Marcelo, Costa e Ferro em silêncio na última reunião com especialistas

Ao contrário das outras reuniões, Presidente da República, primeiro-ministro e presidente do Parlamento não pediram para falar nem para fazer perguntas. Fim dos encontros concertado entre Belém e São Bento.

Ao fim de 128 dias e dez reuniões, os encontros com especialistas de saúde pública e epidemiologia sobre a pandemia de covid-19 terminaram sem aviso prévio para a maioria dos presentes naquelas sessões. O primeiro sinal de que era o fim de um ciclo surgiu da própria dinâmica do último encontro. Nem o Presidente da República nem o primeiro-ministro ou mesmo o presidente da Assembleia tomaram a palavra para intervir ou colocar perguntas. Em silêncio: foi assim que descreveram ao i vários presentes naquele encontro. Face ao histórico de reuniões, foi a primeira vez que tal aconteceu. Era o prenúncio do fim de um ciclo.

Cá fora, Marcelo Rebelo de Sousa anunciava que o modelo de reuniões ia ser “descontinuado”, o que apanhou alguns dos presentes de surpresa. Mas nem todos. Houve quem estranhasse que o primeiro-ministro não tivesse feito a habitual referência “até daqui a 15 dias” ou “vemo-nos daqui a 15 dias”. Na prática, não houve espaço sequer para despedidas.

Marcelo Rebelo de Sousa tinha, contudo, o discurso alinhado (concertado com o primeiro-ministro): “Terminamos hoje [dia 8 de julho] uma experiência de vários meses, iniciada no final de março, em pleno estado de emergência”. Para o Presidente, as sessões “valeram a pena” e “foi uma experiência única não verificada em nenhum outro país europeu e, que saiba, em nenhum outro país no mundo”.

O assunto ficou arrumado e Marcelo quis fazer um balanço muito positivo das reuniões (não o fez lá dentro). Esta decisão ocorreu duas semanas depois de ter sido noticiada a irritação de Costa com os especialistas pela falta de respostas sobre o que se passava na Grande Lisboa ou o momento de tensão com a ministra da Saúde, Marta Temido.

No passado fim de semana, o líder do PSD, Rui Rio, tinha já questionado a utilidade das reuniões, depois de uma primeira fase muito importante em pleno estado de emergência. A sugestão parece ter surtido efeito em Belém e em São Bento.

Sobre os dados prestados pelos especialistas, o chefe de Estado anunciou que foi apresentado um estudo que parece “demonstrar que não há ligação entre o transporte ferroviário e o surto pandémico” nos casos de Lisboa e Vale do Tejo. Assim, os principais fatores de contágio parecem ser a coabitação e a convivência social. Mais: na zona de Lisboa e Vale do Tejo parece estar-se a assistir a uma “estabilização dos casos” ou até uma aparente descida.

 

Marcelo deu números errados sobre o RT

Agora serão necessárias avaliações micro (e não tanto macro) porque as realidades não são iguais no país. Mais: Marcelo avançou no final do encontro que o Rt, a taxa de contágio, a nível nacional estava nos 0,8. Afinal, não estava. O Rt está nos 0,98, abaixo de 1, o número que serve de alerta aos especialistas sobre a velocidade de propagação. Marcelo ainda deu dois novos dados: “O tempo mediano de internamento está entre dez e 11 dias no internamento geral e entre os 17 e 19 dias nos cuidados intensivos”, e espera-se um estudo de imunização até ao final de julho.

De realçar que o Rt em Lisboa e Vale do Tejo é de 0,97 e no Norte é de 1,09.

No final, na ronda pelas declarações dos partidos, o PS realçou a confiança dos portugueses na fase de desconfinamento, enquanto o deputado Ricardo Baptista Leite, do PSD, deixou o aviso: “Se falhamos na resposta de Lisboa, estaremos a falhar ao país”, declarou, assinalando ainda que os surtos fora de Lisboa e Vale do Tejo aumentaram para 48 quando, há duas semanas, eram apenas 12.

 

Oposição critica

Os demais partidos da oposição foram reagindo também, quer aos dados apresentados, quer à ideia de se acabar com as reuniões. Jorge Pires, do PCP, criticou a decisão de se darem por findas estas reuniões, lançando o apelo para que sejam retomadas. “O conhecimento científico é fundamental para conduzir politicamente as medidas necessárias ao combate à covid-19”, declarou. Do lado dos centristas, António Carlos Monteiro não poderia ser mais crítico também: “Não podemos deixar de lamentar, numa altura em que a crise não está resolvida, em termos de saúde pública, que depois de, numa reunião, os especialistas terem contrariado as teses do sr. primeiro-ministro — aliás, uma dessas especialistas já nem esteve presente nesta mesma reunião –, vermos o presidente do maior partido de oposição, o PSD, dizer que estas reuniões passaram a ser dispensáveis e, por isso mesmo, deixámos de ter acesso a esta mesma informação”. E defendeu que não houve milagre português, baseando-se nos números.

André Ventura, do Chega, disse, por seu turno, “estranhar que poucos dias depois de o presidente do PSD ter referido que estas reuniões estavam a ter cada vez menos importância, o Governo tenha também ele decidido terminar com estas reuniões e, aparentemente, sob a passividade enorme do Presidente da República”. E contextualizou a forma como soube do fim das reuniões: “Soube que era a última reunião quando subi estas escadas e quando ouvi o Presidente da República dizer que era a última reunião”.

Numa versão mais mitigada, o deputado do Bloco de Esquerda José Manuel Pureza optou por deixar um conselho em jeito de aviso: “Aceitando que estas reuniões tenham hoje chegado ao fim de um ciclo, o BE entende que é muito importante que no Parlamento se continue a fiscalizar de forma muito rigorosa toda a evolução quer da pandemia, quer das políticas que tenham sido e venham a ser adotadas”. Porém, não poupou as incongruências na recolha de dados. “O país não compreende e não aceita que alguma inconsistência dos dados sobre casos reportados se deva a laboratórios privados”, lembrou Pureza, sublinhando que é preciso ter em atenção ainda “a importância dos movimentos pendulares, a sobrelotação de alojamento e a falta de alternativas para muita gente que não tem outra hipótese senão vir trabalhar para poder sobreviver”. Esta é uma realidade para a qual o Bloco exigiu “medidas com alcance socioeconómico, porque combatem eficazmente a pandemia”.

Do PEV, Dulce Arrojado também criticou o fim das reuniões com especialistas, lembrou que a “pandemia não está ultrapassada” e pediu particular atenção para as pessoas não deixarem de ir às suas consultas de cuidados primários por causa dos receios com a covid-19.

Carla Castro, da Iniciativa Liberal, apontou falhas ao Governo, contestou também o fim deste tipo de encontros com especialistas e atacou a demora e a atuação “atabalhoada” do Executivo, designadamente no caso de Lisboa e Vale do Tejo.

Entretanto, o primeiro-ministro revelou ontem que está a preparar o prolongamento do estado de calamidade para 19 freguesias da região de Lisboa e Vale do Tejo, afastando assim o levantamento das restrições, que vigoram até dia 14.