Quantos autores, entre nós ou mesmo lá fora, poderão reclamar por verem as suas obras devassadas, como se dentro da sua ordem interior avançasse um exército, em força, ansioso por mitigar a sua “negra sede”, uma sede tão rara hoje, essa que ainda se abeira dos livros como de poços, leitores que os descobrissem nesses recessos onde quiseram encobrir-se? Talvez bastasse os dedos de uma mão para contá-los. Entre nós seria, certamente, mais do que suficiente. Herberto Helder goza, com Fernando Pessoa e poucos mais, desse restrito pavor.
Publicado pela Ulisseia, em 1968, “Apresentação do Rosto” persistia há décadas como um livro deixado em suspenso, entre a decomposição furiosa que levou Herberto a voltar a ele, recuperar fragmentos, integrando-os em obras posteriores, este livro conta ainda com o dignificante acaso de ter sido alvo de censura, e surgiu, além disso, acompanhado do anúncio de que o autor iria deixar de escrever. Uma promessa que ficaria por cumprir, adiada por uns tempos, foi como um primeiro ensaio para as gracinhas com que o autor foi mimoseando os leitores, fazendo-se difícil antes de encenar a sua enfática retirada do meio literário. Refira-se, contudo, que se o fez, não deixou por mãos alheias o espectáculo da sua ausência, escolhendo um bom número de interlocutores e cúmplices bem posicionados nesse meio pelo qual mostrou tão grande desprezo, continuando, não obstante, a exercer uma inquietante presença ainda que sob o signo da assombração. Boa parte dos 1500 exemplares impressos foram, quase de imediato, apreendidos pela polícia política, o que fez dos livros que escaparam raridades traficadas por bom preço nos alfarrabistas. Quanto aos motivos do censor, é mais fácil explicar a arrelia como um desses casos de urticária no contacto com uma linguagem que trazia uns ares de treva, uns excessos que podiam ameaçar o idioma por via dessas infiltrações que o rasgam e arejam.
Neste livro não é difícil colher em cada página versos radiantes, mas o que o distingue e que, em último caso, faz dele uma obra incómoda para o próprio autor, que o foi renegando sucessivamente, não só por não o reeditar nunca mais, mas até por se alimentar dele, arrancando-lhe textos e fragmentos que passaram a integrar a carne de títulos que se lhe seguiram, e isso justifica-se por este ser construído a partir de pedaços brutos de uma vida na qual o ramo, os espinhos e as flores se confundem, num travo que retém na garganta um gole meio lúcido meio alucinado que, se consegue provocar admiração, lido com a vantagem de conhecermos o que se seguiu, está feito de esplendores a anunciar-se, pressentimentos ferozes, mas ainda não é a floração daquele “verbo arcaico indefectível cerrado” a que chegaria mais tarde. Há, de resto, passagens que ficam como notas para poemas que só tomarão a sua altura ideal depois de digerido o espanto de certas revelações ao longo de décadas, como se o poema contínuo estivesse ainda a aquecer, antes de ser capaz de afogar, de afundar até ao inferno as vozes que trazia em si. Por agora, ainda se mostra cheio dessas “obscenas figuras de retórica que são as descobertas da intimidade”. Há, assim, colapsos autobiográficos que rompem com a “distância dita transfiguração”, virtude que, como assinala Manuel de Freitas no extraordinário ensaio que dedicou a esta obra – “Uma espécie de crime” (&etc, 2001) –, “tão sabiamente caracteriza a obra poética de Herberto Helder”. Num balanço bastante severo para com os escolares que o precederam no estudo da obra, o crítico e poeta vai zurzindo uns e exaltando poucos, mas fá-lo de forma fundamentada, e defende que a tão lamentada falta de fortuna crítica de HH foi sendo suprida por testemunhos, frases ou até versos que, “no claro-escuro da paixão que as move”, provaram ser “mais penetrantes e duradouros do que intermináveis volumes de penosa dissecação”.
