Portugal prepara-se para o embate de uma subida dos casos de coronavírus nos próximos dias. O diagnóstico de Covid-19 em dois doentes internados com pneumonia no Hospital de Santa Maria, um deles há mais de uma semana, fez aumentar o receio de que possa haver outras cadeias de transmissão do vírus no país por detetar, como aconteceu na Lombardia – nunca chegou a perceber-se qual foi o ‘paciente zero’ em Codogno, mas o primeiro doente viria a contagiar outros doentes e profissionais no hospital onde foi atendido, inicialmente com suspeitas de que tivesse uma gripe comum.
Ainda antes de serem conhecidos estes dois casos, a ministra da Saúde admitiu durante a manhã no Parlamento que a passagem da fase de resposta de contenção alargada à fase de mitigação, em que se reconhece que existe transmissão em locais fechados ou uma transmissão comunitária – estaria por dias ou horas. Uma evolução rápida, uma semana e meia depois do país registar os primeiros casos importados. Até aqui, todos os doentes estavam a ligados a contactos com pessoas que tinham estado no estrangeiro ou com contactos destas pessoas.
Com o escalar da preocupação, os hospitais estão a acelerar preparativos para receber doentes e tentar garantir espaço e pessoal para acudir à crise. O i sabe que já há hospitais a cancelar consultas, por exemplo o Centro Hospitalar Lisboa Ocidental, e a reforçar consultas não presenciais e a Ordem dos Médicos defendeu ontem que devem ser canceladas também cirurgias que não sejam essenciais, para proteção dos doentes e evitar ao máximo que uma situação em que o vírus entra nos hospitais. Algumas unidades têm imposto restrições a visitas e pedido que quem esteve em zonas com mais casos não visite os hospitais, mas não existe uma regra universal. O reforço de material de proteção e kits de testes é também uma preocupação crescente de médicos e enfermeiros, que vão somando relatos de falhas. De máscaras a desinfetante, que desaparecem rapidamente. Há também a preocupação de que a população saiba o que fazer e não acorra de imediato às urgências. “Há chamadas ininterruptas para o hospital e os profissionais do serviço de urgência estão a ficar desesperados. Há pessoas que chegam à urgência pelo próprio pé. Pedimos a quem tem sintomas leves que avise a escola ou a entidade patronal e que fique em casa. Deixem o hospital para os doentes graves”, apelou ontem a infecciologista do São João Margarida Tavares, em declarações ao Público. Tanto no São João, o hospital com mais doentes internados (ontem eram 28) como no Santa Maria o ambiente na urgência estava ainda calmo.
“Perderam-se horas preciosas com burocracia” Porque não se testaram mais cedo os doentes de Santa Maria? Até esta semana, a norma da orientação da Direção Geral da Saúde determinava como definição de caso suspeito para Covid-19 apenas pessoas que apresentassem sintomas de infeção respiratória e historial de viagem ou residência em locais com transmissão ativa ou que tivessem contacto com casos confirmados ou prováveis. A diretora-geral da Saúde anunciou que o critério seria alargado na segunda-feira a casos de infeção respiratória grave de origem desconhecida, um apelo que já estava a ser feito pelos médicos. A orientação do Conselho Europeu de Controlo e Prevenção de Doenças para testar doentes com infeção respiratória grave sem origem conhecida é de 2 de março, pelo que Portugal demorou uma semana a implementá-la. A questão já se tinha colocado em Espanha. Quando o país anunciou a primeira morte por Covid-19, a 3 de março, percebeu-se que se tratava de um homem que tinha falecido a 13 de fevereiro e que na altura não tinha tido critérios para ser testado para o vírus. Foi ‘apanhado’ em testes post-mortem quando país estendeu o despiste a outros doentes com infeção respiratória.
“Perderam-se horas preciosas em burocracia”, lamentou ao i Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos, que defende que, agora, é essencial agilizar a realização de testes no país e dar autonomia aos médicos especialistas para os pedirem.
“Neste momento um diretor de um serviço de infecciologia de um hospital se estiver perante um caso que considera suspeito não pode pedir um teste, tem de ser validado pela Linha de Apoio ao Médico”, diz Roque da Cunha, denunciando que continuam as demoras no atendimento, com esperas de horas. Perante o expectável aumento dos casos, o SIM defende que é necessário serem feitos mais testes, descentralizar a sua realização e que os médicos deixem de estar dependentes da autorização da linha de apoio. “Cada hora que se perde em relação a um infetado são dezenas de potenciais infetados a mais”, diz Roque da Cunha.
A questão já tinha sido levantada esta semana pela diretora do serviço de infecciologia do Hospital Fernando Fonseca, na Amadora. Num artigo no Observador, a médica questiona porque é que a lista de países indicados para a realização dos testes continua a referir o Japão, quando tem menos casos que a França. “Porque motivo uma pessoa que tem febre e sintomas respiratórios e que fez uma viagem ao Japão nos últimos 14 dias é considerado um caso suspeito validado pela DGS e acionados os mecanismos em vigor e um mesmo doente regressado de França é excluído do circuito, sendo descartado como caso não validado”. Ontem a lista de países publicada no site da DGS mantinha como zonas de referência para os testes a China, a Coreia do Sul, o Japão e Singapura, o Irão e, na Europa, apenas Itália.
Santa Maria com falta de testes A descoberta de dois casos no Santa Maria causou alarme no hospital. Os doentes estavam internados nos serviços de Medicina 1 e Medicina 2, um deles chegou a estar numa maca no corredor. Após os testes darem positivo, foram colocados em isolamento. Segundo i apurou, a decisão foi testar todos os profissionais que estiveram a menos de dois metros do doente. Foram estabelecidos diferentes patamares de risco mas os kits disponíveis no hospital não chegaram para testar todos os profissionais sem que corresse o risco de esgotar reservas. A meio da tarde, parte do grupo foi enviado para a casa. Aos profissionais a quem o teste deu negativo foi pedido que se apresentassem ao trabalho e usassem máscara, uma situação questionada pela FNAM, que exige que seja garantida a proteção dos profissionais. O isolamento profilático durante 14 dias tem sido a recomendação a pessoas que contactam com casos suspeitos mas não foi seguida neste caso. Não têm sido feitos testes a pessoas sem sintomas, o que aconteceu neste caso, mas os peritos até aqui consideravam que um resultado negativo na fase em que o vírus pode estar em incubação pode não ser definitivo. Ao i, o Centro Hospitalar Lisboa Norte confirmou que estão pedidos aos fornecedores 2000 testes, estando a aguardar que cheguem até ao final da semana. Quanto aos procedimentos seguidos, a unidade garante que foram validados pela equipa responsável. Numa conferência de imprensa, a diretora-geral da Saúde admitiu que algumas pessoas podem ficar em isolamento, mas explicou que há diferentes níveis de risco. Graça Freitas disse também que cabe à autoridade de saúde de Lisboa e Vale do Tejo determinar as medidas.