Da varanda renascentista do Palácio Valflores avistavam-se outrora colinas, pomares e, sobre a esquerda, o rio Tejo com as suas margens verdejantes. «Temos uma casa completamente extrovertida, aberta sobre a paisagem, sobre o território», explica José Aguiar, um dos arquitetos responsáveis (com Pedro Pacheco) pelo projeto de reabilitação do palácio. «Isto é um novo momento na relação da arquitetura com o território, uma relação muito mais livre, muito mais aberta». Mas a paisagem bucólica acima descrita é hoje desfigurada por moradias incaracterísticas levantadas sem respeito por qualquer planeamento urbano e, sobretudo, pela passagem do IC2, uma via rápida que liga Sacavém a Santa Iria da Azoia. O som que se ouve já não é o de passarinhos, do vento e de regatos a correr, mas do intenso tráfego automóvel.
Em sentido inverso, quem passa na estrada também já não vê a imponente fachada, concebida para impressionar, nem a varanda quinhentista com a sua delicada colunata italiana, mas apenas os tapumes que protegem esta joia da arquitetura.
Estamos em Santa Iria de Azoia, na propriedade de 44 mil metros quadrados onde em 1550 Jorge de Barros, antigo feitor de D. João III na Flandres e dono de uma das maiores fortunas do reino, mandou construir uma casa de recreio. «É uma quinta típica de famílias nobres. Todas tinham o seu palácio em Lisboa e uma quinta de villegiatura que mistura prazer com comida». Além da requintada residência, erguida segundo os princípios enunciados por Sebastiano Serlio (1475-1554) no seu famoso tratado de arquitetura, a propriedade contém um complexo de sistemas hidráulicos – dois aquedutos, dois poços, minas, tanques de grandes dimensões. «Se há tanta necessidade de água é porque havia uma produção [agrícola] bastante intensa», complementa o arquiteto.
Embora se trate de «uma das últimas quintas da região de Lisboa ainda muito autêntica e muito íntegra», e de um exemplo raro de arquitetura doméstica do Renascimento em Portugal, o Palácio Valflores esteve até há bem pouco tempo em risco de ruína iminente e definitiva. A colunata da loggia (ou varanda) chegou mesmo a colapsar, assim como parte das abóbadas que sustentam os pisos superiores.
«O que vemos aqui a vocês não vos aquece muito, parece uma ruína, mas para nós que estivemos com isto tudo a cair tem muito significado. Foi feito muito», garante o arquiteto. João Nunes Ferreira, engenheiro civil também envolvido no projeto, vai mais longe: «Quem chegar pode dizer: ‘Parece que não fizeram quase nada. Está tudo na mesma’. A ideia é mesmo essa: que pareça que não se fez quase nada». Ao que José Aguiar acrescenta: «Este parecer que não se fez nada dá muito trabalho».
Animais no meio das salas
O Palácio Valflores foi adquirido pela Câmara de Loures em 2006, após intensa e prolongada pressão de associações de defesa do património e de cidadãos. Pertencia, na altura, a uma empresa da família Reynolds, uma abastada família inglesa que se fixou em Portugal no século XIX e adquiriu um total de cerca de uma centena de propriedades no país. Estes, por sua vez, «tinham arrendado a quinta a uma família que veio para aqui em finais do século XIX», diz-nos Ana Raquel Silva, arqueóloga da CM Loures. Nos últimos anos, a construção era ocupada por «um rendeiro que tinha animais mas ia fazendo pequenos consertos», explica João Ferreira. «A partir do momento em que ele saiu o processo de degradação acelerou-se. Apesar de ter os animais no meio das salas, ia mantendo alguma coisa», refere o engenheiro. Outra peculiaridade da utilização dada ao espaço pelo rendeiro era a localização das instalações sanitárias: tinha feito a casa de banho na capela, com uma retrete ao canto ligada a canalização que conduzia os dejetos para o exterior. «O rendeiro provocou muito dano, mas ao mesmo tempo acabou por manter o edifício em pé», concorda Ana Raquel Silva.
O facto é que, depois da saída do último ocupante, o palácio ficou à mercê dos intrusos e verificaram-se atos de puro vandalismo. «Entravam aqui e divertiam-se a empurrar os merlões cá para baixo», continua João Ferreira.
«O colapso começou quando se começou a perder a varanda e o telhado. A partir daí chegamos a um ponto de ruína praticamente terminal», comenta José Aguiar. «Quando começámos esta operação, até nós tínhamos dúvidas de que fosse possível salvar. E foi possível salvar. Conseguimos acudir se calhar no último momento, ou pelo menos no último momento em que é possível manter grande parte da autenticidade». Se a intervenção tivesse chegado um pouco mais tarde, continua, «estaríamos confrontados com 30% de originais e 70% de repristinação; assim temos 90% de originais e 10% de repristinação». E congratula-se: «Salvámo-lo também dos apetites mobiliários. A Câmara de Loures, ao que sabemos, não quer fazer aqui um hotel de cinco estrelas. É um programa eminentemente público, vai ser devolvido aos cidadãos e vai ter provavelmente utilizações institucionais».
