Quando confrontado na terça-feira por uma repórter com o número de óbitos causados pelo novo coronavírus – ultrapassou o patamar dos 5 mil, acima da China – o Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, ripostou: “E daí? Lamento. Quer que faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagres”. No seio de uma crise no seu Governo, provocada pela gestão da pandemia, mas não só, muitos dos seus discípulos também deixaram de o seguir. E pelo meio deste caos governativo em que Brasília se encontra, o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou a abertura de um inquérito para investigar Bolsonaro por obstrução à justiça e corrupção.
A curva de contágio por covid-19 no Brasil voou para altitudes arriscadas nas últimas duas semanas. No dia dia 14 de Abril, o país sul-americano tinha 25.300 casos confirmados. Passados 14 dias, no dia 28, o Brasil sprinta para chegar ao top ten de número de infeções por coronavírus em todo o mundo, registando 73 200 infeções declaradas oficialmente, atrás da China (10ª no ranking), segundo dados da Universidade Johns Hopkins.
Depois de várias altercações – muitas em público -, Bolsonaro demitiu o ministro da Saúde da altura, Henrique Mandetta, por discórdias sobre as regras de distanciamento social que o Executivo devia impor. As repetidas saídas à rua e abraços do Presidente a apoiantes foram as imagens mais fulgurantes deste duelo com Mandetta.
Afinal, havia políticas económicas a impor – privatizações e iniciativas de austeridade para alegadamente promover o crescimento económico, abrindo os braços ao mercado livre para atrair investimento externo, diz o New York Times – e a pandemia não podia interrompê-las.
Aliás, Paulo Guedes, ministro da Economia formado na escola de Chicago, reconhecida como um bastião do neoliberalismo, completamente contrária a um certo tipo de intervenções estatais na economia, tem tido relutância em reconhecer a gravidade da situação, disse João P. Romero, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal de Minas Gerais, no Intercept Brasil.
Com o Fundo Monetário Internacional a advertir que o mundo pode enfrentar a maior queda económica desde a Grande Depressão que se iniciou em 1929, Guedes ainda há um mês falava com um certo otimismo. Em entrevista à CNN Brasil, afirmou que o país ia crescer 2,5% e que um pacote de 5 mil milhões de reais (cerca de 855 milhões de euros) destinados ao Ministério da Saúde seria suficiente para combater a situação – em março, Itália, uma economia com um PIB semelhante ao do Brasil, segundo o FMI, destinou 25 mil milhões de euros.
Mas há mais. E não tem a ver com o coronavírus. Há uma semana, na manhã de sexta-feira, Bolsonaro demitiu o diretor da Polícia Federal (PF), Maurício Valeixo, depois de uma longa e tensa batalha com o seu ministro da Justiça, Sérgio Moro, o muito popular juiz do caso Lava Jato e um dos membros do Executivo brasileiro com melhores taxas de aprovação do público. Não demorou muito para Moro para deixar a pasta – demitiu-se no próprio dia. Numa conferência de imprensa insólita, o homem que tutelava a Justiça brasileira alegou não ter sido informado sobre a decisão, embora a sua assinatura aparecesse na publicação do Diário Oficial, o equivalente ao Diário da República.
Ainda na mesma conferência, Moro alegou que Bolsonaro lhe tinha admitido que a exoneração de Valeixo tinha um propósito: a de interferência política, pois o Presidente, alegou o ministro demissionário, pretende ter alguém na PF que lhe dê informações sobre investigações em andamento no STF – vários aliados políticos de Bolsonaro encontram-se sobre investigação, incluindo dois dos seus filhos. Segundo Moro, há muito que o Presidente insistia em ter alguém que o mantivesse a par, embora não seja o papel da PF fazê-lo. O ex-juiz da Lava Jato, inclusive, enviou fotografias de alegadas mensagens ao Jornal Nacional, o mais popular programa noticiário da noite no país, em que Bolsonaro insistia em nomear para a PF alguém com quem pudesse ter contacto próximo.
Com as extraordinárias acusações de Moro, um juiz do STF, José Filho, aprovou na segunda-feira uma investigação de 60 dias para determinar a veracidade das alegações de Moro e se Bolsonaro incorreu em ações corruptas e obstruiu a justiça.
Bolsonaro, que nega as acusações, realizou a campanha presidencial com um mote contra a corrupção vigente no país e Moro ganhou fama pela perceção do público de ser o grande homem que estava a limpar o Brasil da sua corrupção endémica, acabando premiado com a tutela da Justiça. Em entrevista ao i pouco depois da sua nomeação, Moro afastou as preocupações de muitos sobre as tendências autoritárias do ocupante do Planalto. “Bolsonaro é um sólido democrata”, destacou.