Os moradores de Asnieres-sur-Seine, um bairro próspero no norte de Paris, não faziam a menor ideia que eram vizinhos de um suspeito de genocídio, com uma recompensa de cinco milhões de dólares sobre a sua cabeça. O velhote discreto e frágil que morava na porta do lado não era outro que não Félicien Kabuga, alegado financiador do genocídio do Ruanda, em 1994. Foi detido aos 84 anos, pela Interpol e pelos serviços secretos franceses, após uma longa perseguição. «Era um homem velho, muito velho. Estava doente», disse um vizinho à Reuters. «Não dizia uma palavra, nada», contou outro. Contudo, no Ruanda dos anos 90, a descrição de Kabuga, então um dos empresários mais ricos do país, seria muito diferente: a sua influência e ligação aos Akazu, uma rede informal de militares e políticos, considerados o poder por trás do poder, faziam o seu nome ser algo a temer. O ódio que Kabuga nutria pelos tutsis ouvia-se por todo o Ruanda, através da Radio Télévision Libre des Mille Collines (RTLM), que fundou e foi proprietário.
Era escutada atentamente pela Interahamwe, uma milícia de jovens extremistas hutu – entretanto, terão sido financiados e armados por Kabuga, que antes do genocídio importou quantidades massivas de machetes. O louco massacre que se sucedeu fez mais de 800 mil mortos, entre tutsis e os hutus que os tentaram proteger, ao longo de 100 terríveis dias.
Um ciclo de violência
Félicien Kabuga nasceu em Muniga, no norte do Ruanda, em 1935. Cresceu no seio de uma família hutu, de agricultores pobres, mas desde cedo mostrou olho para o negócio – o seu primeiro trabalho foi vender roupa usada, tabaco e outros bens, porta a porta. Determinado, o jovem Kabuga mudou-se para a capital, Kigali, onde viria a abrir várias lojas. Mas não seria um caminho fácil. Eram os tempos do domínio belga sobre o Ruanda, quando os tutsis e hutus começaram a receber bilhetes de identidade rotulados etnicamente.
Até então, a diferença era sobretudo de classe, numa lógica quase feudal: os hutus, que compunham cerca 85% da população, cultivavam os campos, enquanto os tutsis, uns 15%, eram proprietários de gado. A divisão foi oficializada pelos belgas, no mesmo ano em que nasceu Kabuga. A partir daí, um hutu que adquirisse muitas vacas não poderia tornar-se num tutsi honorário, ficando, por exemplo, excluído de qualquer educação pública – enquanto os tutsis eram formados como uma elite, que governava em nome dos colonizadores. O ressentimento geraria um ciclo de violência que ainda marca a região.
Em 1962, a revolução ruandesa derrubou a monarquia tutsi, expulsando centenas de milhares de pessoas para o Uganda – enquanto o Burundi era governado com mão de ferro por militares tutsi, responsáveis pelo genocídio de 1972, que causou entre 80 a 210 mil mortes. A elite hutu que surgia no Ruanda, entre os quais Kabuga se destacaria, e que seria central no genocídio de 1994, observava com atenção. «Viam-se como verdadeiras vítimas de um drama político a decorrer, vítimas de ontem que podiam ser vítimas outra vez», lê-se no livro When Victims Become Killers: Colonialism, Nativism and Genocide in Rwanda, de Mahmood Mamdani
Riqueza, influência, poder
Quando chegaram os anos 90, Kabuga era considerado o homem mais rico do Ruanda, dono de plantações de café e chá, moinhos, centros comerciais, armazéns e apartamentos. Aliás, era tão rico que, mesmo nas aldeias remotas do interior, os mais prósperos recebiam a alcunha de ‘Kabuga’, recordou a France 24. Mas a riqueza era só uma face do seu poder: o empresário colocou-se no centro do regime do general Juvénal Habyarimana, tornando-se um dos principais financiadores do seu partido, o Movimento Republicano Nacional por Democracia e Desenvolvimento (MRND, em francês), e casando quatro das suas filhas com altos dirigentes, incluindo dois filhos de Habyarimana.
No entanto, não se avizinhavam tempos fáceis para o regime. No final dos anos 80, no norte, no Uganda, refugiados tutsis tinham-se juntado em massa à rebelião de Yoweri Museveni, tornando-se as suas tropas de elite – quando tomaram Kampala, estima-se que mais de um quarto dos soldados de Museveni fossem exilados ruandeses, ansiosos por voltar a casa. Após a vitória, os seus líderes – entre os quais o atual Presidente, Paul Kagame – criaram a Frente Patriótica do Ruanda (FPR), invadindo o país e dando início a uma guerra civil, em 1990.
Para muitos hutus, a guerrilha de Kagame trazia à memória os ataques de monárquicos tutsis, em 1963 – chamavam-lhes inyenzi, ou baratas, um termo estendido a todos os tutsis. Quando o Presidente se apercebeu que não conseguia vencer a guerra sem o apoio dos seus aliados franceses, acabou a assinar um acordo de paz, em 1993. Deu por si flanqueado por um crescente movimento de extremista hutus, insatisfeitos, que agitavam as ruas e até os corredores do palácio presidencial: diz-se que os Akazu, a ala dura do regime, de quem Kabuga era próximo, eram compostos por boa parte do círculo próximo de Habyarimana e liderados pela sua própria mulher, Agathe.
