Soube-se agora que será apreciado em abril, ainda sem data marcada, o processo que corre há quase três anos no Tribunal Administrativo de Lisboa, no qual José Sócrates exige ao Estado uma indemnização de 50 mil euros "por mau funcionamento da justiça". Uma pechincha em época de saldos…
Queixa-se o ex-primeiro ministro que a demora na conclusão da investigação lhe causou significativos prejuízos e o privou da "paz jurídica", por ter estado longamente exposto à "constante divulgação pública do seu nome e imagem", associados a crimes "especialmente desonrosos e gravíssimos".
O entendimento do antigo chefe de Governo socialista sobre a morosidade na Justiça diverge, aparentemente, da atual ministra Francisca Van Dunem, para quem "terminamos 2019 com o sistema de justiça a responder melhor no plano da celeridade, com mais dinamismo, mais agilidade".
Embora mereça alvíssaras quem descubra essa ‘celeridade’, a ministra Van Dunem lá terá as suas razões, até por conhecer bem os meandros do Ministério Público, de onde é oriunda, o qual tem sido o alvo privilegiado das queixas e rancores de Sócrates.Convenhamos que três anos é demais para quem se sente no direito de ser ressarcido pelo Estado em nome da ‘paz jurídica’ perdida.
Parece um filme em câmara lenta que dá razão, aliás, a António Costa, quando, pouco inocentemente, invocou a eficácia da Justiça americana, a propósito da derrocada do império Madoff, em contraponto ao andamento lento da ‘procissão’ do BES, que nem saiu do adro…
Ora, se o primeiro-ministro estranha tais atrasos, ele que conhece bem as teias forenses, está implicitamente a validar o desconforto do seu antecessor, embora este não o tenha arrolado como testemunha, ao contrário do que fez Azeredo Lopes….Contas feitas, se um ex-primeiro ministro queixoso desespera ("Se o Estado não arquiva nem acusa, acuso eu" – Sócrates dixit em 2017), Ricardo Salgado bem pode ‘esperar sentado’, apesar da ‘contrariedade’ de ter perdido em definitivo a querela com o Banco de Portugal, esgotados os recursos que subiram até ao Tribunal Constitucional, que confirmou a pesada coima.
Ora, como ensina Marcelo Rebelo de Sousa, quando a sentença sobre um caso mediático ocorre muito tempo depois, os portugueses limitam-se a "um encolher de ombros que banalizará o veredicto". Ou seja, "para haver justiça prestigiada tem de haver justiça prioritária".Para os atores principais do aparelho judicial tudo parece, contudo, abonar o bom funcionamento dos tribunais, sem margem para o menor reparo. O juiz presidente do Supremo Tribunal recusou, aliás, liminarmente, a hipótese de qualquer crise e, "com convicção" afirmou mesmo que "é altura de pôr termo à retórica da crise na justiça".
Com esta declaração, o juiz conselheiro António Joaquim Piçarra deve ter saído da cerimónia de ‘alma lavada’, como se tudo corresse sobre esferas. Sem desdouro, o magistrado faz lembrar a ministra da Saúde, Marta Temido, cuja ‘convicção’ lhe permite negar qualquer crise no SNS, garantindo o contrário daquilo que está à vista dos utentes.
Infelizmente, os discursos de fé corporativa não se conformam com a vivência nos tribunais.Apesar de Portugal não surgir desfavorecido na média europeia quando se elencam e comparam juízes, procuradores e advogados por cada 100 mil habitantes, o sistema marca passo e o grau de confiança dos cidadãos na Justiça continua negativo.
Ou seja, o "prestígio social da justiça", a que aludiu Marcelo Rebelo de Sousa, continua numa fasquia baixa, embora o ambiente nos tribunais não seja equiparável ao dos hospitais públicos ou centros de saúde, onde os sindicatos já defendem ações de formação de defesa pessoal para os médicos, enquanto o Governo lança um gabinete de segurança para tentar ‘pôr água na fervura’.
É verdade que houve uma ligeira melhoria na capacidade de resposta dos tribunais, diminuindo o número de processos pendentes. Mesmo assim, em 2017, ainda se acumulavam, segundo dados do Ministério da Justiça, cerca de um milhão de ações judiciais a aguardar decisão na primeira instância. A recuperação faz-se devagar.Compreende-se, por isso, que apenas 44% dos residentes em Portugal digam confiar na Justiça, de acordo com o Eurobarómetro, divulgado pela Pordata, relativo a novembro de 2018.
Desde 2015, os números deste indicador têm variado entre os 43% e os 49%, embora longe do pico negativo de 28%, observado em novembro de 2010, no segundo Governo de José Sócrates.
Não admira, por isso, que os níveis de confiança em Portugal fiquem muito aquém dos países do Norte da Europa, como a Dinamarca e a Finlândia, onde, respetivamente, 87% e 84% dos residentes dizem confiar na Justiça.
Mais: ainda segundo o Eurobarómetro, quase metade (46%) dos portugueses classifica a independência do sistema judicial em Portugal, dos tribunais e dos juízes, como ‘má’ ou ‘muito má’ devido à pressão política ou de interesses económicos.
Descontada a habitual lamúria da falta de meios, é um facto que a Justiça não fica bem no retrato, quando se eternizam investigações à pala de cartas rogatórias em falta; quando o algoritmo ‘entope’ no sorteio de um juiz em casos mediáticos, ou se contemporiza com expedientes dilatórios para adiar um julgamento.
Se hoje há magistrados com remunerações ‘aditivadas’, colocados num patamar salarial superior ao do primeiro-ministro e tangencial ao do Presidente da Republica (Portugal é mencionado como um dos países em que a remuneração dos juízes mais cresce ao longo da carreira), convirá que não se fechem no casulo corporativo e contribuam para credibilizar a Justiça. Com o desafio da corrupção a alastrar como pano de fundo, a Justiça tardia não adianta a ninguém. E enfraquece todos.
Nota em rodapé – O conselheiro de Estado e do BdP, Francisco Louçã – que acumula com a atividade de guru do BE -, saiu em defesa de António Costa e resolveu ‘emboscar’ o juiz Carlos Alexandre, ‘encostando-o’ à extrema-direita, de uma forma manhosa, sem o menor pudor. Fica-lhe mal.
Louçã é um caso sui-generis. Radical anticapitalista, goza dos favores generosos dos media propriedade de capitalistas, que devem achar que o salário que lhe pagam é uma espécie de ‘seguro de vida’ que os livra de sarilhos à esquerda. E ele aproveita, sem notar a contradição.