por Daniela Soares Ferreira e Vítor Rainho
Data da publicação original: 20 de maio de 2019
Nasceu em Vila Franca…
Sim, nasci a 25 de março de 1936, numa época terrivelmente difícil. Todos os jovens aqui de Vila Franca queriam ser toureiros e eu não fugi a isso. Há uma palavra espanhola muito gira para definir esse fascínio: ‘fui inyectado con veneno’. Mas naquela altura todos os filhos tinham que trabalhar, ajudar a casa e eu era de uma família simples. Fui convidado duas ou três vezes para escolas de toureiros que havia em Lisboa e não podia ir porque tinha que chegar ao fim de semana e entregar o dinheiro de ajudante de canalizador na Câmara, onde comecei a trabalhar aos nove anos. A partir dos 15 anos fui chefe dos canalizadores, mas aos 17, 18 tornei-me toureiro profissional.
Um dos episódios que o marcou foi quando ia a uma corrida com o seu pai e alguém lhe ofereceu dinheiro pelos bilhetes.
Emociono-me quando falo nesse pormenor. O meu pai era campino e para fugir à vida dura de campino, empregou-se na Câmara, onde era muito popular. E havia um homem que, em todas as corridas, a troco de favores que o meu pai fazia – de montar ou desbastar o cavalo dele ou dar-lhe conselhos, porque era um homem com grande conhecimento de cavalos e touros – lhe dava um bilhete para todas as corridas. Havia muito movimento nessa altura na feira – lembro-me do cheiro do polvo seco assado nas ruas -, com aquelas mulherzinhas que vinham de Lisboa, as bandas de música, aquilo era uma excitação fantástica numa criança. A praça estava esgotada já há dois dias, e quando viram o meu pai com o bilhete na mão ofereceram-lhe diversas importâncias. Até que chegou uma importância que dava para alimentar a minha casa de seis pessoas durante um mês: cento e tal escudos. Mas levava a sua mão direita na minha mão esquerda e houve uma transmissão da minha mão com a dele. Senti que ele pensou: ‘Não, nem por dinheiro nenhum eu não vou a esta corrida e levo o meu filho comigo’. Hoje tenho 83 anos e lembro-me perfeitamente como se fosse ontem. Estou convicto que ele tinha vendido o bilhete se eu não fosse com ele.
E é nesse momento que entende que vai ser toureiro?
Sim. Foi esse e foi diante de um cartaz que eu vi às oito da manhã quando saí para a escola, também com seis, sete anos, em que vi duas figuras de dois toureiros em colorido e babei-me ali à frente do cartaz. Foram esses dois momentos em que levei o tal veneno, no bom sentido, de querer ser toureiro.
Como é que aos 17 anos se torna toureiro profissional?
Entrei em muitos espetáculos públicos como amador. E então começaram a ver que eu tinha condições. Eu fazia tudo.
Como treinava?
Com os daqui da terra, já mais velhos, homens feitos, que, julgava eu, eram figuras. Eram amadores, mas aprendi muito com eles e eram eles que me levavam ao campo, às chamadas tentas. É preciso tourear as vacas para ver se têm condições para serem mães ou não de touros bravos. Toureamos 100 vacas. Há 30 ou 40% que tem condições de bravura para serem mães dos touros. As outras de menor categoria vão para o talho. E depois temos que selecionar seis, sete ou dez touros sementais, que já foram selecionados pela sua bravura, que são os reprodutores. Tudo isso é sempre feito quase em segredo. São os toureiros, o ganadeiro e mais um ou dois convidados. Sabíamos através de um campino e aparecíamos lá. Andávamos 10, 20, 30, 40 quilómetros a pé para ver a tenta e para que nos dessem uma oportunidade. Tudo aquilo era uma aprendizagem com muito sacrifício, com muita dureza. Nalguns casos éramos mal recebidos.
Levou muita marrada?
Levei muitas voltaretas e, na espera de touros, muito mais. São touros já feitos e toureados, sabem mais que nós. E aí sim, há dureza.
Mas os touros depois de serem toureados voltavam a ser toureados?
Muitos sim, mas não numa praça de touros. Eram toureados em espera de touros e espetáculos menores, as chamadas garraiadas.
Falou em ser mal visto. O que era ser mal visto?
Éramos chamados os ‘maletillas’, os que queriam ser toureiros mas não tinham meios. Éramos considerados menores. Entrávamos nas propriedades sem autorização. Havia muitas ganadarias que já nos conheciam e nos recebiam. Mas havia outras onde iam convidados espanhóis, e não éramos bem vistos porque ali só queriam toureiros consagrados. Da primeira vez que fui a uma tenta, saí às seis para chegar lá às dez da manhã. Depois de 20 quilómetros a pé tive que andar quatro quilómetros dentro da propriedade. Éramos cinco ou seis e quando lá chegámos havia grandes figuras mundiais e o responsável disse: “maletillas fuera”, em espanhol. Fomos expulsos, chorei nessa caminhada. Tinha 12 anos e disse: “Um dia vou entrar nesta ganadaria pela porta grande”. E a verdade é que, anos depois, fui convidado pela condessa de Sobral, que era a dona, para ser o responsável pela seleção de toda a ganadaria. Estive 27 anos a selecionar as futuras mães.
Então com 17 anos, qual é a sua grande corrida como profissional?
A minha primeira grande corrida foi alternativa. Houve uma prova de praticante – para passar de amador a profissional, naquela época tínhamos que levar o touro, o padrinho de alternativa e mais um ajudante profissional. E nós é que pagávamos tudo. Toureávamos o touro com o capote, bandarilhávamos e depois havia 10 elementos no júri que punham o ok. E assim foi.
Como é que teve dinheiro?
Não tinha. Pedia aos ganadeiros. Fui ter com o Júlio Borba, que é meu amigo aqui de Vila Franca. Quando havia alguma festa, para entreter os seus convidados, eu ia lá tourear umas vacas e pedi-lhe um touro. Um touro meio de casta espanhola, meio de casta portuguesa. São mais difíceis de tourear. Então tive que prestar provas em Vila Franca, em 1955, perante a praça cheia e o touro não se prestou mas eu estive bem. Ao primeiro par de bandarilhas mete-me o piton na boca e partiu-me três ou quatro dentes. Havia os bandarilheiros mais idosos a quem não convinha que aparecessem os jovens, já que era um posto que ocupavam deles. Mas o júri foi unânime e passei automaticamente a bandarilheiro.
