O estado do sítio…

A CGTP celebra o 1º de Maio exatamente no mesmo local em que Mário Soares desafiou os comunistas no Verão Quente de 75.

Quando renovou o estado de emergência, o Presidente da República falou em ‘milagre’ português no combate ao coronavírus, concordando com quem nos aponta como exemplo, talvez sob influência das desgraças maiores vividas em Espanha ou Itália.

Convirá, no entanto, explicar, em nome do rigor, que o nosso ‘milagre’ se traduziu em mais de mil mortos desde que começou a contabilidade negra desta crise sanitária, muito acima do verificado noutros países europeus com população semelhante, como é o caso da Grécia.

Ao discursar na solenidade do 25 de Abril, Marcelo Rebelo de Sousa esqueceu o ‘milagre’ mas deu a mão a Ferro Rodrigues, autor desastrado de uma polémica que dividiu o país, com bolorentas alusões a «fascistas» e «fascistoides».

O Presidente tentou ‘salvar-lhe a face’, mas Ferro Rodrigues não tem emenda. E não resistiu à tentação, ao discursar na cerimónia, de ir a reboque da ficção inventada pelo primeiro-ministro, defendendo que «Portugal e os portugueses estão vacinados contra a austeridade».

Infelizmente, não estão. E a dura realidade já não permite esconder que a validade da ‘vacina’ se esgotou. Ou seja: mesmo que a solidariedade europeia nos acuda, será inevitável ‘apertar o cinto’.

Fica mal a António Costa insistir no refrão de que «o país não precisa de austeridade», quando sabe que os bolsos de muitos portugueses já estão vazios. E ainda o vírus não amoleceu…

Se tiver dúvidas, basta consultar os registos do Banco Alimentar e ouvir Isabel Jonet, a quem se deve um admirável idealismo com muitas histórias para contar.

A ‘vacina’ usada na era da troika – que permitiu ao PS fingir que não teve nada a ver com a pré-bancarrota de 2011 – teve um efeito duradouro mas não é vitalícia. O atual problema sanitário empurrou novamente Portugal – muito dependente do turismo e da ‘engenharia’ das contas – para um patamar complexo no plano económico e financeiro.

E mesmo que a Europa consiga consensualizar um outro e robusto ‘Plano Marshall’ para salvar as economias fustigadas – sobretudo as dos países mais pobres e endividados, onde nos incluímos –, dificilmente evitaremos a severidade da ressaca. Tudo o mais é fantasia.

É certo que o funcionalismo público está, por enquanto, a coberto dessas dificuldades. Mas basta reparar nos milhares de empresas em lay-off – abrangendo mais de um milhão de trabalhadores, com salário reduzido e futuro incerto – para termos uma noção mais exata do que nos espera.

Será útil averiguar, entretanto, como ficarão os cofres da Segurança Social (que andou a vender imóveis ao desbarato para servir os objetivos políticos do Município de Lisboa…) após o impacto da gigantesca sangria provocada pelo pagamento de parte dos salários dos empregados em lay-off.

Neste quadro, prever o corte nas pensões e reformas não será rasgo de ‘adivinho’, por muito que o primeiro-ministro teime em garantir que «essa seria uma estratégia profundamente errada na atual circunstância». Oxalá não tenha de dar o dito por não dito…

E assim chegamos ao 1.º de Maio, que a CGTP convocou para a icónica Alameda. Será de lembrar, a quem tenha memória curta, que foi nesse espaço que Mário Soares protagonizou o comício da Fonte Luminosa, em Junho de 1975, quando desafiou abertamente o PCP e os seus satélites – então candidatos a serem ‘donos disto tudo’ –, exigindo a demissão do primeiro-ministro Vasco Gonçalves, um ‘militar de Abril’ controlado pelos comunistas.

No dia em que a CGTP – braço sindical do PCP – consegue o ‘salvo-conduto’ para concentrar os fiéis, em violação (consentida) do confinamento, é justo lembrar que foi a coragem física (e política) de Soares que abriu caminho à derrota do PCP e das forças de extrema-esquerda, consagrada em 25 de Novembro: um marco na restituição das liberdades, que os comunistas odeiam.

Foi à luz dessa nostalgia do totalitarismo soviético que o PCP celebrou os 150 anos do nascimento de Lenine, com um fervor decadente, traduzido numa ‘flor de estilo’ de Jerónimo de Sousa, para quem o partido deve «a Lenine a bússola segura». Como antes dissera que Estaline «assumiu um papel histórico, numa fase concreta, que não pode ser silenciado por mais voltas que se dê».

Ao homenagear dois torcionários, o PCP deixou cair a máscara ‘democrática’, a um passo do centenário da sua fundação. As ‘liberdades’ em vigor na extinta URSS, de que o partido se reclama, sofriam o crivo da ditadura e da polícia política, e eram asfixiadas pelo terror que deixou um lastro de milhões de vítimas.

Há um estranho e continuado fascínio do PCP por alguns tiranos. Dir-se-á que é uma questão de coerência. E é isso que se torna perturbador, ao concluir-se que, apesar da implosão da URSS ou da queda do Muro de Berlim, o PCP ficou no mesmo sítio. Estático, imobilista, fiel às mesmas ‘sagradas escrituras’ do tempo da ‘guerra fria’ e da ‘cortina de ferro’.

Por isso, o 1.º de Maio é sempre a oportunidade para um ‘ato de fé’ e para o exorcismo do costume. É essa ‘bíblia’ que rege o pensamento de Jerónimo de Sousa. Caberá à ‘noviça’ Isabel Camarinha subir ao palco da Alameda, recitando a ‘cartilha’ do comité central, em nome da CGTP…