‘A voz de Deus’
«No dia em que o povo se levantar e não vos quiser mais tutsis, quando eles vos odiarem como um, do fundo dos seus corações… Pergunto-me como escaparão», questionou Noël Hitimana, um apresentador da RTLM, numa manhã de 1994. No ano anterior, quando Kabuga se reuniu com investidores para fundar a rádio, no terraço do Hôtel des Mille Collines – onde mais de mil pessoas se refugiariam durante o genocídio, como imortalizado no filme Hotel Ruanda – Hitimana, uma voz bem conhecida, era uma contratação óbvia. Afinal, acabara de ser despedido pela Rádio Ruanda, por se embriagar e insultar o Presidente em direto: foi apenas um dos populares apresentadores, comediantes e jornalistas descontentes que se juntaram à RTLM.
«Ouvir o Noël Hitimana de madrugada, enquanto se ia para os campos, era em si mesmo uma prática cultural, parte do processo diário através do qual significados – pertença à nação enquanto comunidade imaginada, ou o valor do trabalho duro como frequentemente exaltado pela Rádio Ruanda – eram trazidos à vida», explicou Mary Kimani, no livro The Media and the Rwanda Genocide. Na RTLM, a influência de Hitimana não diminuiu. A nova rádio tinha talk shows ao estilo norte-americano, em que ouvintes podiam ligar a dar a sua opinião, intercalados com música popular e rap ruandês, ou música pop ocidental. A linguagem era coloquial, com obscenidades e gargalhadas à mistura. Um tema era recorrente: o ódio aos inyenzi. Em 1994, quem vivia em aldeias mencionadas por Hitimana tendia a ser atacado por milícias e multidões: a RTLM chegou a aconselhar os genocidas a não deixar corpos nas estradas, à vista de repórteres internacionais.
«No Ruanda, a rádio era como a voz de Deus, e se a rádio apelava à violência, muitos ruandeses respondiam, acreditando que estavam a ser sancionados para cometer essas ações», escreveu Roméo Dallaire, que comandava as forças de manutenção da paz das Nações Unidas no país. Nas mãos de Kabuga, a RTLM ganhou alcunhas como Radio Telé ‘La Mort’, Radio Rutswitsi – ou rádio que queima – e Radio Machete. Não que o empresário se dedicasse só a armas metafóricas, atenção: encabeçava o Fundo de Defesa Nacional, através do qual empresários armaram e equiparam as milícias e a população, preparando-a para as matanças, violações e mutilações do genocídio.
A 4 de abril de 1994, quando o avião em que seguia Habyarimana, juntamente com o Presidente do Burundi, Cyprien Ntaryamira, foi abatido por um míssil – os principais suspeitos são Kagame ou extremistas hutu – o poder caiu nas mãos da linha dura, disposta a tudo para manter o poder. A chacina de tutsis e hutus moderados, há tanto prometida pela RTLM, começou.
Um rasto de sangue
Kabuga não ficou para assistir ao fim do genocídio que é acusado de arquitetar. Em junho de 1994, quando a FPR ainda combatia para tomar Kigali, o empresário fugiu para Geneva, onde terá levantado o dinheiro das suas contas suíças, antes de ser expulso do país. Seguiu para o Zaire (hoje RD Congo), governado pelo ditador Mobutu Sese Seko, que seria derrubado por uma invasão ruandesa, liderada por Kagame, em 1997. Antes disso, já Kabuga fugira para o Quénia, onde terá desfrutado da proteção das autoridades – os seus contactos de negócios por todo o continente terão ajudado.
Entre esses tempos e o fim de semana passado, a vida de um dos fugitivos mais procurados do mundo foi um mistério. Que identidade usaria? Será que tinha feito cirurgias plásticas? Estaria sequer vivo? Tivemos um vislumbre em 2003, quando William Munuhe, um jornalista queniano que tentava armar uma cilada ao empresário, com ajuda do FBI, foi encontrado executado a tiro em sua casa, em Nairóbi, horas antes do encontro marcado. Em 2007, Kabuga seria visto, por acaso, por imigrantes ruandeses, nas ruas de Frankfurt. Conseguiu escapar: na casa onde estava, as autoridades encontraram um dos seus genros, o antigo ministro Augustin Ngirabatware, que seria condenado a 35 anos de prisão por genocídio.
Cumplicidade francesa?
Que Kabuga tenha resurgido em França, onde vivia há anos, detetado após uma longa vigilância aos seus filhos, foi uma enorme surpresa – mas não para todos. Há muito que Kigali acusa Paris de encobrir o seu papel no genocídio, como antigo aliado de Habyarimana. «Ele tem bons contactos entre as elites francesas, dado os seus laços a dignitários franceses nos anos 90. Também parece ter recebido apoio de familiares e da grande diáspora ruandesa em Paris», lembrou Phil Clark, professor na Universidade de SOAS, em Londres, citado pelo jornal ruandês New Times.
Agora, ficam por capturar sete alegados dirigentes do genocídio. Os mais relevantes são Augustin Bizimana, então ministro da Defesa, bem como Protais Mpirinya, o comandante da guarda presidencial de Habyarimana, que terá assassinado os principais políticos moderados – suspeita-se que de que hoje gere uma bem-sucedida empresa de mercenários, protegido pelo Zimbabwe.