O alerta não foi ignorado, mas o processo foi lento, diz o especialista. Algarve e outono são agora a maiores preocupações, assim como a transmissão por aerossóis, esta semana admitida pela OMS, e o fenómeno em que por causa disso mesmo uma só pessoa infetada pode contagiar dezenas.
Ficou surpreendido com o final das reuniões no Infarmed?
Não fiquei. Sinceramente estou surpreendido por a imprensa sugerir que está surpreendida. Quando fui para a reunião avisaram-me logo que seria a última. As reuniões começaram a meio de março, duraram abril, maio e, em maio, a cada reunião, estávamos a perguntar-nos se haveria mais uma. Foi havendo. E foi havendo porque o Presidente da República e/ou o primeiro-ministro, não sei, acharam que seria útil. Mas estivemos sempre à espera que fosse a última e até fiquei surpreendido que tivesse havido reuniões em junho.
Porque é que achavam que seria sempre a última?
Porque quando íamos para uma reunião, a senhora ministra dizia-nos que se calhar era, não sabemos se o senhor Presidente vai querer mais uma reunião. Desta vez foi mesmo a última. Se tivessem pedido mais uma, também não me admirava. Mas a senhora ministra disse-me a mim, e disse a todos, que aquela reunião seria a última, em princípio.
O PR disse que foi uma experiência que valeu a pena. Sente que foi útil?
Sou suspeito para responder porque vou lá dar informações e acho que são úteis. Acho que foi muito importante que os políticos tenham tido a oportunidade de perguntar a pessoas mais ligadas aos aspectos técnico-científicos o que quisessem. Há muitas coisas que já sabemos sobre este vírus, outras não sabemos e temos esperança de vir a saber, mas acho importante que quem tem de tomar decisões, e quem tem de estar atento às decisões do Governo, oiça de uma fonte não política, independente, o que se sabe e faça perguntas à vontade. Ao longo destas reuniões respondi a imensas perguntas que iam da imunologia e das moléculas do vírus à saúde pública. É evidente que políticos como noutros países podiam dizer ‘ah isso da ciência, a gente decide…’
Cá nunca foi essa a postura?
Absolutamente. E penso que foi uma decisão inteligente do Governo. Não tenho nada a ver com o Governo mas acho que foi inteligente porque de certo modo, nós, os cientistas, fizemos de tampão entre as decisões que o Governo teve de tomar e o espetro político. Quando o Governo tomava decisões, toda a gente era testemunha que essas decisões seguiam-se a recomendações e pareceres que demos, a perguntas que respondemos. De certo modo blindou as decisões. Quando tomou a decisão de confinamento e depois o desconfinamento, perante eventuais críticas, que quase não houve, podia dizer ‘estiveram na reunião, ouviram as recomendações e sabem qual o estado epidemiológico do país’. Penso que houve uma certa habilidade política.
Nunca se sentiu a ter de justificar decisões políticas? Falou-se na questão do desconfinamento, se a pressão da necessidade de reabrir o país e retomar atividade económica não se terá sobreposto à situação epidemiológica.
Sempre senti que houve ali fairness. Sempre dissemos o que sabíamos, demos recomendações quando eram pedidas, mas quem tomava decisões eram os políticos. Nunca senti que pusessem em cima de mim o peso das decisões. Puseram em cima de mim o peso das recomendações e da descrição da situação. Do ponto de vista estritamente epidemiológico recomendaríamos coisas mais duras. Do ponto de vista estritamente epidemiológico, quando há casos a circular, devia-se fechar tudo. Mas como cidadão compreendo que a vida não é só epidemiologia e compreendo que o Governo tome decisões que podem não coincidir com a minha visão como epidemiologista, mas que tudo ponderado são as decisões que entende que deve tomar.
Nem na penúltima reunião, em que aparentemente houve algum desconforto do PM com a ausência de respostas certas dos cientistas, se sentiu desconfortável?
Isso foi outra coisa que me surpreendeu. Nessa reunião houve um diálogo aberto, o primeiro-ministro, a senhora ministra, todos falaram e a dada altura o primeiro-ministro disse, não sei as palavras exatas, mas qualquer coisa como ‘isso não é bem assim’. Mas estava a ser uma troca ideias.
Não viu um puxão de orelhas de António Costa a Marta Temido?
Acho que é um exagero usar esse termo. Imagine que estamos a discutir um assunto difícil, com varias perspetiva: tem uma opinião, eu tenho outra, começo a dizer-lhe a minha opinião e diz-me: ‘isso não é bem assim’. Isto não é um puxão de orelhas, é dizer que não concorda com aquele ponto e tem outra perspetiva. Não senti nada disso nessa reunião.
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