Foi quase no final do debate sobre o Orçamento do Estado que Mário Centeno batizou a tentativa do PSD de fazer uma aliança com a esquerda para aprovar a descida do IVA da luz como ‘uma gerincoisa’. Uns minutos depois, a votação do documento mostrava que a geringonça, tal como existia na primeira legislatura, acabou. O Orçamento do Estado foi a aprovado, em votação final global, apenas com os votos a favor dos socialistas. A esquerda e o PAN, que votaram a favor dos últimos orçamentos, optaram pela abstenção e PSD, CDS, Iniciativa Liberal e Chega votaram contra.
«Está aprovado o primeiro Orçamento do Estado da legislatura. É um orçamento de continuidade que sai do Parlamento reforçado por um conjunto de importantes propostas acordadas com os partidos da Esquerda e ambientalistas, com os quais o Governo procurou entendimentos», escreveu, nas redes sociais, o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Duarte Cordeiro.
O debate ficou marcado pela descida do IVA da eletricidade. A esquerda ameaçou juntar-se ao PSD para descer o IVA de 23% para 6% e os socialistas quase entraram em pânico devido ao impacto que esta medida teria no orçamento. O secretário de Estado dos Assuntos parlamentares avisou mesmo que poderia estar em causa a governabilidade do país. Ana Catarina Mendes, líder parlamentar do PS, já tinha alertado que a descida do IVA da luz poderia «colocar em causa a aprovação deste Orçamento do Estado».
O nervosismo dentro do PS cresceu quando os sociais-democratas ajustaram a sua proposta às pretensões da esquerda e Mariana Mortágua admitiu que essas alterações «vão ao encontro da posição do Bloco de Esquerda». Vários dirigentes socialistas dramatizaram até ao limite e o Governo só respirou de alívio quando o PCP descartou a hipótese de votar a favor das contrapartidas apresentadas pelo PSD. Uma hora depois foi a vez do CDS anunciar que não se iria juntar aos sociais-democratas.
O desfecho foi aquele que o Governo pretendia. As propostas da esquerda para descer o IVA da luz foram chumbadas e o PSD retirou a sua depois de terem sido inviabilizadas as contrapartidas. «Fico triste. Pensava que havia uma maioria que queria descer o IVA da eletricidade, mas pelos vistos não há», diz ao SOL o deputado do PSD, Duarte Pacheco.
Esquerda menos unida
A ‘gerincoisa’ não funcionou, mas a ‘Geringonça’ também não está afinada. Catarina Martins considerou, no encerramento do debate, que «o debate sobre o IVA neste Orçamento é exemplar das dificuldades desta legislatura». E apontou o dedo a António Costa: «Ao recusar um acordo para a legislatura, o Partido Socialista não abdicou apenas dos mecanismos de entendimento para processos tão complicados e fundamentais como um Orçamento do Estado. Abdicou de um horizonte mobilizador à esquerda e que respondesse às expectativas concretas da população». OPCP também assumiu que a abstenção «dá expressão a um posicionamento político que se distancia deste orçamento e das opções do Governo PS nele refletidas». PCP e Bloco de Esquerda votaram a favor de todos os orçamentos na anterior legislatura e esta é a primeira vez em que optam pela abstenção depois do acordo inédito em 2015.
A dúvida é se a esta nova ‘geringonça’ conseguirá voltar a durar quatro anos ou se a ausência de acordos escritos poderá condenar o Governo a enfrentar uma crise política e eleições antecipadas. Daniel Oliveira, ex-militante do BE e um dos adeptos da união à esquerda desde o início, não escondeu o desânimo e responsabiliza António Costa. «António Costa não quis um acordo escrito. Não quis ter uma maioria absoluta. Conseguiu o que queria, mas isto vai acabar mal. António Costa criou as condições para o pântano», disse o comentador num dos programas televisivos em que participa (Eixo do Mal, da SIC).
O PCP foi o primeiro partido a rejeitar um acordo escrito e limitou a margem do PS para renovar os compromissos com a esquerda. O BE mostrou abertura para um entendimento, mas António Costa preferiu não assinar um acordo com os bloquistas.
Rui Rio no ‘país cor-de-rosa’
Rui Rio também não ignorou a tensão entre os partidos de esquerda. «Não há casamento de papel passado, mas também não houve a coragem de consumar o divórcio entre as partes», disse o presidente do PSD. No encerramento do debate, Rui Rio defendeu que «o Orçamento do Estado para 2020 procura enquadrar-se na realidade virtual de um País cor-de-rosa que o nosso dia-a-dia não consegue vislumbrar».
O CDS, pela voz de Cecília Meireles, defendeu que o orçamento mostra que «este Governo preocupa-se muito em distribuir o bolo, mas nada em fazer crescer o bolo». Para os centristas, o documento prova que o Governo não tem uma estratégia para o país.