E começa aí uma vida que se traduz em quê?
Comecei nesse ano e até 1960 ganhei todos os prémios que estavam em disputa do melhor bandarilheiro de Portugal.
E quanto ganhava nessa altura?
Um conto e quinhentos. Ganhava 300 escudos de praticante mas depois passava-se a profissional e começava-se a ganhar um pouco mais.
Há uma corrida célebre que estava a Amália Rodrigues a ver.
Foi logo no princípio, na Nazaré. Aquilo estava anunciado como uma vacada, mas naquela altura anunciavam uma vacada e punham touros. E era obrigatório pôr três profissionais – eu ainda era amador – mas os profissionais não se punham à frente dos touros, serviam só para que houvesse uma licença para o espetáculo. Os miúdos amadores que queriam ser toureiros é que iam tourear. Chego lá e havia mais quatro miúdos, um deles de Santarém que mais tarde foi até crítico taurino. E qual não é o meu espanto quando fico sozinho com esse de Santarém. Mas assim que saiu o primeiro touro já nem o de Santarém lá estava. A praça estava cheia, os pescadores na altura iam àqueles espetáculos menores e estavam todos contentes. Eu tinha que dar espetáculo. Corria à frente do touro, e ao chegar à teia punha um pé no estribo, outro em cima da teia. Formando um salto, passo por cima do callejón e fico sentado em cima da barreira, mesmo encostado ao lugar onde estava a Amália Rodrigues. Foi quando ela diz: “Este rapaz é um diabo”. Com o dinheiro que ganhei comi seis doses de lulas e comprei um terço de prata dourada em filigrana, para a minha mãe.
Quando começa a tourear lá fora?
Muito cedo. Começo como praticante a bandarilheiro logo em 1956, em Espanha e aí vejo a diferença entre o ambiente de lá e o nosso. Lá tocava-me muito mais, havia mais emoção e continuei com os meus compromissos familiares, alimentado também com os prémios que recebia.
Que compromissos eram esses?
Era o dinheiro de todas as semanas que continuava a dar aos pais. Comecei a comprar fatos, capotes e o que era necessário. Mas a maior parte do dinheiro era sempre para a família. Costumo dizer que na minha vida abriram-se as fronteiras e as portas. Estava habituado a casas de terra batida e passei a frequentar palácios e hotéis de cinco estrelas.
Como se passa das casas de terra batida para os palácios?
É evidente que, acima de tudo, com muito trabalho e uma ânsia de triunfo, de aprender. Eu tirei a quarta classe. Tirar a quarta classe era importantíssimo porque já se podia ser empregado de escritório, empregado de comércio, muita coisa. Mas a maior riqueza é a aprendizagem social com as pessoas. Aprendi muito com as pessoas e bebia tudo o que diziam e, acima de tudo, quando tinha respeito, admiração e humildade. Deus deu-me orgulho, deu-me vaidade e ambição mas também humildade para pôr a balança no nível. Fui para Espanha e começaram os êxitos. Os espanhóis – naquela época mais – tinham um certo respeito pelo touro. E não faziam coisas que muitas vezes acarretavam mais perigo. E eu, habituado à dureza do touro aqui, da espera de touros, dos festivais, do andar em praças de segunda, terceira e quarta categoria, deu-me conhecimento e atrevimento sobre o touro. Quando cheguei a Espanha comecei a fazer coisas que eles não faziam. Eu ia ao touro. Ou deixava que o touro viesse, chamava-o. E comecei a ter os tais êxitos. É evidente que um português que estivesse em Espanha tinha muitas dificuldades. Mas depois vem a parte social. Começa a haver aberturas, convites, surgem muitas amizades, encontros espontâneos.
Como é que o toureiro, no seu caso bandarilheiro, era visto nessa sociedade mais elitista?
O bandarilheiro toda a vida foi um subalterno. Não vejam as minhas palavras como vaidade mas foi o que sucedeu: fui um bandarilheiro que foi para Espanha e, caso único na tauromaquia mundial, comecei a sair a ombros. Houve um ano que saí cinco vezes a ombros nas feiras principais de Espanha. Isso era um escândalo para os meus colegas e os matadores não gostavam que um subalterno saísse a ombros. Daí haver muitos convites.
Que tipo de convites?
Por exemplo, o Pablo Picasso. Estávamos no mesmo hotel, íamos ao bar do hotel, eu convivia com os toureiros todos. E então cumprimentei-o no bar. Da parte da tarde houve corrida e fui bandarilhar um touro. Nós, os bandarilheiros, não devemos por respeito e por ética, brindar. Nem podemos tirar a montera se não for o público a dar uma ovação. Nessa corrida fui eu e um rapaz que era de Jerez de La Frontera, Juan Romero, e fomos bandarilhar um touro. Como não podíamos tirar a montera, passámos. Ele [Picasso] estava na barreira e nós cá dentro junto à teia. Quando regressámos houve uma ovação. Viemos para a teia e ele chamou-nos. A esse Juan Romero deu-lhe uma caneta em ouro e a mim deu-me um bilhete que havia em França, que eram alongados, e, nas costas do bilhete, fez uma figura de um bandarilheiro a pôr um par de bandarilhas. Ele fez o desenho durante a corrida. Não tenho o desenho porque dei-o a um homem que morreu dois anos depois. Segundo os filhos, e eu acredito plenamente, não encontraram o desenho. O que é certo é que eu acompanhei durante anos diversas exposições do Picasso em Espanha e até em França e esse desenho nunca apareceu.
Pegou no desenho e mandou fazer o fato, que haveria de emprestar anos mais tarde e que nunca o devolveram.
Isto foi um bandarilheiro aqui de Vila Franca. Vendeu-o, veja lá, por 20 contos. Entretanto, a Câmara de Vila Franca de Xira fez uma exposição e fui à procura da pessoa que tinha comprado o fato, o senhor Tavares, e perguntei-lhe se ele me vendia o fato. Ou então ele vinha aqui a casa e escolhia um dos 14 ou 15 fatos que eu tinha, porque aquele fato representava muito para mim. E ele muito sério disse que só me emprestava o fato para a exposição com um seguro e com o compromisso de lhe devolver o fato porque ele sabia o valor que o fato tem. Disse-me até que já tinha dado o fato à filha, que trabalha na televisão. O tipo não me vendeu o fato, não falei mais com ele e passado pouco tempo vi-o na net à venda. Foi a leilão e alguém me disse que chegou aos 40 mil euros mas mesmo assim ele não o vendeu.
