentos que já apresentei no Parlamento». António Costa chegou ao Parlamento cheio de confiança, sabendo que o Orçamento do Estado para 2020 seria aprovado na generalidade – bastava-lhe as abstenções da esquerda e do PAN para conseguir passar o documento. E apesar de esta nova Geringonça ter resultado, uma coisa é certa: a esquerda quer continuar as negociações e vai continuar a fazer finca-pé até à votação final.
No início do debate, o primeiro-ministro garante que este é um orçamento de «continuidade», que não dá margem a retrocessos. «É herdeiro e continuador dos quatro Orçamentos do Estado da anterior legislatura», afirmou António Costa. E assumiu um triplo compromisso: «com o aprofundamento do caminho seguido desde 2016; com os parceiros parlamentares que têm feito esse caminho e com quem agora se procederá, na fase da especialidade, ao trabalho que possa ainda melhorar a proposta do Governo; e com Portugal e com os portugueses».
Mas Costa sabia que, apesar de ter a aprovação do documento garantida graças às abstenções do PCP, BE, PAN, PEV e Livre, não podia falar com o rei na barriga – o objetivo era mostrar confiança, mas passando sempre a mão pelo pêlo dos antigos parceiros. Por isso, foi fazendo a vontade ao Bloco, cedendo em aspetos como o reforço no Serviço Nacional de Saúde, o fim das taxas moderadoras até 2021 e a descida das propinas, e elogiando o PCP pelo «papel importante» que teve na «derrota histórica da direita em Portugal».
Ilusões e desilusões
Mas o tom suave não foi suficiente para convencer os antigos parceiros, que querem continuar a negociar o orçamento e criticam a falta de ambição do Executivo. Catarina Martins lembrou que Costa só chegou ao Parlamento com uma proposta que vai chegar à especialidade «porque aceitou ceder garantias mínimas de avanços na especialidade para as quais o Bloco trabalhou e continuará a trabalhar» e Jerónimo de Sousa frisou que este documento não contém «nada comparável» com aquilo que foi alcançado com a Geringonça. «Imagine que cada orçamento é um passo: no primeiro orçamento avança um metro, no segundo, mais um metro, no terceiro, outro metro e no quarto também. Até que no quinto, finalmente, avança 10 centímetros. O quinto orçamento será o mais avançado de todos mas nem por isso andou mais, andou o suficiente ou andou na direção certa», reforçou, no dia da votação, a deputada do BE Mariana Mortágua.
Nem com o PAN Costa teve sossego: André Silva queria mais ambição por parte do Governo em matérias ambientais e ficou descontente com aquilo que apelidou de «orçamento avestruz». «O Governo prefere esconder a cabeça debaixo da areia para não ter de encarar o complexo desafio de enfrentar de forma consequente os problemas do país», criticou o deputado. Mas Costa sabia que, como admitiu o próprio André Silva, conseguia conquistar o PAN_com «apontamentos avulsos», como o aumento do IVA nas touradas ou a requalificação profissional dos trabalhadores das centrais Pêgo e de Sines. Mas isso não chega para convencer o partido, que contestou a falta de vontade em atacar as alterações climáticas e a falta de verbas para a mitigação deste problema e para a conservação da natureza.
A ‘Geringonça das abstenções’ só ficou completa com o Livre, que decidiu não revelar o sentido de voto até à hora da votação. Tudo por causa de questões internas do partido. «O partido obviamente que manifestou qual é que era a orientação dos diferentes órgãos. Eu é que irei, olhando para as diferentes orientações, e obviamente respeitando-as, valorizando-as, decidir», avisou Joacine Katar Moreira. E assim foi. Apesar de criticar a falta de abertura para negociar. a deputada única do Livre considerou que o Orçamento do Estado «ilude e desilude», optando assim por se abster.
Mesmo não agradando a todos, Costa conseguiu uma pequena vitória – a vitória das abstenções. A ronda de negociações vai continuar e o primeiro-ministro já sabe onde a esquerda vai forçar a barra: saúde, educação, rendimentos, pensões e ambiente. Resta saber onde é que o Governo estará disposto a ceder. Após a votação, Duarte Cordeiro, secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, usou o Facebook para confirmar que as negociações com a esquerda e o PAN vão continuar: «É um orçamento que mantém a centralidade política no Parlamento e que, pelo diálogo e negociação com os partidos de esquerda e ambientalistas, será melhorado e reforçará a sua representatividade até à votação final global».
Mas uma coisa é certa – há mais governação para além do Orçamento do Estado. É o próprio primeiro-ministro que lembra que «um orçamento não deve ser um fim em si próprio. Há mais vida para além do Orçamento do Estado».
Onde está o Wally?
Mas se à esquerda parecia tudo um mar de rosas, com troca de elogios e recordações de um passado feliz, à direita o tom assumiu um tom mais áspero – não por «birra», como disse Rui_Rio, mas sim por falta de estratégia e rumo para o país. Perante a inevitável aprovação do documento na generalidade, a oposição atacou o excedente orçamental, uma das bandeiras que o Governo tem empunhado – este, segundo PSD e CDS, só foi possível graças ao aumento da carga fiscal.
«Um bom orçamento é aquele que garante o equilibro nas múltiplas necessidades a que temos de responder, em todas as áreas da governação», defendeu António Costa.
Ora, este otimismo não foi visto com bons olhos por ninguém – o PCP criticou a «submissão do país às imposições da União Europeia, do euro e do grande capital» e o PAN a falta de «justiça fiscal». Mas as principais críticas vieram da direita. Segundo Rui Rio, a proposta orçamental aumenta a carga fiscal em 434 milhões de euros em relação ao valor apontado no ano passado. Ou seja, o superavit foi conseguido «exclusivamente à custa do aumento da carga fiscal e da poupança de juros», defendeu o líder do PSD.
A carga fiscal deu o mote para Rui_Rio regressar ao tema que tem gerado uma troca acesa de argumentos entre o líder social-democrata e o ministro das Finanças: a «evaporação dos 590 milhões de euros», ou melhor, a discrepância entre dois quadros do OE sobre o saldo em contabilidade pública. «O senhor ministro das Finanças respondeu-me que eu não sabia nada disto. Então eu não sei nada disto, mas é preciso perceber: onde estão os 590 milhões de euros? Não é ‘onde está o Wally’, mas sim onde estão os 590 milhões de euros?», questionou o presidente do PSD. A verdade é que nem Centeno nem Costa responderam – o primeiro-ministro chegou mesmo a criticar o líder social-democrata por se preocupar com «minudências».
O fantasma de Sócrates
Do lado do CDS, a crítica também incidiu na carga fiscal: «A baixa de impostos não é uma prioridade nem para o Governo, nem para esta nova Geringonça», afirmou a líder da bancada parlamentar, Cecília Meireles.
O deputado Telmo_Correia foi mais longe e lembrou um passado que Costa prefere manter à distância: «O melhor [OE] não será, mas é seguramente o maior e é o maior exercício de propaganda desde o último orçamento apresentado pelo senhor primeiro-ministro, e só comparável com os exercícios de propaganda do ex-primeiro-ministro José Sócrates mais os seus famosos planos de 50 medidas para resolver o que quer que fosse».
A Iniciativa Liberal e o Chega juntaram-se ao coro de críticas, mas estas pouco ruído causaram – o OE está aprovado na generalidade e Costa tem agora tempo para limar arestas e convencer a esquerda a manter-se unida.