Tantas vezes visto como um herói, tantas outras como um sagaz impostor, Thomas Edward Lawrence, como alguém notou, só pode ser descrito como uma amálgama heroica do que há de mais estranho nos homens, dessa invulgaridade que arranca no íntimo e, desdobrando-se, ganhando ecos no mundo, dá origem aos mitos. Ele foi uma figura extremamente ambígua em vida, de tal modo que os historiadores nunca souberam bem o que fazer dele, ou dos seus relatos que, em muitos aspectos, se tornaram impossíveis de verificar. E, de resto, os seus biógrafos também se dividiram entre dois campos, entre desmistificações e hagiografias, e têm travado desde há décadas uma guerra, com avanços e recuos, tentando separar dos ossos o que é da carne e o que é da lenda. O certo é que uma e a outra constituem o relevo de um dos inventores do moderno Médio Oriente, que nasceu da Primeira Guerra Mundial.
Volvidos 85 anos da sua morte, e quase seis décadas desde que o filme de David Lean o projectou no imaginário popular, a linha que separa os factos da ficção ainda treme bastante no que toca a reconstituir os passos deste jovem e tímido arqueólogo que deixou uma promissora carreira académica em Oxford e se encaminhou para a batalha, liderando um exército árabe que mudou a História. E se o mundo, com a Primeira Guerra, assistia ao colapso da noção romântica e aventureira da guerra, procurando esquecer os relatos brutais da carnificina na frente europeia, mesmo se Lawrence reconheceu que o conflito em que estava envolvido não passou de uma exibição lateral que pouco fez para abalar as forças centrais, as suas tácticas de guerrilha no deserto e em nome da independência árabe face ao domínio otomano ajudram a recompor um certo ideário do que a guerra deveria ser, e foi certamente o último fôlego da épica na História moderna. Para o público, e especialmente o britânico, havia ecos das lendas arturianas no relato que ele fez daquela irmandade criada no conflito, com a dicção cerimonial dos beduínos do deserto e os ataques desferidos estrategicamente em territórios vastos e inóspitos que extenuavam a imaginação dos europeus. Era aquela a guerra que o público tinha pago para ver. Uma guerra que não deixava de ter aspectos terríveis, mas que, como notou o crítico literário V.S. Pritchett, “era pelo menos apreensível como uma obra de arte exótica, pequena mas visionária, e contando com o apelo épico do combate individual” – que, então, só nos combates aéreos teve expressão. E tratava-se de um relato em que um homem fazia a diferença. Um jovem e ousado aventureiro, que se serve dos seus conhecimentos sobre uma região remota e conquista o poder de tomar decisões, alguém que misturava na dose certa a temeridade e a propensão para fantasiar, com a audácia para envergar a autoridade do império colonial britânico e negociar em seu nome. Mas se o desejo de celebridade e até a mitomania estavam lá, a remoer a personalidade de Lawrence, não se pode minimizar a sua astúcia militar e a bravura fanática que fizeram dele um adversário temível, capaz de uma crueldade atroz – Lawrence matou os seus próprios homens, quando feridos, para evitar que fossem torturados pelos turcos. E um sinal de que o seu mito está longe de se esgotar é o facto de a torrente de biografias, nos últimos anos, não ter estancado. Talvez isto se deva às inúmeras contradições que se espelham no seu espírito: uma figura tímida e com uma inclinação depressiva que foi colher nos nómadas os valores ascéticos, sem deixar, no entanto, de ambicionar a celebridade, e que soube engrandecer como poucos a sua própria lenda, acabando depois por esquivar-se-lhe, tornando-se um eremita. Era também um vegetariano, mas de forma muito inconsistente, sexualmente reprimido, e ao mesmo tempo que fugia ao contacto físico, buscava a refrega e era claramente viciado no perigo. No fundo, era um protagonista “fabulosamente estranho”. Tudo isto faz dele um Ulisses morto às portas da modernidade, o último exemplar de uma estirpe cujo heroísmo inocente já não tem como vingar na cultura Ocidental. De resto, até a forma como Lawrence entretece o fio lírico nas descrições da guerra, das suas aventuras e desaires no monumental “Os Sete Pilares da Sabedoria”, traçam um desencontro fundamental com o mundo que deixara para trás e com o qual já não se conseguia reconciliar. “Sentíamo-nos bem uns com os outros, por causa da vastidão dos espaços abertos, do sabor dos ventos amplos, da luz do Sol e das esperanças em que laborávamos. Inebriava-nos a frescura matinal do mundo que estava na forja. Estávamos envoltos em ideias inexprimíveis e imateriais, pelas quais valia a pena lutar. Vivemos muitas vidas nestas campanhas tumultuosas, sem jamais nos pouparmos; contudo, quando alcançámos o que pretendíamos e o novo mundo alvoreceu, os velhos reapareceram e tomaram conta da nossa vitória, para a reconstruírem à semelhança do mundo antigo que conheciam. A juventude era capaz de ganhar, mas ainda não aprendera a conservar e era lamentavelmente fraca contra a velhice.”