Chegou a encontrar o Picasso mais vezes?
Sim. Nessa corrida, em Arles, no sul de França, convidou-me para ir no dia seguinte almoçar a uma terra perto de Camarga, onde ele passava pequenas temporadas. Tinha um chalé, um jardim e uma pequena garagem onde tinha um cavalete onde pintava de vez em quando. Convidou-nos para almoçar, a mim e ao Juan Romero, no jardim, e havia uma quantidade de amigos à mesa. Pôs-me ao lado direito dele e de um momento para o outro há uma discussão. ‘O gallego isto, o gallego aquilo’ e houve alguém na mesa que lhe disse que não era bem assim. E foi aí que eu vi um homem que era sociável, com as veias bem salientes, zangadíssimo com o Paquito e com o gallego. E só no final, veja bem a minha pouca experiência política, é que me dei conta que o Paquito e o gallego eram o generalíssimo Franco, que ele odiava. Aquela discussão quebrou um bocadinho o ambiente ali à mesa e então o Picasso chama o Juan Romero para irmos tomar um copo na tal garagem/atelier. Pediu à empregada que levasse um jarro de vinho e três copos, mas ela enganou-se e levou um jarro de sangria. Ele zangou-se e ela foi buscar o vinho. Serviu-nos aos dois convenientemente, até meio e encheu o dele – e o copo era grande. Estranhei aqueles modos, mas às tantas percebi o porquê. Punha o dedo no copo, dando em seguida umas passagens suaves na pintura daquela pequena tela, deixando uma mancha arroxeada, soberba, que completou e engrandeceu a pintura já feita.
E como é que começa a entrar nesse meio?
Eu ia muito a Madrid. Depois fui contratado como bandarilheiro para fazer 20 corridas exclusivas em Madrid e toureava quase todos os domingos.
Ganhava muito dinheiro?
Sim. Nessa altura, a tabela dos bandarilheiros de primeira eram cinco mil e quinhentas pesetas. E a praça de touros de Madrid dava-me 20 mil pesetas por cada corrida. E porquê? Porque em algumas corridas bandarilhei os seis touros. Isso ajudou ainda mais a minha caminhada como bandarilheiro, como subalterno, e aproximava-se toda essa gente boa.
Com essa entrada num mundo diferente, não sentiu necessidade de ler para saber mais?
Senti. Há uma frase famosa que é: “queres a tua riqueza, procura uma biblioteca”. E tenho talvez a melhor biblioteca de Vila Franca. Um miúdo de quarta classe, andando nesse ambiente, é obrigatório evoluir, ainda que seja à nossa própria conta, sem professores. A conviver com essa gente, tem que se saber pelo menos o ABC a nível de cultura geral. Porque não tenho pejo em dizer que, com a idade que tenho, não atingi um grau cultural que tinha o Hemingway ou o Orson Welles ou até o próprio Picasso, mas convivi com eles.
E as línguas?
Falava muito espanhol. O meu inglês era só quando dava com um martelo num dedo. Todos eles sabiam espanhol. A que sabia menos era a Ava Gardner que misturava o inglês. Mas sempre me defendi muito bem com eles. E quando havia, também tinha a minha conversa em inglês, muito reduzido. Mas sempre me fiz entender perfeitamente.
Voltando ao Picasso.
Ele era um homem de grande temperamento. Uma personalidade forte. Eu defini-o naquele almoço. Como é que um homem pode estar calmo e em dois ou três segundos põe-se na máxima temperatura, agressivo até? Parecia um touro. Estive mais duas ou três vezes com ele e a última vez foi quando ele fez 80 anos. Vi-o já completamente diferente, um homem abatido fisicamente.
Nessa altura era um homem muito assediado, rodeado de mulheres?
Sem dúvida. Era mais um sedutor do que um galã.
E é aí que conhece a Ava Gardner.
Ela falava espanhol com uma pronuncia americanizada. Mas entendíamo-nos perfeitamente. Conheci-a numa corrida de touros em Alcalá de Henares. Ela tinha o costume de entrar na corrida depois de começar e sair antes de acabar. E quando ela chegou, muito bela, olhei para trás e ela estava ali sobre o meu ombro, a quatro cinco metros de distância. Olhei três ou quatro vezes para a senhora. Com 20 e tal anos é normal que tenha olhado com um ar sedutor. Voltei a encontrá-la numa receção na embaixada dos Estados Unidos em Madrid. Estava também o Orson Welles. Ela estava sentada, depois do pica-pica, a beber uma bebida. Fui buscar uma e sentei-me ao lado dela. Estivemos ali muitas horas. E depois começámos a sair. Ela não gostava do sol, o dia para ela era um inferno. Era feliz de noite. Íamos a restaurantes ou ao bar do Ritz, sempre à noite. Não me lembro de alguma vez ter almoçado com ela. Havia um restaurante muito famoso com uma esplanada e as pessoas estavam ali até às três da manhã. E nós andávamos aí, ela com boné, óculos e ninguém deu por ela. E fazíamos umas corridinhas em volta do estádio Chamartín às duas, três da manhã. Tinha coisas fantásticas. Aquela mulher nunca foi feliz verdadeiramente. Descalçava-se.
No meio da rua?
Na rua! Uma vez descalçou-se e tinha uma meia castanha e outra encarnada. Levava os sapatos na mão e andávamos ali. Era tudo assim meio amalucado.
Mas há a história do carro.
