Fundou a Associação de Aposentados, Pensionistas e Reformados (APRe) e, em Coimbra, onde chegou em 1967, é uma figura bem conhecida, pois foi professora de Biologia de milhares de alunos. Aos 71 anos, de regresso à liderança da APRe, Maria do Rosário Gama revela o que sentem as pessoas com mais de 70 anos: descriminação, fardo, pouco tempo para perder com a pandemia e uma vontade de ser livre das imposições das autoridades e dos filhos. Ou as regras são iguais para todos ou não vai respeitar confinamentos obrigatórios só para os mais idosos.
Que testemunhos tem recebido de pessoas que estão confinadas com mais de 65/70 anos?
Até ao momento em que não se pôs a hipótese do confinamento ser sem tempo limitado, as pessoas aceitavam, porque a situação é complicada, não só para quem tem 70 anos como para as outras. Mas quando a senhora presidente da Comissão Europeia veio falar, no domingo de Páscoa, que as pessoas com mais de 70 anos deveriam ficar em casa até haver uma vacina tudo mudou. Como não houve propriamente uma demarcação feita pelo primeiro-ministro, as pessoas passaram a ficar muito mais angustiadas. Recebi telefonemas de pessoas a chorar porque estavam a ver que iam ser obrigadas a ficar em casa. Pessoas com atividade. Os 70 anos de hoje não são os de há meio século, não é a mesma coisa. E por isso muitas continuam ativas e com muita coisa para fazer. As pessoas estão deprimidas.
Há uma discriminação em relação à idade.
Recebo mensagens por email, através das redes sociais de pessoas que não aceitam discriminação em função da idade. A possibilidade de se falar em três grupos (infetados, não infetados e idosos) não podemos aceitar. Só há dois grupos: infetados e não infetados. Porque há mais infetados nas faixas anteriores aos 70 anos – por exemplo dos 60 aos 69 – do que há propriamente na faixa dos 70 anos embora a letalidade seja maior a partir dos 70 anos. Por isso, há pessoas que não aceitam, de maneira nenhuma, ficar em casa, exatamente porque estão a sentir-se deprimidas. Por exemplo, uma senhora que é professora de dança. Tem 71 anos. Quer recomeçar as aulas e não vai poder. Ela poderia, se eventualmente fossem garantidas as condições de segurança, sair de casa. Mas, se não puder, mesmo com as condições de segurança, as aulas não vão acontecer. Deixo ainda o exemplo de uma psicóloga clínica que me escreveu. Não me conhecia. Dizia que não aguenta mais e que está num estado de depressão muito grande, porque não havia perspetivas de futuro. A questão é esta: o tempo das pessoas com 70 anos ou mais é um tempo exíguo. É um tempo que é muito menor do que as pessoas que têm 40 ou 50 anos. Todo o tempo que nos é roubado à vida – estar confinado em casa não é viver – faz-nos falta. E não aceitaríamos que houvesse levantamento de restrições para pessoas de outras faixas etárias e as com mais de 70 anos tivessem de ficar confinadas às suas casas.
Tem conhecimento de casos cujos filhos recriminam os pais que querem sair de casa para ir beber um café ou para ir à farmácia, por exemplo?
Não preciso de ir muito longe, basta vir à minha casa. Os meus filhos acham que não devo sair. Costumo ir à RTP, à Praça da Alegria, de 15 em 15 dias, e era para ir lá esta semana. E a recomendação deles é que não devo sair, porque não é permitido e porque tenho de me preservar. Não vejo os meus netos há mais de um mês. Queria ir vê-los, mas o meu filho diz que não, porque é perigoso juntarmo-nos. E há muitos pais a serem pressionados pelos filhos. Basta ir às redes sociais para ver. É como se se virasse o feitiço contra o feiticeiro. Quando éramos nós a fazer estas recomendações eles também reclamavam. Agora são eles a fazerem-nos as recomendações. Mas vou dizer uma coisa: não somos propriamente crianças que não saibamos como podemos exercer a nossa liberdade, e ela terá de ser exercida com responsabilidade. Quer os filhos digam faz assim ou não, as pessoas adultas e responsáveis continuarão a fazer aquilo que a sua consciência lhes ditar.
Tem casos mais dramáticos, de situações muito complicadas.
Não, o que tenho são os relatos que me aparecem no Facebook, mas não há casos dramáticos. As pessoas das minhas relações, normalmente, são pessoas determinadas e sabem aquilo que querem e não se deixam influenciar por algumas recomendações dos filhos. Se elas, em consciência, acharem que não devem contrariar as ordens, fá-lo-ão. Se acharem que haverá um exagero quando essas ordens forem discriminatórias, então aí não sei se não tropeçarão.
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