O livro que agora nos chegou numa primorosa tradução de Marcelino Amaral, com selo da E-Primatur, estando há muito esgotada a edição da Europa-América (1989), confunde-se com uma história sobre o fracasso que, de ora em diante, acabará por ser o inelutável destino de todos os verdadeiros ímpetos de renovação e mudança. A desilusão de Lawrence, que ambicionou ver uma grande nação árabe ser criada sob protecção britânica, ecoou à medida que o próprio idealismo e a noção plena de juventude se tornavam relíquias do passado. Por isso, depois de ter prometido aos hashemitas que teriam em Damasco a capital do reino independente com que há muito sonhavam, Lawrence acabou por se encher de remorsos, vindo a considerar-se um “falsário da história”. Mas na confissão das suas culpas não deixou de arrastar consigo as potências coloniais, apontando ao seu próprio país um dedo acusador, pela forma como traiu os árabes, incitando-os ao levantamento contra os turcos, para depois, no final da guerra, assinar com a França os acordos em que dividiam entre si os despojos do Império Otomano.
T.E. Lawrence nasce em 1888, no mesmo em que nasce Fernando Pessoa, e morrem ambos em 1935, o primeiro sem chegar a completar 47 anos, depois de a sua enorme mota Brough ter derrapado numa estrada rural em Dorset. Se o português fez da sua vida uma mistificação literária, criando a multidão que lhe permitiu desdobrar o seu génio e escapar às circunstâncias algo mesquinhas da sua existência, o inglês terá sofrido por saber-se o filho bastardo de um baronete irlandês, Sir Thomas Chapman, que fugiu do seu país com a governanta, Sarah Lawrence, deixando a mulher e as filhas na Irlanda, para se estabelecer em Oxford, assumindo uma nova identidade, e levando uma vida dupla com a amante e os cinco filhos que tiveram. Thomas Edward, ou “Ned” como fora apelidado, era o segundo mais velho, o mais inteligente e o mais estranho dos rapazes. A mãe tinha, aparentemente, uma crença no bom resultado dos castigos corporais para moldarem a personalidade e o cáracter dos filhos, e sendo Ned o que mais cedo mostrou uma postura desafiadora, apanhava constantemente. As tantas sovas terão tido um profundo efeito psicológico nele, e os biógrafos debatem-se sobre se seria assexuado (traço que o parece ligar a Fernando Pessoa) ou um homossexual reprimido, tendo revelado tendências masoquistas. Houve também quem sublinhasse algumas passagens de “Os Sete Pilares da Sabedoria”, execrando uma suposta exaltação homo-erótica, mas Lawrence vivia com a agonia de outras formas de terror, erros com um custo demasiado alto e que, apesar da sua coragem, escolheu calar (“há coisas que não podem ser repetidas a sangue-frio, tão vergonhosas são”). Assim, falava desde uma outra compreensão da natureza humana, quando esta fica sujeita a esse desarme daquilo que parece conferir-lhe a sua dignidade, e isto porque tinha testemunhado esse estado de abandono e debilidade em que os impulsos se livram de toda a moralidade: quando o corpo é só esse resto que serve de âncora ao espírito para não se desligar inteiramente do mundo.
“O corpo era demasiado grosseiro para sentir o auge dos nossos desgostos e das nossas alegrias. Por isso, abandonávamo-lo como se fosse lixo; deitávamo-lo abaixo de nós para marchar em frente, um simulacro de respiração, ao seu próprio nível, sem assistência, sujeito a influências das quais, em tempos normais, os nossos instintos nos teriam feito fugir (…) As mulheres públicas das escassas povoações que encontrámos nos nossos meses de viagem não teriam chegado para nós, mesmo que a sua carne ocre tivesse sido aceitável para um homem de gostos saudáveis. Horrorizados ante esse comércio sórdido, os nossos jovens começaram a satisfazer indiferentemente as poucas necessidades uns dos outros nos seus próprios corpos limpos – uma conveniência fria que, por comparação, parecia assexuada e até pura. Posteriormente, alguns deles começaram a justificar este processo estéril, e juravam que amigos estremecendo juntos na areia macia, com os membros íntimos quentes no abraço supremo, encontravam aí, oculto na escuridão, um coeficiente sensual da paixão mental que fundia as nossas almas e espíritos num esforço ardente. Vários deles, suportando a sede para castigar apetites que não conseguiam evitar completamente, sentiam um orgulho selvagem em degradar o corpo e ofereciam-se ferozmente para qualquer tarefa que prometesse sofrimento físico ou imundície.”
De resto, numa das passagens de que Jorge Luis Borges mais admirava e que costumava citar, Lawrence diz-nos que parece haver “um grau de certeza na degradação, uma forma final de segurança”, e concluía: “O homem pode erguer-se a qualquer altura, mas há um nível animal abaixo do qual ele não desce.”