Essa é uma história interessante. Havia um restaurante muito pequeno onde se comia muito bem e tinham confiança comigo. Era por aí umas onze da noite, já tarde, e ela pediu uma feijoada. Depois fomos andando, e há um stand do nosso lado esquerdo onde estava um carro que já cá havia, que era da Volkswagen, o Karmann-Ghia, um carro descapotável, muito giro. E aquele era branco, com estofos grenás, em cabedal, muito bonito. E eu disse: ‘Epá, que carro tão bonito’. Aquele era o único que tinha chegado a Espanha. Já aqui havia. Os alentejanos que tinham cortiça, naquela época, quando recebiam o dinheiro da cortiça, recebiam uma quantidade de massa. E todos eles tinham, em Lisboa, a sua namorada. Normalmente eram as manicures ou as discípulas das revistas. E três ou quatro delas tinham um Karmann-Ghia, que dizia-se que era o carro das meninas de noite. Depois desse jantar, eu levei daqui uma caravela em filigrana. Aquilo devia ser na altura de Natal. Eu lembro-me que ela, em casa dela, recebeu uma chamada que era da irmã Beatrice, que estava em Nova Iorque. E essa irmã pedia-lhe muito dinheiro porque tinha dificuldades. A Ava Gardner zangou-se muito com ela ao telefone. E não ficou nada satisfeita. Fomos de carro, para o hotel e ali já tinha acalmado um pouco mais. Jantámos, eu dei-lhe a caravela e ela puxa-me de um envelope com a documentação e a chave do carro. Eu, miúdo, disse que não queria nada daquilo. Podia ter resolvido aquilo de outra maneira. E ela, que já não vinha bem com o telefonema da irmã, deixou a chave, deixou a documentação do carro, deixou tudo e ao levantar-se bateu com os joelhos na mesa e a garrafa de champanhe caiu e os copos. Aquilo fez muito barulho e toda a sociedade conservadora de Madrid estava ali. Fiquei francamente muito aflito, a apanhar as coisas do chão e quando cheguei ao elevador já ela lá não estava. Isto é uma história simples. Eu tinha um apartamento em Atocha e no dia seguinte não houve conversa nenhuma. Dois dias depois telefonou-me e a senhora do apartamento disse que eu não estava. Telefonou a segunda vez e eu não estava. Estava armado em macho. Depois já era a Maria, que era a governanta que andou com ela 20 e tal anos, que telefonava para a senhora e a senhora dizia sempre que eu não estava, que tinha ido para Portugal. Desculpas. Ela tinha um apartamento em Londres, agarrou na Maria e foi para Londres viver. Essa Maria ainda me telefonou uma vez, de Londres, e eu não atendi. Já andava noutra, com certeza. Anos mais tarde, já no final de carreira, fui tourear à Califórnia. E fui convidado por um jornalista de uma rádio. Ele tinha-me dito antes que ia haver uma surpresa e o que é certo é que a meio das perguntas e respostas que vinham de fora ouço a Ava Gardner ao telefone já com um castelhano muito mais difícil. Eu perguntei-lhe: ‘Ainda fazes as tuas corridinhas?’ e há um silêncio do lado de lá. Depois disse-me: ‘Ó Mário, eu já não posso andar’. Perguntei onde estava e ela disse que estava numa clínica em Santa Bárbara. Eu estava a 150 quilómetros, pertíssimo. Ainda pensei vagamente que ia lá vê-la mas nessas alturas temos muitos compromissos e não fui. Acabei as quatro ou cinco corridas que ainda tinha na Califórnia e venho-me embora. Tinha ali uma casa na João XXI, esquina com a Avenida de Roma e um dia saio e vejo no quiosque a Hola com uma fotografia dela na primeira página: “Morreu Ava Gardner”.
Como é que conhece o Hemingway?
O Antonio Ordoñez era amigo do Hemingway. Eu toureei perto de Pamplona e o Antonio Ordoñez perguntou-me se eu não me importava de acompanhar o Hemingway para Madrid. Sabendo eu quem era o Hemingway, não fiquei muito entusiasmado. Em Espanha, naquela altura não havia autoestradas, os carros eram muito maus. Aquilo não passava dos 80, 90 mas era giríssimo porque eu, jovem, normalmente, viajava com aqueles bandarilheiros e aqueles picadores típicos, com as suas anedotas e a sua linguagem e divertia-me imenso com eles, fartava-me de rir. Mesmo com o carro cheio de fumo de tabaco – e eu nunca fumei – preferia ter ido com eles. Mas como o Antonio Ordoñez me disse para acompanhar o Hemingway, lá fui eu. Fui buscar o Hemingway à porta do hotel às dez da manhã. Ele vinha com um casal, também americanos, que eram para ficar em Burgos. A viagem, mesmo sem autoestrada, de Pamplona a Madrid são seis horas. Nós levámos cinco ou seis dias.
Porquê?
A primeira parte foi quando ele deixou o casal e disse que na altura da Guerra Civil de Espanha havia uma tasca de um amigo dele onde se comia muito bem e tínhamos de ir à procura da tasca. Mas ele já não se lembrava nem do nome da tasca nem do nome do amigo, e andámos para um lado e para o outro. Havia ali 50 tascas antigas. Já estávamos desanimados mas ele não tinha pressa. Não usava horas. Naqueles seis dias não olhou uma única vez para o relógio nem quis saber. E então, entrámos numa rua estreitinha e havia uma mesa que ainda estava molhada e com o sabão a cheirar a potassa. A porta estava semi-aberta e ele disse ‘é aqui’. Empurrou e veja bem o espanto, que o amigo dele da Guerra Civil de Espanha ainda era vivo. Quando abriu o homem conheceu-o logo e deram um abraço. Ali estivemos uma quantidade de tempo, perdeu-se a noção das horas, comia-se e bebia-se. Lembro-me que ele pediu um chouriço que o amigo tinha escondido na Guerra Civil de Espanha. Ele bebia muito mas era um homem que aguentava. Não ficava com mau feitio mas dava-lhe sono. Quando se metia no carro, adormecia. Meia hora, uma hora. Mas esse convívio com o tasqueiro foi giríssimo.
Ele tem uma célebre frase para si.
Depois fomos a Valladolid porque ele tinha deixado a espingarda lá do tempo da Guerra Civil de Espanha, uma espingarda de caçar. Meteu na cabeça que a espingarda já estava arranjada. É evidente que no local do homem das armas já havia um prédio novo. Enquanto em Valladolid e Burgos o conheceram na rua, ali ninguém o conheceu. Nessa aldeia ele fez um telefonema para uma revista americana, Life, porque ele tinha que entregar um artigo mas como não tinha noção do tempo, o artigo não foi. E penso que nesse telefonema, eu estava relativamente perto e percebi que eles não estavam contentes porque havia o espaço para preencher. Aí houve uma exaltação do Hemingway. Metemo-nos nos carro foi quando ele teve essa frase: “Como é que esta gente não entende que eu só escrevo quando tenho talento, quando tenho vontade de escrever? Isto não pode ser assim como eles querem”. E passado uns minutos disse-me: “Eu dava tudo para pôr um par de bandarilhas como tu”, e eu disse-lhe o que me veio à cabeça: “E eu dava tudo para escrever uma página como o senhor escreve’.