O projeto encontra-se dividido em três fases e só a primeira – de consolidação da pré-existência – está terminada. «As paredes foram todas consolidadas com injeções, os espaços interiores que estavam vazios foram preenchidos com calda, e sempre que havia grandes fraturas e cunhais foram feitas pregagens que estabilizam as paredes», explica João Ferreira. «Pomos lá dentro um varão de aço que lhe dá estabilidade. É quase como se tivéssemos um osso partido, temos de fazer uma operação e pôr uma prótese metálica».
A segunda fase passa pelas coberturas e exteriores. Quando estiver cumprida, poderá retirar-se o inestético tapume que protege a obra. «É um chapéu feio, mas essencial para proteger o conjunto dos elementos», comenta a arqueóloga. A terceira fase diz respeito ao arranjo dos interiores e acabamentos. O destino definitivo a dar à histórica construção uma vez terminado o processo de reabilitação ainda não foi porém decidido.
‘Paisagismo puro’
«É um misto de Renascimento ainda com permanências medievais, como sempre acontece na arquitetura», caracteriza José Aguiar, em frente à construção. As permanências medievais que refere são as duas torres uma em cada extremidade. «A constituição de um morgado pressupõe haver uma casa com torre e com este aspeto fortificado. O morgado é alguém que tem um poder enorme delegado pelo rei. Eram juízes, eram militares, legislavam sobre o território, tinham um poder imenso», explica. «A constituição do morgado leva a que estes símbolos medievais permaneçam. Mas tudo o resto é de uma enorme modernidade».
Transponhamos agora a porta de entrada no palácio – por enquanto nada mais do que um gradeamento de ferro provisório.
«Quando estávamos a fazer o processo de projeto encontrámos no tratado de Serlio, que é um dos grandes tratados de arquitetura do século XVI, a planta desta casa – tal e qual», continua José Aguiar. «Serlio diz que é ‘a planta de um villino ideal’. Não é uma villa – a villa é maior, esta é uma casa mais pequena». Aguiar aproveita para questionar a designação de ‘palácio’ atribuída a esta construção – considera-a «exagerada»: «Estamos sempre a falar do Palácio Valflores, mas isso é um bocadinho estratégia para promover a obra. Estamos sempre a procurar outras palavras quando dizer ‘casa nobre’ ou ‘quinta de vilegiatura’ devia ser suficiente. O professor João Vieira Caldas diz que na verdade estamos perante uma casa, uma casa nobre, uma casa de família. Isso não nos devia envergonhar. Em Inglaterra todos os lordes têm as suas casas de família que aliás são muito valorizadas. Em Portugal temos um problema quanto a isto – valorizamos muito os castelos, os conventos, os palácios, esquecemo-nos um bocadinho desta dimensão doméstica – e por isso é que isto tem um valor peculiar».
A entrada na casa faz-se por uma sala ampla. «Então temos o villino ideal, e aqui estamos na grande sala de receção», anuncia o nosso ‘cicerone’. «Temos um duplo pé-direito, um teto mudéjar lindíssimo de madeira de castanho e ali a única porta que conduz à varanda».
Atravessamos a sala – cujo teto de castanho (de que ainda há vestígios materiais e fotografias) será reposto – e somos conduzidos à varanda, que já foi comparada à do castelo de Leiria. «É uma varanda contínua, virada completamente sobre a paisagem, sobre Santa Iria, onde os Barros tinham a capela de família», descreve o arquiteto. «É um momento novo – é cénico, é paisagismo puro, é o momento da grande modernidade desta obra. Temos uma varanda com colunatas, uma paisagem incrível sobre o Tejo, extremamente transparente, e sobre uma fachada altíssima – se olhar aqui para baixo é impressionante». Trata-se de «uma fachada de aparato, como é muito típico na altura: destina-se a mostrar o poder da família».
‘O uso dos espaços era muito mais ágil’
Regressando ao interior, depois da sala de receção, sucedem-se outras dependências. «O espaço pouco a pouco vai matizando níveis de privacidade. Lá fora, é tudo ao molho e fé em Deus; depois ao pátio só chegam alguns; aqui só vêm aqueles que são convidados; e depois à esquerda e à direita teríamos a antecâmara e a câmara. Na antecâmara só entram alguns, e a câmara é um espaço superprivado».