“Apresentação do Rosto” é uma obra assimétrica entre a restante produção do autor. Se Herberto gostava de deixar os livros arrefecerem na gaveta por uns anos antes de os publicar, muitas destas páginas ainda ardem e se consomem. Nelas surge-nos um meio corpo em cena, uma imperfeição reveladora, e que, experimentando os músculos da fala, nos deixa uma série de antecedentes para crimes que, posteriormente, viriam a adquirir outro vigor e exemplaridade. Não estamos a inventar… Isto pode ler-se: a ponderação de uma “uma autobiografia activa” que vai dando por si diante de “uma sufocante acumulação de crimes./ Uma soma de cadáveres”. E o autor nota que o fim da autobiografia é esse em que o autor dá por si “um cadáver ele mesmo, acto V, cena V”. Entretanto, se o autor se mostra descontente, das tantas frases citáveis, muitas soam-nos hoje como vozes em redor da obra, indicações de um encenador para dentro da cena, correcções, notas para os actores… Ou uma discussão na cabeça do autor, e isto a horas demasiado altas dessas noites que, por precaução, normalmente afogamos. Temos, portanto, uma primeira tentativa de construir o rosto, de apresentá-lo, e, como refere Freitas, “a haver, na aparente e convulsiva errância deste livro, um epicentro, este poderia muito bem ser ilustrado pelas palavras que nos dizem que ‘afinal a mãe estava morta’”. Se as mulheres, sejam as irmãs com a descoberta do sangue menstrual, ou as mais velhas, mães todas, o ensinam a sangrar, nessa forma de baptismo para a criação, esta é uma auto-biografia que toma balanço na infância (“Os meus oito anos são monstruosos”) e que vem trabalhando as memórias, afogando-as entre sonho e pesadelo, estendendo na corda ou nalgum ramo a roupa que permanece para sempre molhada, pingando, magoando. Avisando que não tenciona “ser demasiado claro a respeito de coisa alguma”, o autor fala-nos desde a sua “ilha em forma de cão sentado”, diz-nos que “as flores que devoram mel ficam negras em frente dos espelhos”, e expõe-nos a sua teoria a partir da casa que fez com tábuas arrancadas lá atrás como outras que vibram e sustêm todos os abalos sendo matéria de pura invenção: “Tenho uma teoria acerca desta casa./ Falsa, sim./ Mas está certa com o espírito de tudo, quero dizer: com as regras da memória./ A minha teoria é que os quartos esmagam os corredores./ Segundo as leis da memória, eles desenvolvem-se como seres vivos, e os corredores são apenas consentidos acessos, um pouco ambíguos, à inacessível alma dos quartos.” Assim, “Apresentação do Rosto” é o desenho complicado desses corredores, um mapa e uma projecção, é uma obra esmagada ferozmente habitada, e assombrada desde logo pela memória da mãe que o poeta procura atingir, e que vê sorrindo “na sua violenta mas imóvel força”. Também lá está “a avó completamente enigmática, e as irmãs e primas que, vou dizê-lo, são assim como cercadas de uma atmosfera de irrespirável beleza”. Ou seja, a visão já lá está, e um sentido que leva o autor a confessar: “Amo-as em pânico.” Mas depois ainda falta a ciência de trabalhar por entre toda essa desolação.
E se se disse já que este livro está cheio de sementes de assombro que virão a germinar ao longo da obra, daí a sua importância como projecto de um crime longamente premeditado, vale a pena assinalar como, nesta obra de 1968, aparece pela primeira vez o tão lido recorte de uma notícia de jornal, um que surge bem antes das tantas que Herberto recolheu em “Photomaton & Vox”, sinal de que o princípio de uma obra se prende com certos despertares, esse olhar que, diante do mundo, se enche de juízo, pois todo o fascínio leva a um excesso de consciência, abrindo, por sua vez, caminho a uma transformação. “Uma notícia de jornal: uma estátua em granito, com mais de 2 metros de altura e pesando meia tonelada, desequilibrou-se e tombou sobre o escultor que a tinha feito, esmagando-o.” Quarenta anos depois, em “A Faca Não Corta o Fogo”, Herberto recupera esta notícia de um insuportável grau de fusão biográfica, em que a vocação se confunde com um destino, de tal modo que a morte se inscreve na obra. E este é um reflexo à luz do qual o poeta cultivará o próprio rosto, trabalhando com o seu “sistema de cristalização” na oficina do outro, espiando-o para se descobrir a si mesmo. No livro de 2008, há um poema que começa com uma breve transcrição: “um dos módulos da peça caiu e esmagou-o contra um suporte de aço do atelier”. E depois já nos dá notícia da revelação que também ele encarnou: “arrancara a unhas frias dos testículos à boca,/ beltà beauty beauté,/ a áspera beleza amarrada pelo sangue (…) pôs-se a fazer uma coisa fora de moda, uma coisa animal,/ acerba,/ suada (…) e então ele, o escultor norte-americano Luis Jiménez, morreu/ esmagado pela sua obra:/ o jornal diz que durante dez anos trabalhou na mesma peça,/ um cavalo com dez metros de altura raptado ao caos, ligado/ pelo sangue sombrio,/ diz a notícia que ele amava as grandes dimensões das imagens,/ amava a fibra de vidro o ferro o aço e amava/ a energia das formas rápidas,/ a inoxidável radiação das formas,/ eu penso que ele meteu os dedos de cada mão até ambos os braços desaparecerem no mundo”.
Depois desta espantosa remastigação, somos levados a imaginar que outros poemas refeitos, aperfeiçoados, que deslocações sensíveis e amputações mais ou menos claras se seguiram. A partir daqui todo o levantamento poderá dar-nos novas pistas sobre esta maneira de trabalhar a candente matéria do fascínio. Nesta insistência exemplar, o poeta força a inspiração e o assombro a irem além de uma vénia frente a um público que haveria sempre de o trair, deixando-lhe a “solidão incólume”, antes trabalhando um susto que lhe acenda o rosto sempre que fale: “Gostaria de escrever o livro de que tenho medo”, confessa o autor. Como diz Michaux, aquilo de que os príncipes da noite se ocupam é de desenvolver a sua “glândula de estrelas”. Afastam-se dessa noite que não passa de uma “morte local”, para se dirigirem para algo que de tão negro possa servir como a sua “bola de cristal”. Porque o maior, o mais perfeito dos crimes, é viver-se “uma vida totalmente inventada”.