Conheceu também o Orson Welles. Como?
Na embaixada americana em Madrid não falei com ele. Encontrei-o na feira de Zamora e aí falei com ele. Depois estive com ele passados uns meses, num restaurante famoso junto à Praça Mayor de Madrid. E aí estivemos um bom bocado. Eu estava com uma amiga minha que era bailarina de flamengo, ele estava com uns senhores idosos.
O Mário nessa altura tinha sucesso com as mulheres.
Tenho mais amigas que amigos. Sinto-me muito melhor com uma mulher do que com um homem. E também fui um charmoso. Nunca um conquistador, esse selo não tive. Era extremamente tímido. Elas faziam o seu papel e depois comecei a ser descarado porque me davam campo e eu naquela altura, como se calhar ainda hoje, numa conversação qualquer sou mais descarado ou mais atrevido, no bom sentido da palavra, com uma pessoa estrangeira do que com um nacional.
E não tem mais nenhuma relação com o Orson Welles?
Ele assistiu a uma corrida em Zamora em que toureei seis touros e que foi um êxito, e ele meteu na cabeça que nós devíamos festejar esse êxito não em Zamora mas em Madrid. E de Zamora telefonou para o Clube 41, que era o melhor que havia, e marcou a mesa onde ele comia sempre para a meia-noite. De todos eles, o homem que sabia mais de touros era o Orson Welles. Mais do que próprio Hemingway e o Picasso. O Hemingway achava que sabia mais do que aquilo que sabia. O Orson Welles era um estudioso e gostava de ter sido picador de touros. Quando chegou ao Clube 41, a mesa dele estava ocupada. Vem o gerente e diz que houve um equívoco, prometeu que resolvia o assunto e passou-lhe a mão pelo ombro. Ele dá um soco na mão do homem e diz: “Você não tem amizade comigo para o fazer, nunca mais faça isso”. Foi um escândalo, aquilo estava cheio. E aí vi também o temperamento. Sendo um homem extremamente risonho, curioso, muito simpático, foi a única vez que eu vi a outra face da moeda do Orson Welles. Mais: com vontade de dar um soco no homem. Imaginem o que era um soco do Orson Welles num tipo daqueles com 1,60 metros.
E chegaram a jantar?
Tiraram as pessoas da mesa. Depois eram uma três da manhã e o Orson Welles disse: “Agora não saímos daqui antes das oito da manhã. Estes gajos têm que ficar aqui toda a noite”.
E ficaram?
Ficámos. Bebemos, comemos. Depois telefonou-se para o Andre Vasques que trouxe um grupo de flamengo.
O Mário não gostava de andar à pancada?
Nunca fui homem de conflito.
O mundo dos touros está ligado à pancadaria e à desordem.
Isso são os forcados. Isso é outra cultura, outra tauromaquia. Eu digo isto e eles não gostam. O homem é diferente do touro. O touro é valente quando está sozinho mas quando está em manada é dócil, indiferente, nobre. O homem é diferente. Quando está sozinho ‘nai-nai’, quando está acompanhado é valente como o caraças. E os forcados são assim. Quando estão em grupos, os forcados que entram aí numa tasca, num restaurante e partem tudo. Parecem-se como as claques do Benfica, Porto e Sporting. Mas quando estão sozinhos não valem nada.
Também conheceu Audrey Hepburn?
Muito, muito bem. Era uma mulher bonita. Uma senhora. Era baronesa. De uma educação extrema, uma sensibilidade fantástica. De uma educação que aquilo parecia cristal. A conversação dela embebia-nos. Era uma mulher muito doce, de palavras doces e uma elegância fantástica. Eu conheci-a bem. Não me pergunte mais porque são todas minhas amigas.
Também conheceu bem o Mário Cantinflas.
Tive um convívio com ele no México, toureei touros da sua ganadaria.
Era rapaziada que tinha um lado boémio, que gostava muito de comer e de beber.
O Cantinflas não. O que ele gostava era de música. Era um louco por música, tudo o que era mariachi, era um homem fantástico. Completamente diferente da imagem que nós tínhamos dele do cinema. Era um senhor que afastava as pessoas, era amigo de quem ele entendia ser amigo. Era um intelectual, um homem de uma grande cultura. Lembro-me uma vez em que toureei uma corrida dele e a corrida saiu muito má. Estávamos à porta de um hotel que ele tinha em San Miguel de Allende. E ele diz-me: “Vem você de tão longe para eu lhe apresentar uns touros tão maus. Você acha que os touros se parecen a sus amos? É um termo taurino que é muito recorrente dizer-se que os touros parecem os seus donos. E é verdade. Há muitas ganadarias em que os touros parecem os donos. E eu disse que não, que ele era um homem querido.
Porque que teve a tentação de ir para matador? Dizem que teve mais sucesso como bandarilheiro do que matador. Sente isso?
Evidente e isso é verdade. Não fui o melhor do mundo como matador de touros mas fui dos melhores que havia na época. E continuei a ser o melhor matador que bandarilhava no mundo. Isso é que eu não passei a coroa a ninguém.
Porque era o melhor bandarilheiro do mundo?
Bandarilhava bem mas também toureava muito bem de capote. Havia uma lide que hoje já não se faz em que o bandarilheiro saía antes do matador para receber o touro. E aí, no primeiro estado do touro, é muito mais difícil porque não sabemos como é que o touro investe. O touro nunca fez aquilo. Nós, com o capote, é que temos que ensinar. E aí eu era um descarado.
Mas os touros não são treinados antes?
Nunca, não podem. Se os touros são treinados já não se podem tourear. O touro só se pode tourear uma vez. Quanto a ser melhor bandarilheiro que matador, eu ouço isso através dos anos, há amigos meus que dizem que de bandarilheiro era o melhor do mundo e depois fui para matador de touros. Eu de bandarilheiro estive 11 anos e de matador de touros estive 23 e tive pena de não ter tomado a alternativa mais cedo. Não tem nada a ver ser matador de touros e ser bandarilheiro. Com todo o respeito que eu tinha pela minha profissão antes.
