Um cartaz, numa manifestação contra a despenalização da eutanásia, dizia: ‘Por favor, não matem os velhinhos’. Revê-se nesta mensagem?
Essa frase acaba por estar limitada em relação àquilo que pode acontecer. A experiência que existe noutros países é a extensão dos casos iniciais previstos pelos promotores da lei a toda uma outra série de categorias de pessoas que, até lá, não estavam nas intenções de quem promoveu essas leis. Aquilo que nós vemos é não apenas os velhinhos, mas também pessoas com deficiência, com problemas de saúde mental… Vemos inclusivamente crianças. Por isso, essa frase acaba por estar limitada em relação àquilo que pode acontecer.
A palavra matar é adequada…
Não temos outro nome para chamar à eutanásia que não seja matar. É o que é. A eutanásia consiste nisso mesmo. Num profissional de saúde que provoca a morte de outra pessoa, segundo os projetos de lei. O ato da eutanásia é precisamente o ato de dar a morte.
Não admite que as proposta que estão em discussão são cautelosas. Só é possível em casos em que a pessoa esteja em sofrimento extremo e com uma doença incurável e fatal.
Cautelosas são as declarações, mas os conteúdos dos projetos de lei são tudo menos cautelosos. Veja o exemplo da lesão definitiva. Lesão definitiva de que tipo? Uma lesão que priva de quê? Não é definido. Isto é consentâneo com a experiência internacional. Na Holanda, não houve modificações da lei. Aquilo que aconteceu foi que com a lei inicial, desde 2000, foi-se alargando o âmbito das pessoas atingidas por essa lei e passíveis dos atos da eutanásia. Por isso tudo aquilo que tem vindo a acontecer na Holanda… Aqueles casos que se conhecem da rapariga que teve o desgosto amoroso, a outra pessoa que não convive bem com uma dependência de álcool… Tudo isto foi possível com a lei original.
O referendo pode ser a solução?
O referendo vai dar a possibilidade de toda a população portuguesa participar neste debate. Os dois maiores partidos não apresentaram propostas nesse sentido e até aqueles que apresentaram propostas não trouxeram a questão à campanha eleitoral. É preciso perguntar aos portugueses o que eles pensam sobre este assunto. O referendo coloca-se, primeiro que tudo, como esta oportunidade de participação como, aliás, a Constituição e a lei o preveem.
A eutanásia não é uma questão demasiado complexa para ser alvo de um referendo?
Não. Essa menorização das pessoas é uma coisa que não entendo. Por um lado, quando o legislador previu a existência do referendo não definiu que apenas certas questões de uma particular facilidade de compreensão pela população pudessem ser referendadas. As pessoas sabem aquilo que querem. Cada um de nós sabe aquilo que quer para a própria vida.
Acredita que os portugueses são contra a eutanásia?
Não tenho nenhum palpite. Quando se abre um debate depois é que se verá no final qual é o sentido da decisão das pessoas. A população está dividida como é natural nas questões desta natureza. E, na sociedade portuguesa, ainda existe uma grande confusão de conceitos. Muitas vezes ainda se confunde o desligar da máquina com a eutanásia. As pessoas desconhecem bastante os seus direitos, quer como doentes comuns, quer como doentes em fim de vida. E creio que um maior esclarecimento levará as pessoas a perceber que a eutanásia não é resposta para o problema do sofrimento, da morte, o problema da própria família e da própria pessoa. Nesse sentido, estou convencido de que o referendo propiciaria essa manifestação.
Há um movimento a favor do referendo?
Sim, claramente. Encerrámos as primeiras contagens este sábado, mas ainda temos muitas assinaturas para contar, muitas assinaturas que nos chegam todos os dias e muitas manifestações de desejo de pessoas de aderirem a esta petição de referendo. Por si, a petição provocou um debate espalhado na sociedade portuguesa.
A Igreja contribuiu muito para a recolha de assinaturas?
Angariámos assinaturas em todos os lados. Junto às paróquias, junto às sociedades recreativas, em estádios, em conferências e debates, na rua, na Cidade Universitária em Lisboa. Em todo o lado se angariam assinaturas. É bastante variada a localização da recolha das nossas assinaturas.
Foi muito noticiada a questão de recolha à porta das missas.
Chama sempre à atenção. Uma missa, por definição, é um sítio que tem muita gente. Para recolher assinaturas onde é que nós vamos? Aí, sim. A maior parte das assinaturas foram recolhidas junto de concentrações de pessoas.
No Congresso do PSD, em 2018, defendeu que o partido devia tomar uma posição clara sobre a eutanásia. Disse que era necessário que o PSD tivesse uma ‘uma posição que garanta a todos os portugueses que o seu direito à vida nunca será posto em causa’. Essa posição clara nunca foi assumida pelo PSD. Teve pena de que isso não acontecesse assim?