Para começar, também o olhar se treina, esse que debaixo das pálpebras de demasiada gente ainda se abre para ver “onde a luz viva se quebrava”. Quando Herberto nos diz que os poetas se arrogam do “direito de recomeçar o mundo”, está a dizer-nos o que o poema é. E como todo o ímpeto procura resgatar o mundo da confusão geral, repetindo “o acto iluminante do Génesis”. O poema quer virar Deus do avesso, isto é: encontrar um ritmo e as palavras, os recursos mínimos para ditar uma reforma pessoalíssima, mas com uma tal força e energia, uma grandeza tal que se mostra capaz de dispor o universo ao seu redor.
Neste livro, ao mesmo tempo que o autor nos fala de “um furor sensual (que) empurra à embriaguez, à alegria dramática – exigência de atingir depressa os limites”, e fala dos tempos que vacilou “entre diversas pistas, convencido de que o ardor me guiaria ao melhor lugar, quero dizer; à exaltação mais alta”, por outro lado reconhece a sua “irrisória medida pessoal: comida, urina, fezes, esperma, suor”. E sentimos que muitos destas frases não estão ainda maduras ao ponto de deixar cair, de toda a sua gestação, um resumido fruto capaz de rebentar com a boca de quem o coma. Por isso, reconhece o que foi ficando por aqui de “pequenos escritos de uma crueldade minuciosa mas lateral”.
No fundo, e voltando a Michaux, há um momento em que o que se impõe é romper consigo mesmo: “De um golpe vomitarei o meu miserável pudor”. Assim, não é que este livro tenha sido renegado simplesmente pelos excessos, pelas suas fragilidades, por conter alguns dos mais firmes apontamentos confessionais na obra do autor. O que vemos nele são bastantes passagens que não alcançam aquele grau de soberania que reconhecemos nas obras posteriores.
Aqui o autor surge-nos “bêbado de hesitação”, divagando pela casa, dissipando-se em passos, e se é capaz de traçar do homem mais outra “bela fábula também para apodrecer”, o teor alcoólico é bastante variável, a embriaguez que produz tal como o balanço entre inocência e crime não atingem aquele selvagem equilíbrio que se sente noutros textos, e isto até pela extensão deste livro, sendo que Herberto se considerava um autor de folhetos, ou seja, de actos que irrompem barbaramente, e tão cedo como surgem logo se retiram.
Mas a diferença que reclama também para este livro um papel exemplar está na sua supressão da bibliografia do autor (a qual só se tornaria definitiva em 1988), nesse esmerado recuo, longamente calculado. E não como quem, embalado num estupor qualquer, num ressentimento momentâneo, lhe pega fogo, faz desaparecer uns papéis, mas na firmeza de quem, regressando ao longo dos anos, como à cena de um crime imperfeito, parece recuperar as balas, e se esforça por dar vida à presa, convencido de que a sua morte poderia ter tido outro fascínio – mais curta, mais grave, provocando uma ondulação mais forte no próprio tecido da existência. E, assim, vai gravando em letras pequenas, fundas, uma espécie de bendição em cada uma das balas, para que esse acto adquira uma renovada graça, e isto no território tão degradado da criação, onde se encontram demasiadas valas e sepulturas para tão poucas mortes verdadeiras.
É isto que torna muitíssimo questionável a decisão da viúva, Olga Lima, de reeditar sem mais que uma pequena nota o texto original, corrigindo apenas lapsos e erros tipográficos assinalados pelo autor num exemplar de trabalho. Apenas cinco anos depois da morte de Herberto Helder, é evidente que já outros cálculos vingaram e a regra que passa a valer é de que se aproveite tudo, e se faça uma arca do que foi deixado pelo caminho. E, por isso mesmo, se torna imperativo reconhecer que o que de mais importante se deve retirar desta obra é a veemência ao deixá-la fora do corpus da sua obra, e isto ao ponto de arrancar-lhe alguns pedaços para os coser na carne de esforços melhores. A veemência deste gesto torna-se constitutiva da obra do autor, e é algo que, mesmo depois da sua morte, quando outros interesses acabam por sobrepor-se, precisa de ser ressalvado. Afinal, esta impiedosa forma de lidar com a obra, trabalhá-la com quem deseja ser esmagado por ela, diz-nos da enorme diferença que vai entre um autor absolutamente comprometido com aquilo que entrega aos leitores como “carne da sua carne” e tudo o que aí anda de carne podre devorada e trocada por necrófagos sem especial talento para matar sequer aquilo que comem, e que se identificam mais pela vaidade de virar as gavetas sobre os leitores, tentando afogá-los com os seus papéis.