Voltando à sua infância, não faltou quem buscasse nela a chave para compreender a sua personalidade, um período conturbado e confuso, tendo fugido de casa dos pais aos 17 anos, alistando-se no exército, e foi preciso que o pai se mexesse para o arrastar de volta para casa. A única forma de o conseguirem segurar foi darem-lhe condições para ter o seu próprio espaço, vivendo separado do resto da família. Assim, foi construído um chalé no limite do jardim que envolvia a casa em North Oxford, onde Ned vivia como um inquilino, juntando-se-lhes apenas para as refeições.
Enquanto estudava arquitectura em Oxford, no verão de 1909, decidiu-se a viajar sozinho e a pé pelas fortificações das cruzadas no território da Síria otomana. Contra o conselho de todos os especialistas, lançou-se nessa travessia em que percorreu quase dois mil quilómetros no que seria um prenúncio das suas esgotantes aventuras de andarilho tresloucado. Antes de deixar Oxford, ouviu o seu mentor, D.H. Hogarth, rogar-lhe que tivesse juízo, avisá-lo que iria na pior altura, pois o calor era impiedoso naquela altura do ano, e explicando-lhe que os europeus não eram bem-vindos na Síria. O célebre viajante Charles Doughty, que conhecia bem aquela parte do mundo, também tentou dissuadi-lo de empreender “uma viagem dessas, que o mais provável era que fosse traumatizante, perigosa para a saúde e mesmo decepcionante”. Mas Lawrence parecia gostar que lhe dissessem as piores coisas, quanto mais impossível a tarefa mais parecia incitá-lo, e marchou pela Síria percorrendo uma média de 35 quilómetros por dia, desenhando, fotografando e documentando-se sobre 37 fortificações do período medieval. A viagem não só não foi uma decepção – tendo Lawrence compilado o material que assegurou que a sua dissertação em Oxford colheria louvores –, como o perigo cumpriu também a sua parte do acordo. Assim, perto do final da sua jornada, um bando de assaltantes curdos apanhou-o na região norte da Síria, e não só lhe ficaram com os valores que tinha consigo como lhe deram uma trepa de todo o tamanho, o que o fez regressar a casa medalhado pelas escoriações e sinais de quem escapou por pouco à morte.
Depois de se ter licenciado, regressou ao Médio Oriente como arqueólogo, e, em 1911, viria a cruzar-se com Gertrude Bell, a escritora e responsável política que viria a ter um papel decisiva na criação do Iraque, que juntamente com a Palestina e a Jordânia, seriam os reinos árabes reclamados pelos britânicos no final da Guerra. Bell deu com ele a escavar a antiga cidade de Carquemis junto à fronteira turca. Sendo um homem baixo, além do cabelo claro, os olhos azuis teriam uma qualidade penetrante, e Bell terá ficado impressionada por ver ali aquele jovem envergando um blazer da equipa de remo de Oxford, com calções brancos, chinelos vermelhos árabes que se lhe enrolavam nos dedos dos pés e um cinto de tecido carmesim com borlas penduradas.
Lawrence fazia gosto em sobressair, desde logo nos seus hábitos, na postura confiante e nos gestos estudados, decididos, mas também na forma de vestir. Mesmo quando adoptou a túnica branca dos beduínos e o keffieyeh, que se tornaram a sua imagem de marca, sabia como isso fazia parte de uma personagem cuidadosamente representada. “Eu não podia assumir sinceramente a pele de um árabe; aquilo não passava de uma afectação”, admitiria mais tarde. De resto, nos “Vinte e Sete Artigos” – um pequeno tratado que redigiu à mão e no deserto, em 1917, a pedido dos chefes militares britânicos, isto logo depois do seu maior triunfo militar, com a tomada de Aqaba –, ele que era tratado reverencialmente como Al Lawrence, explica que é crucial para um oficial manter a sua distância, não se misturar, pois o seu papel não é comandar, mas orientar. Servindo de agente de ligação entre as diferentes forças tribais, ele usa a imagem do xerife como analogia para descrever o seu papel: “A tua posição ideal é quando estás presente sem dar nas vistas. Não sejas demasiado íntimo, demasiado proeminente nem demasiado sério. Para fazer o teu trabalho tens de estar acima dos ciúmes, e perdes prestígio se te associares a uma tribo ou um clã, e às suas inevitáveis rixas. Os xerifes estão acima das rixas sangrentas e das rivalidades locais, e constituem o único princípio de unidade entre os árabes.”
Esse pequeno tratado e “Os Sete Pilares da Sabedoria” viriam a tornar-se os livros de cabeceira do general norte-americano David Peatraeus que, na altura em que chefiou a força multinacional em solo iraquiano, forçou os seus generais a lê-los e ainda os distribuiu pelo Pentágono e pela Casa Branca. Estes princípios foram de tal modo influentes que, como referia Jorge Almeida Fernandes num artigo escrito há alguns anos, a actual bíblia dos militares americanos – ‘Counterinsurgency Field Manual’ – é largamente inspirada em Lawrence”. “É a guerra deles e nós estamos a aqui para os ajudar, não para a ganhar por eles”, escreve o homem que ficou imortalizado como Lawrence da Arábia. "É melhor deixá-los fazer imperfeitamente a sua guerra, pelo seu país, do que nós perfeitamente.”