Num partido político nós propomos uma coisa e depois ou ela encontra suficiente acolhimento ou não. Creio que se perguntasse aos militantes do meu partido seria essa a posição, contrária à eutanásia. Há muito tempo que nessas matérias remetemos para a liberdade de voto. Há uma tradição consolidada no PSD. Preferia que não fosse assim, mas é esta a tradição.
Dizia nesse discurso que o eleitorado do PSD é moderado…
Estou convencido de que o nosso eleitorado é moderado. Há uma coisa que é preciso que se perceba. As posições a favor da vida e da família não são posições extremistas. São posições de um eleitorado moderado. E esse eleitorado moderado revê-se no nosso partido. O que aconteceu foi que a entrada do BE no Parlamento inclinou o sistema todo à esquerda. Isso fez com que uma posição que era moderada, de repente, parecia uma posição muito oposta. Coisa que agora equilibrou com a entrada do Chega e do Iniciativa Liberal. No fundo, as posições a favor da vida e da família são as posições do cidadão comum. Nós vemos isso muito no debate das questões fraturantes. A pessoas dizem: «Não quero isto para mim, mas como há outros que querem prefiro conferir-lhes essa possibilidade».
Não é um bom argumento dar aos outros a liberdade de escolher, independentemente das nossas opções?
Parece um bom argumento, mas uma lei afeta todos. As leis não afetam apenas a própria pessoa. E as propostas permitem, por exemplo, que tudo se possa passar às escondidas da família. Um rapaz de 18 anos pode fazer isso e a família recebe um telefonema do Hospital de Santa Maria a dizer: «Olá boa tarde, daqui é do hospital de Santa Maria e temos aqui na morgue um rapaz chamado Paulo». E a família é surpreendida por esse facto.
Tem receio que possam acontecer situações como essa?
As propostas permitem que a pessoa possa conduzir o seu processo de eutanásia sem ninguém ter conhecimento disso. Além disso, a lei introduz uma desvalorização do valor da vida humana. Esse é o problema real. Passe-se o que se passar com esta lei, o problema real é como é que nos é tão difícil reconhecer a humanidade daqueles de nós que não estamos em perfeitas condições? Esse, para mim, é o grande desafio deste debate. Como é que podemos achar que uma pessoa doente é um peso para nós todos no Serviço Nacional de Saúde? Essa é que é a grande questão.
Mas o objetivo dos projetos não é aliviar o SNS, é aliviar o sofrimento das pessoas.
Não me estava a referir aos projetos, estava a referir-me à questão de fundo que está por trás. Mas não falta quem fale de qualquer das maneiras do facto de não termos a possibilidade no SNS de dar os cuidados às pessoas que elas necessitam. Isso é terrível. Mas há um ponto anterior a isto. Como é que nós, nas nossas sociedades, estamos a perder a noção da humanidade e da dignidade do outro? Há uma frase muito bonita do deputado António Filipe num debate sobre este tema. Ele disse que «não há vidas indignas, o que há são circunstâncias indignas». Uma senhora de idade que está num péssimo estado fisicamente e cheia de doenças e que vive num sítio sozinha sem que ninguém cuide dela… A dignidade da vida dela mantém-se intocável, a circunstância em que ela está a viver é que é uma circunstância indigna.
É curioso que esteja a recorrer à frase de um comunista…
Há duas coisas muitos importantes que nós temos que reconhecer ao Partido Comunista. Uma, preocupa-se com a vida real das pessoas – e sempre se preocupou. E, por outro lado, é muito sério politicamente. Em geral, não só em relação à eutanásia. O Partido Comunista quando lhe é colocada uma questão política, analisa do ponto de vista político, à luz da sua ideologia, e são sérios perante a questão. E depois, não temem nenhuma pressão do meio mediático. O Partido Comunista não tem medo do meio mediático. Há partidos que ditam a sua atuação política por essa questão mediática. O Partido Comunista tem um contacto próximo com os mais carenciados. Percebe bem o que uma lei destas faria aos mais pobres. O PCP tem essa sensibilidade.
Acha que que os mais pobres vão recorrer mais à eutanásia?
Claro. Porque os mais ricos podem sempre providenciar-se com os tratamentos que querem. Os mais ricos providenciam-se. A população portuguesa está privada do acesso aos cuidados paliativos. Há uma pequena faixa que se precisar de se tratar, trata-se sempre. E, portanto, nunca estará nessa situação extrema e sofrida. Quem sofre com uma lei desta são os mais pobres. São os mais pobres a quem o Estado não está disponível a dar os cuidados que merecem e são os mais pobres que mais desamparados estão. É nesse quadro que eu vejo a posição do PC, de quem tenho uma distância enorme do ponto de vista ideológico.