Até porque acumulava as duas.
Sim, absolutamente. O Carlos Arruza, que foi o maior bandarilheiro do México e da sua época, foi um homem que morreu com a amargura de lhe dizerem muitas vezes que ele era muito bom bandarilheiro.
O primeiro touro que matou, treinou antes?
Aí sim. Isso tem que se treinar. Tem que se treinar muitos touros porque veja bem o que é um bandarilheiro, com um capote, é uma lide. É em movimento. Nós templamos e mandamos mas em movimento, com as pernas em movimento. É a nossa missão. Se o touro está ali e o matador quer que se meta o touro aqui, vamos lá com o capote e pomos o touro aqui. O tourear do matador de touros já é diferente. Tem que se ter os três tempos: parar, templar e mandar. Que é muito mais difícil. E se se leva nove anos de bandarilheiro em pleno movimento, de repente, de um dia para o outro, tem que se ficar parado. É muito difícil. São muitos anos em movimento. Normalmente um matador de touros tem quatro ou cinco anos de novilheiro. Vai ganhando conhecimento, técnica, para depois chegar ao doutoramento. Eu não. Eu saí de uma categoria de subalterno e tive um mês a treinar no campo, toureei uns quantos touros, matei uns quantos touros, bandarilhei mas mesmo assim não era o suficiente. Então quando os outros levam cinco anos, eu num mês tinha mais dificuldade. E anunciei-me de novilheiro em Espanha. E em mês e meio, toureei 11 ou 12 novilhadas e mentalizei-me: ‘Mário, acima de tudo tens de estar parado’. E como disse há pouco, era difícil. E muitas vezes o touro agarrava-me. Como agarrou umas quantas vezes.
Foi colhido muitas vezes?
Fui.
Teve alguma lesão muito grave?
Tive. A femoral partida. Tenho uma veia femoral em plástico, o pulmão perfurado, os intestinos perfurados, uma perna furada em três lados de lado a lado.
Mas olhando para si não parece nada.
Isto é tudo mental. O valor, a valentia, a coragem. Nós não empregamos coragem, empregamos sempre o valor, que é chegar a um momento da nossa vida e pensar num toureiro que tem duas coisas suas: a cabeça e o coração. O restante corpo é plástico e pertence ao touro. Porque aquele animal que está ali, que é um adversário extraordinário que nós admiramos e chegamos a amar, mesmo que nos provoque uma ferida grave, nós nunca temos uma palavra em desconsideração para o nosso adversário. Não é nosso inimigo, é nosso adversário. E se esse touro nos dá o mundo, êxitos, triunfos, cultura e até nos dá dinheiro, nós temos que aceitar muito naturalmente as colhidas. Com 83 anos que levo, nunca vi um colega meu que desconsiderasse ou criticasse um touro que lhe provocou uma ferida grave ou até a morte.
Então qual é a sua primeira corrida como matador?
A primeira corrida como matador de novilhos é em Cartagena. E digo que tudo aquilo foi muito estranho para mim mesmo sendo um homem já com um certo conhecimento. Já levava 400 corridas em Espanha. Julgava eu que já não tinha segredo e cheguei e é interessante ver que a praça está cheia para me ver e eu era o motivo de atração daquela gente. Cai uma responsabilidade e eu nesse dia saí do hotel, fiz a barba e quando cheguei outra vez ao hotel 2h30 depois tive que fazer a barba outra vez.
Que idade tinha quando passou a matador?
Já tinha 20 e tal anos, já era um homem. Fiz 11 novilhadas, fui a Madrid duas vezes, a Zamora, a Jerez de la Frontera…
Cortou orelhas e rabos?
Todas menos uma. Menos a de Madrid. Cortei orelhas em todas e rabo em três. Significa o êxito. Se estamos bem cortamos uma orelha, se estamos muito bem cortamos as duas. Se estamos excecional cortamos as duas e o rabo. Em Sevilha tem que se cortar três orelhas senão não saímos pela porta principal. Saímos por uma outra porta.
Três orelhas?
Dos dois touros. Duas num e uma noutro. Em Sevilha, se se cortam só duas orelhas, saímos pela porta de trás. Porque a porta principal é só para quem corta três orelhas. Sabem que o camarote da praça de Sevilha, uma obra fantástica, toda em pedra, foi feita por um arquiteto português?
Qual foi a sensação da primeira vez que matou um novilho?
Já levava meia prática no campo. O touro sabe que vai ser morto. O touro é um animal que é tratado como nenhum outro animal do mundo, as melhores pastagens, a melhor água, assistência médica, e isso é extraordinário. Ninguém toca, ninguém lhe faz nada. O animal vai para a praça de touros e sabe perfeitamente que vai morrer. Quando o touro é tão bravo, tão bom, o público põe-se com lenços brancos a pedir indulto. E o presidente tem que indultar ou não. Depende depois do critério do presidente da corrida. É muito bonito. O touro dá uma lide fantástica, dá glória ao toureiro e de repente o público em pé com lenços brancos a pedir indulto. Esse touro depois é curado, vai para a ganadaria e depois tem um harém de 50 vacas para reproduzir.
Penso ter dito que os touros em Portugal quando acaba uma corrida ficam 24 horas a sofrer com febre e depois é que são mortos.
É uma verdade. A maioria delas em Portugal são assim. E as pessoas que são contra os touros de morte estão completamente equivocadas, com falta de conhecimento. O touro é um animal que tem tanto temperamento, raça e bravura que tem que sangrar aquela parte do picador que a nós portugueses tanta confusão faz. O picador pica para que haja uma sangria nesse animal. O animal tem que ter uma sangria de 7% do seu próprio sangue. Se não sofre. Desde a Idade Média que os homens que tinham problemas cardíacos iam ao barbeiro e o barbeiro fazia uma sangria (cortava uma veia) Porquê? Quando tinham aqueles ataques de raiva, ódio, fazia-se sangria aos homens. Agora veja bem o que é um animal que através dos séculos é selecionado cada vez mais para ter cada vez mais bravura, mais temperamento, mais raça, e ser mais assassino.
Quantos touros é que matou, tem ideia?
Entre os que matei e os que não matei, aqui em Portugal, em Moçambique, Angola, toureei 3000 toiros.
Como matador?