José Aguiar continua: «A maneira como se habitava não era a mesma. Por exemplo, aquela expressão de ‘pôr a mesa’ é mesmo verdade. Quando era para comer ia-se buscar uma tábua e montava-se a mesa. Não havia mesa nenhuma em lado nenhum, os ambientes renascentistas e mais antigos eram muito mais versáteis do que são hoje. Havia muito pouco mobiliário, o uso dos espaços era muito mais ágil do que estamos habituados. Sabemos que se usava muita tapeçaria, muitas almofadas, e que a mesa se montava e desmontava para as refeições. Sabemos também que uma das coisas mais importantes era a arca, que era transportada com a roupa da família e outras coisas e ficava sempre nas câmaras, nos sítios mais protegidos. A maneira de habitar não tinha nada a ver com aquilo que depois aconteceu no século XVIII e no século XIX. E sobretudo no século XIX começa a haver uma grande especialização dos espaços. Uma coisa é dormir, outra coisa é comer…».
Além do que nos diz sobre a mesa, o arquiteto também avança uma tese sobre a cama. «As famílias nobres dividiam os filhos. A partir dos 11, 12 anos – aos 13 de certeza – eram separados entre rapazes e raparigas. As raparigas dormiam com as empregadas, por cima da câmara, e os rapazes com os servos ou muitas vezes numas estruturas de madeira por cima das zonas dos animais. No inverno era quentinho».
‘A arrogância matou’
Passamos agora para a cozinha, que ainda guarda alguns segredos quer para o arquiteto quer para a arqueóloga. «Sempre pareceu um anexo. Inicialmente pensávamos que era a parte mais recente, atualmente consideramos que se calhar é o berço da quinta de Valflores», revela Ana Raquel Silva.
João Ferreira mostra o que foi reconstruído. «A técnica que eles usaram para esta parede é a mesma que nós usamos. Assim estamos a garantir a autenticidade da construção».
O mesmo sucede no piso inferior, onde as abóbadas foram reconstruídas usando a técnica original. «O facto de a fachada ser muito alta teve consequências», continua o engenheiro civil. «Devido à ação de terramotos, etc., a parede de fachada teve algum deslocamento que comprometeu a estabilidade das abóbadas aqui em baixo». As coberturas, em tijolo, perderam a curvatura que lhes assegurava a estabilidade e desabaram. «Foi feita uma desconstrução e depois uma reconstrução, garantindo a curvatura que faltava já e a estabilidade». A estrutura foi ainda reforçada com tirantes de aço.
«No século XX a gente exagerou», considera José Aguiar. «Achávamos que o betão resolvia tudo e depois deu bronca, matou-se pessoas. Só nos arranjou problemas. Em Itália, os projetos foram reforçados com lajes de betão armado e quando houve terramotos as lajes esmagaram as pessoas por baixo. Essa arrogância matou», conclui. «Hoje o conceito é muito simples: ‘Se puderes fazer menos, não faças de mais’».
Misturar o prazer e a comida
Como viajava a família de Lisboa para Santa Iria? O arquiteto aponta em direção ao Tejo. «Ali podia ser o ancoradouro. Era muito mais confortável vir com a maré com uma barca, que numa hora os mete aqui, e depois apanhar uns burricos ou umas charretes. A maré do Tejo é muito rápida, a corrente é forte. Não fazia sentido levar em mulas ou carroças as coisas daqui para Lisboa, quando um barco leva toneladas de carga a um preço extremamente barato».
Encontramo-nos agora junto a um dos dois aquedutos que serviam a propriedade. «Havia um caminho, havia uma latada, provavelmente de vinha, sons de água, sombra» – ou seja, tudo aquilo que os Barros procuravam numa quinta de recreio. O aqueduto levava também água para a casa, ou pelo menos para junto dela. E irrigava ainda um jardim. «Sabemos que os jardins das moças, os jardins de cheiros, de flores, eram ali», indica José Aguiar. «Esta água seria também para esse jardim mais hedonista, sendo que em Portugal nós misturamos sempre o prazer com a comida. A professora Aurora Carapinha explica isso muito bem: há os passarinhos, as florzinhas e um pombinho para fazer um arroz», comenta o arquiteto com um sorriso.
A vocação agrícola está hoje ausente da propriedade. Mas curiosamente permanece viva na memória dos habitantes de Santa Iria de Azoia. «O palácio é conhecido aqui em Santa Iria como o palácio das abóboras», revela Ana Raquel Silva. «Quando a varanda ainda estava inteira, o sr. Fortunato [o rendeiro] punha lá as abóboras a secar. Há uma fotografia muito gira que tem roupa estendida e abóboras no parapeito da varanda». E continua: «As pessoas que moram há mais tempo têm uma relação afetiva com esta quinta e têm muita expectativa de perceber o que se está aqui a passar». Por enquanto, com o edifício tapado, ainda será difícil para os moradores perceber o que se passa no estaleiro. Mas há uma garantia que pode ser dada: o pior já passou. E, com a participação de arquitetos, engenheiros e arqueólogos, de gata borralheira o ‘palácio das abóboras’ voltará a ser a tão desejada Cinderela do concelho de Loures.