Voltando ao referendo. Rui Rio não mostrou entusiasmo com a ideia de fazer um referendo.
Quando se colocar a questão do referendo aí o partido tomará uma posição.
Qual é a posição que espera do PSD?
Cada coisa tem o seu momento.
E do Presidente da República?
Em relação ao Presidente da República a mesma coisa. Como ele próprio diz: «No momento em que for o meu momento, nesse momento eu me pronunciarei». Além disso, como ele dizia, decorrem vários processos, entre os quais o processo legislativo e nas ruas o processos referendário.
Mas tem a esperança de contar com o lado católico do Presidente da República?
Confio que o Presidente da República, no momento adequado, há de tomar a decisão que há de ser adequada ao momento porque entretanto pode haver um referendo. Havendo um referendo pode ser que a lei não passe.
Espera, por exemplo, que o Presidente da República envie o diploma para o Tribunal Constitucional?
Nesse momento se verá.
Mas gostaria que o diploma fosse ao Tribunal Constitucional se não houver referendo?
Primeiro que tudo quero um referendo. Acho que ganhávamos todos. Ganhava inclusivamente quem é favorável à despenalização da eutanásia. Se a intenção da eutanásia é como os seus defensores e promotores a propõem, a melhor garantia, no caso desta lei passar – coisa que eu não desejo – , seria que toda a população a conhecesse devidamente. Não interessa à Assembleia da República tomar uma decisão sozinha.
Envolveu-se muito na luta contra a despenalização do aborto. Desde aí muita coisa mudou nos chamados temas fraturantes. Foi aprovada, por exemplo, a adoção de crianças por casais do mesmo sexo. Não se sente derrotado?
Não tenho a ideia de ter perdido nenhuma batalha. Lamento profundamente os resultados das leis que passaram e contra as quais me opus. Na questão do aborto dói-me todos os dias o facto de crianças em Portugal serem abortadas. Dói-me todos os dias. E, de facto, os resultados da lei comprovam aquilo que nós dizíamos. Mas, independentemente disso, de todos estes empenhos políticos nasceram realidades sociais que estão no tecido social português. Dos referendos do aborto nasceram todo um conjunto de associações que prestam apoio a mulheres com gravidez em dificuldade, que acolhem crianças abandonadas ou que fazem planeamento familiar.
Surgiram mais soluções para apoiar essas pessoas?
Todas estas movimentações sociais têm sempre originado uma presença na sociedade portuguesa que antes não existia ou que não era tão forte. E, por isso, todos os dias verifico que essa batalha não foi perdida. Em 2010, apareceu uma rapariga num destes centros para grávidas com muitas dificuldade. E perguntaram-lhe como é que ela tinha ido lá parar. E ela respondeu: «Porque me lembro, no último referendo, de um cartaz que dizia ‘às nove semanas já bate um coração’». Em relação à campanha de 2007 eu estou mais do que pago.
Não reconhece que a mudança de lei na questão do aborto veio acabar com um problema que era o aborto clandestino.
O aborto clandestino em Portugal não acabou. Quer aqueles que são contra como aqueles que são a favor só podemos fazer conjeturas sobre os números do aborto clandestino antes da lei. Mas há uma única pista que nós temos que é certa para os dois lados. Nos hospitais, às vezes chegam pessoas com infeções relacionadas com a prática do aborto clandestino. Após a legalização, esses números reduziram para um quarto. A segunda pista que temos sobre o aborto clandestino são os relatórios da Inspeção Geral das Atividades em Saúde, que de vez em quando fecham instalações de aborto clandestino. Além disso, a mim não me alegra que seja clandestino ou legal. O que me perturba é que ele exista. O que sabemos também é que uma em sete gravidezes acaba em aborto. E também sabemos que um terço dos abortos são repetições, ou seja, são mulheres que abortaram no próprio ano ou em anos anteriores. E a experiência que temos junto à Clínica dos Arcos com aquela missão das ‘Mãos Erguidas’ é que há mulheres que vão empurradas pela família, vão empurradas pelo namorado, vão porque são pobres. Não podem ter aquele filho porque são pobres. Tudo isto perturba-nos o suficiente para nos continuarmos a preocupar com esse assunto.
Sente-se melhor neste tipo de intervenção do que quando era deputado?
Gostei muito de ser deputado. A pessoa decisiva para eu ser deputado foi a Maria José Nogueira Pinto. Ela dizia muitas vezes: «Vocês têm força na sociedade, mas se não tiverem nos partidos e no campo político e instituições oficiais, a vossa força na sociedade não chega a gerar o impulso político que poderia gerar». Ser deputado é ter a oportunidade de estar a representar esta gente toda, estes movimentos estas realidades todas.