Como matador matei aí 900 toiros.
Os outros 2000 é porque a corrida correu mal?
É porque não se mata. Em Portugal não se mata. Toureei muito nos Açores, Madeira, Moçambique, onde não se mata.
Mas em Espanha, Venezuela, mata.
Sim e no México, Venezuela, Equador, Peru.
Foi nesses países que atuou mais como matador ou em Espanha?
Como bandarilheiro foi mais em Espanha, como matador na América do Sul e Central, no México.
Matou alguns dos toiros que vemos aqui?
Matei todos estes. Matei este no México e este na Venezuela. É interessante que este toiro, estou a olhar para ele, esta corrida estava na praça de toiros e eram seis toiros, três matadores. Não, havia sete toiros, um sobressalente. E há dois toiros que se matam a lutar, nos curros. Então só havia cinco toiros. As distancias no México são muito grandes e a ganadaria mais perto estava a 100km. Foi uma camioneta, com a autoridade, a essa ganadaria a ver se havia um toiro, mas o homem já tinha vendido todos os toiros e só tinha lá um simental, que é este. Um simental que ninguém quer tourear.
Porquê?
Porque tem muitos vícios, é velho. Tinha sete anos.
Já tinha sido toureado?
Tentado. Tinha sido toureado quando tinha dois anos. Bem, e qual é o meu espanto, ninguém queria o toiro e os outros cinco estavam muito bonitos. Praça cheia, expectativa do caraças, esta bronca começou a falar-se na rua e mais expectativa criou. O toiro quando chega a praça eram duas da tarde, a corrida era às seis. Faz-se o sorteio e os três matadores não queriam o toiro, toca-me a mim. É o destino: os outros toiros bonitos, que tinham deixado os matadores enamorados, porque há um enamoramento, todos saíram mal, fatais. E este foi o que saiu bem. Pus este toiro em último lugar, numa corrida que tinha sido um drama, os bandarilheiros para o chão. Quando este toiro saiu, nós levamos três bandarilheiros, estavam em baixo todos os escondidos. Saiu todo brilhante do pó e a malta e eu, de boca seca. Quando estás habituado a ver uma corrida bonita e vem isto assim: imagine o que é o toiro vivo com 500 quilos em cima. Mas foi o único que saiu bem, cortei-lhe as orelhas e o rabo.
Mas como conseguiu ficar com a cabeça?
Nós temos prioridade de ficar com a cabeça do toiro. Dizemos ao responsável dos curros que levamos a cabeça, cortam-na, aquilo é posto numa caixa com gelo. É levado para o taxidermista, para embalsamar.
Qual foi a corrida mais dramática?
Foi em Madrid. Quando fui mudar da espada da levezinha para a mais pesada, pus-me à frente do toiro. Sabe, há um fenómeno entre o toureiro e o toiro. Quando Deus nos tira faculdades, dá-nos um conhecimento profundo sobre o toiro. Quando eu comecei a perder faculdades, eu e os meus colegas, é que nos percebemos que quase entramos no mistério do toiro. Temos uma linguagem com o toiro, através da pelagem do toiro, os movimentos das orelhas, os olhos e depois há uma coisa que define o máximo: o estar à frente do toiro e chegar o momento em que a respiração do toiro está sincronizada com a nossa. Completamente sincronizada. E aí é que começas a entrar no mistério do toiro. E quando eu cheguei à frente do toiro, ele disse-me: “agora toureia-me como tu sabes”. Mas oiça, tal e qual como estou a assim a dizer. Olhei para o toiro, aqueles olhos de assassino, de drama, chamamos olhos de enfermaria. Quando somos colhidos, vamos para a enfermaria. Tive o agridoce. Tive o pior drama que foi aqueles minutos, à frente dele e depois deu-me 20 passos que foi a melhor faena da minha vida. Ao ponto de eu, que não o matei à primeira, nem à segunda, matei à terceira mas deram-me a orelha, impensável. Quando se pincha uma vez, pode ser a maior faena de sempre, mas não se tem direito a troféu. E deram-me a orelha, com petição da segunda. Veja o que foi. Se ele não me dissesse aquilo, eu dava dois passos e entrava a matar. Transmitiu-me isto.
Mas mesmo assim só conseguiu à terceira.
Sim, mas ali está.
Guardou orelhas?
Algumas sim, as mais significativas. Tenho aí cinco ou seis.
Com essa paixão toda, como vê as pessoas que são totalmente contra as corridas e querem o fim das corridas?
Há um desconhecimento total. Se as pessoas soubessem ou quisessem aprender…
Não há corridas de morte em Portugal, não é?
Não. Veja bem, se não fosse toureiro, aficionado, comparando os dois espetáculos, estaria contra o espetáculo que se faz em Portugal. O toiro não sangra o suficiente, está em stress. O toiro tem de sangrar, descongestionar. O toiro tem 35 litros de sangue. Quando está num estado de excitação que vai ao congestionamento, aquele sangue dentro dele atinge mais do que isso e tem de sair. Os três órgãos vitais, os olhos, a cabeça, o coração, estão a sofrer com a pressão do sangue. Por isso é que há que sangrar 7%.
Como sabe que é isso?
Vai-se medindo, o picador faz essa análise.
Mas em Portugal há picador?
Não, mas em Espanha é assim. E o toiro no final é morto.
Na arena?
Todos os toiros têm de ser mortos na arena. Às vezes lá dentro, mas nenhum toiro sai vivo de uma praça de toiros em Espanha. Portanto o toiro está numa luta, sem sofrer, porque tem esse descongestionamento. Se eu agarrar num toiro que não se ponha bandarilhas e não se pique, esse toiro está a sofrer. Para mim, a corrida à espanhola tem verdade porque se mata com o toiro inteiro, com as suas pontas, com a idade e com o peso. O nosso espetáculo, por tradição, é um espetáculo que não se respeita o toiro porque é embolado. O toiro não tem as suas armas para se defender. O espetáculo nos países de alma hispânica tem verdade, em Portugal não tem a mesma verdade porque o toiro é embolado e não se mata. O toiro em Espanha com a sua sangria não sofre, em Portugal sofre porque não é abatido.
Fica mais de 12 horas?
Sim, 24 horas, tem febre.
E depois é comercializado? As pessoas comem essa carne?