Foi deputado quatro anos…
Tenho uma experiência muito rara em Portugal. As pessoas geralmente são admitidas ou demitidas. Eu fui dissolvido. Fui deputado entre 2002 a 2005 e o Parlamento foi dissolvido pelo Presidente Jorge Sampaio naquilo que eu acho que foi um golpe de Estado Constitucional. Mas ninguém na altura deu por isso. E assim aconteceu.
Na altura ficou satisfeito com a experiência e voltou à sua vida profissional.
Na altura fiquei satisfeito com a experiência, que gostaria de repetir se calhasse com a vida profissional porque na altura até recuperar o fôlego… É muito complicado, sobretudo para profissionais liberais. Quem tenha um contrato de trabalho tem mais possibilidade do que um profissional liberal que tenha clientes.
Perdeu dinheiro por se ter dedicado à política a tempo inteiro?
Já nem sei dizer e não acho isso importante. Fiquei, na altura, um bocadinho pendurado. Para depois recuperar é difícil. Mas é muito bonita a função de representação. E há outra coisa muito importante. As pessoas que encontramos na política são pessoas que têm um desejo de bem comum. Encontrei gente magnífica. Presidentes da câmara, de junta… Desconhecia a realidade do poder local e é uma coisa belíssima. Gente com uma vontade de servir. Acho que falta um orgulho pelo facto de serem políticos.
Os próprios políticos…
Os políticos consentem no juízo que muitos fazem sobre a sua atividade. Por exemplo, aquela coisa extraordinária da limitação dos mandatos dos presidentes da câmara transmite uma mensagem errada.
Mas quando temos um ex-primeiro ministro envolvido num caso de corrupção não é difícil inverter essa situação?
Pode acontecer. No outro dia alguém chamava à atenção para as milhares de pessoas que nós temos no poder local, nas assembleias e juntas de freguesias. São milhares de portugueses a decidir se fazemos obras na rua estreita ou se fazemos na rua não sei quê. Há gente belíssima. Outros casos são estatisticamente raros, mas depois fazem barulho.
Como olha para a situação do país, do PSD e desta direita que parece estar a passar uma altura mais difícil. O próprio PSD teve alguns problemas na liderança.
O grande problema é não dizer da beleza da proposta que nós temos para os nossos concidadãos. Dou o exemplo com o que se passou com os contratos de associação. O ataque que o Partido Socialista fez às escolas com contrato de associação foi destruir a possibilidade de os mais carenciados terem um ensino de qualidade. Porque os ricos não têm problema nenhum. O problema da oposição em Portugal é que nós não temos sido capazes de explicar bem isto. De explicar a beleza, a maior justiça daquilo que nós propomos. Ou não é muito mais justo que o pobre tenha tantas oportunidades como o rico?
O que está a dizer é que o PSD não consegue provar que tem uma alternativa?
O centro-direita tem tido dificuldade em tornar evidente a beleza da proposta que tem para fazer – e que era melhor. Não se trata tanto de o Partido Socialista estar a fazer mal ou a fazer bem, mas trata-se de que é possível fazer melhor. Estes ataques às parcerias público-privadas, onde estão a privar as pessoas a cuidados de saúde…
Acha que Rui Rio pode chegar a primeiro-ministro?
Pode bem chegar, não sei…
Só porque está lá ou tem qualidades para exercer o cargo?
A oposição voltará a tomar poder em Portugal quando for capaz de demonstrar que é melhor. Aí, há outro problema – que é um problema do país em geral. Eles que tratem disto. Nós saímos de casa, vemos lixo no chão e não apanhamos. Não apanhamos porquê? Não é a minha rua, vou ficar à espera de que passe o caixote do lixo. Nós devemos tomar nas mãos as nossas coisas. Sou muito influenciado pelo meu pai que quando chegava à fábrica recolhia todo o lixo até chegar à portaria e entregava no caixote do lixo. A sociedade portuguesa será mais bem governada quando tiver esta consciência: os assuntos tomam-se nas mãos.
Mas prefere não dizer o que acha de Rui Rio?
Essa parte é mais fácil. Tenho muitas coisas em que me sinto próximo e há outras em que não me sinto tão próximo. Sinto-me próximo, por exemplo, quando ele diz: «Ninguém perceberá que digamos que não a uma proposta com a qual concordamos só por vir de um adversário».
É imprevisível o que vai acontecer?
Acabámos de ver com o que aconteceu com o coronavírus, que de um dia para o outro… É uma ajuda para percebermos que não depende só de nós. Temos a pretensão de controlar a nossa vida, o que se vai passar na nossa vida e no país. E depois, de repente, a vida tem uma força própria e leva-nos a pontos que nem imaginámos. Esta é a maior demonstração do que pode ser a imprevisibilidade.