Aí está. No meu tempo, vinham os toiros no mês de agosto numa jaula com temperaturas de 60, 70 graus, vinham da Povoa de Varzim para os Olivais para serem abatidos no dia seguinte, com febre e depois eram comidos.
Concorda que era uma selvajaria?
Absolutamente.
Em Portugal o único toiro que matou deu-lhe problemas.
Sim. Foi uma corrida de toiros na Moita, uma corrida séria, à espanhola, os toiros com cinco anos, em pontas, com picadores e com as duas máximas figura de Espanha. Niño de la Capea e Paco Ojeda. Foi de facto um momento histórico e verdadeiro, aqueles toiros na minha ótica, depois de picados e de dar o êxito que deram, deviam ser os seis mortos na arena.
E foram?
Foi só o meu, os outros não quiseram porque é proibido e se calhar prendiam-nos logo.
E a si?
Andaram à procura mas não encontraram. O público não deixou.
Mas teve de pagar uma multa.
Sim, aquilo estava muito feio, o MP naquela altura, queria que houvesse um castigo exemplar. Fui a tribunal mas provei que debaixo daquele entusiasmo do público e com a voz deles, “mata-o, mata-o”, cheguei a um momento em que julgava que estava em Espanha e matei o toiro. Foi essa a defesa.
E pagou quanto?
350 contos e pena suspensa.
Quem são para si os melhores toureiros de sempre?
O Antonio Ordóñez, o Paco Ojeda e o Espartaco.
E na atualidade?
El Juli, Roca Rey e o Enrique Ponce.
Depois dessa vida assentou, casou só uma vez?
Casei duas vezes. Casei com a mãe do meu filho, que era filha do Diamantino Viseu, que foi matador de toiros.
Só tem um filho.
Sim, e um neto.
Imaginemos que o seu neto chegava aqui a casa e dizia que ia votar no PAN. Deserdava-o?
De maneira nenhuma, sou daquelas pessoas que jamais alguma vez cortava a ideia ou o sonho de qualquer jovem. Podia dar-lhe alguns conselhos se me pedisse, mas nunca tentava mudá-lo. Com o tempo veria de que lado está a razão e o conhecimento.
Obviamente que é um cavalheiro, mas porque é que nunca assumiu que foi namorado de tantas mulheres famosas no mundo?
Veja bem, eu emprego isto muitas vezes mas às vezes parece rebuscado. Como qualquer homem fui malandreco também, mas tenho um respeito extraordinário pelas mulheres. Sou filho de uma mulher, só por isso sou incapaz e fico revoltado quando alguém diz “fui para a cama com tal mulher”. Muitas dessas mulheres são minhas amigas, algumas estão casadas, outras já morreram e eu sinto-me na obrigação, é um dever da minha parte pelo respeito que tenho, nunca dizer aquilo que se realizou, se é que se realizou alguma coisa mais do que a amizade.
Despediu-se do público em 1990. O que sentiu?
Um mar de emoções. Preparei a minha despedida dois anos antes. Tive uma corrida que me roubou faculdades na perna esquerda. Nos últimos anos toureava baseando-me só numa perna. O público não se apercebeu, só se apercebeu porque deixei de bandarilhar no último ano, não podia.
Só matava?
Toureava de capote, muleta e matava quando ia a Espanha ou ao México. Mas preparei-me, porque entendo que a última imagem das pessoas, dos toureiros, é a que fica gravada na mente das pessoas. Não queria nunca agradecer aplausos por carinho, por pena ou por dó. Queria ir despedir-me e que as pessoas ficassem com uma imagem bonita desse dia e tivessem respeito por mim como tive sempre pelo público. Foi o único dia em que me vieram as lágrimas aos olhos em público. Chorei algumas vezes na casa de banho, mas não em público. Chorei porque vi a Praça do Campo Pequeno coberta de lenços brancos a dizerem-me adeus e isso é uma imagem que ficará para sempre. Bem sei que nesta profissão há colegas que se despedem duas e três vezes, regressam no ano seguinte. Eu fiz uma jura a mim mesmo que só me despedia uma vez, foi nessa data e não há uma outra.
Tinha que idade?
54 anos.
Há muitos jovens que lhe vêm pedir conselhos para entrar na profissão?
Há muitos jovens. Sabiam no estrangeiro que eu era o toureiro que mais tentas fazia, tentas é as chamadas seleções onde se toureia muitas vacas e é aí que acontece verdadeiramente o treino dos toureiros. Apareciam-me todos os anos seis, sete miúdos, jovens do México, Colômbia, da Venezuela e viviam numa quinta que tinha aqui em Vila Franca. Alguns deles viveram cá cinco, seis anos. Tentei sempre ajudar.
Recebeu jovens até quando?
Até há 15 anos. Tenho uma alegria fantástica que ajudei onze deles a serem matadores de toiros. Penso que é caso único. E é de uma alegria tremenda saber que alguns triunfaram.
Era uma academia?
Sim, mas sem compromisso de pagamento. Pelo contrário, eu assumia todas as despesas.
Conhecia os pais?
Nada, conhecia os sonhos deles, os sonhos de miúdos. Tenho de alimentar esse sonho de quem quer ser toureiro. Tinham o seu quarto, comida, o seu carro para ir ao campo, vacas para tourear. E quando voltavam ao seu país já preparado para uma carreira levavam um traje luso, um capote e uma muleta oferta minha. Fiz isto porque nunca tive na vida alguém que me fizesse isso. Nunca tive em Vila Franca ou noutro sítio qualquer uma muleta, um capote. Fiz o que não me fizeram a mim. E não me devem nada, eu é que devo a eles pelos momentos bonitos em atuações, por triunfarem na vida, hoje alguns deles bons toureiros e bons chefes de família, é certo que há sempre umas ovelhas negras no rebanho.
Alguma vez teve medo?
O medo é relativo, o medo é inconsciente.
Medo da morte?
Não. Digo-lhe com franqueza, seria um homem extraordinariamente completo e feliz se tivesse tido uma morte na arena. Seria a minha realização máxima. Hoje se tivesse uma oportunidade de um toiro me matar eu deixava-o matar.
Com esta idade?
Sim, ainda hoje. Iria com o peito aberto e passo cadenciado a caminho daquilo que eu sonhei um dia. Todo o toureiro que é morto por um toiro é a glória máxima. Como dizem em Espanha, gloria bendita.