Depois de seis anos de investigação, o processo mais conhecido do império Espírito Santo conheceu a acusação na terça-feira e Ricardo Salgado é, naturalmente, o principal protagonista – acusado pelo Ministério Público (MP) de um total de 65 crimes e de liderar a associação criminosa responsável pela implosão do grupo ES e do banco, da qual fariam parte, segundo o MP, os outros 17 arguidos e as sete pessoas coletivas também acusadas.
Mas o trabalho do Ministério Público na busca de Justiça, em matéria de implosão do império Espírito Santo, não se fica por aqui.
Desta enorme investigação resultarão outros inquéritos, resultando da acusação que ‘a procissão ainda vai no adro’.
De facto, foram extraídas do caso BES várias certidões que vão ser analisadas noutros inquéritos autónomos.
O suíço Jean-Luc Schneider, por exemplo, era um alto quadro do Grupo Espírito Santo (GES), tendo trabalhado na Espírito Santo Enterprises – offshore do GES que é suspeita de ser o saco azul do BES –, e agora vai ser alvo de uma investigação isolada para serem feitas averiguações à alegada prática de vários crimes, nomeadamente de branqueamento de capitais, associação criminosa, falsificação de documentos, corrupção ativa e passiva no setor privado e ainda corrupção de agentes públicos internacionais.
Além disso, também as ligações feitas entre o GES e a Venezuela, Suíça, Dubai e Macau vão merecer atenção numa outra investigação autónoma, vindo à tona, neste caso, o ex-vice-presidente do Banco do Brasil, Allan Simões Toledo. O MP suspeita de negócios concretizados com entidades públicas venezuelanas e titulares de cargos políticos ou altos cargos públicos de países da América Latina. Simões Toledo, por exemplo, terá recebido 1,5 milhões de euros da Espírito Santo Enterprises.
Já em relação a Angola, a acusação enumera de forma extensa as ligações do BES ao BESA, que terão lesado o primeiro em mais de 3 mil milhões de euros – e percorre o histórico do crédito e de outras operações do banco então liderado por Álvaro Sobrinho (envolvendo familiares e as elites políticas angolanas), que viria a resultar na assinatura pelo então Presidente José Eduardo dos Santos de uma garantia soberana de mais de 5,7 mil milhões de dólares.
Noutro plano estão as queixas apresentadas pelos subscritores de obrigações da Espírito Santo Finantial Group (ESFG), que dizem ter sido induzidos em erro sobre a situação real financeira do banco quando investiram. «Tomaram a decisão de aplicar o seu dinheiro na compra de obrigações da ESFG em erro sobre a verdadeira situação patrimonial da empresa», alegaram os denunciantes.
Em processo autónomo fica ainda a alegada prática de um outro crime de branqueamento por parte de Amílcar Morais Pires, ex-administrador e diretor financeiro do BES – acusado pelo MP no processo principal de 26 crimes, sete dos quais de branqueamento –, bem como dos seus dois filhos, Frederico Morais Pires e Maria Inês Mortais Pires. E ainda a denúncia da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) no que respeita aos indícios de crime de abuso de informação alusiva ao ESFG. Mas não é só: os aumentos de capital do BES de 2012 e 2014, que foram alvo de queixas por parte de dezenas de denunciantes, também vão ser investigados autonomamente.
Em relação à Espírito Santo Enterprises, vai ser ainda averiguada num processo isolado a responsabilidade criminal pelo crime de branqueamento de capitais, bem como a investigação por crimes de natureza fiscal relativos a pagamentos a membros do GES através de offshore ou contas abertas no estrangeiro que não foram regularizadas.
Advogado de Ricardo Salgado e reações à acusação
No que respeita ao processo principal do Universo Espírito Santo, a defesa do ex-banqueiro Ricardo Salgado reagiu à acusação do MP e garantiu que não existiu a prática de qualquer crime. Além disso, referiu ainda que a acusação ‘falsifica’ a história do BES. «É uma acusação pré-anunciada desde o dia 3 de agosto de 2014, data em que o Governador cessante do Banco de Portugal anunciou a morte do BES (depois deste banco ter sido afundado em provisões ilegais) e proferiu a ‘sua sentença’ para justificar o desastre da resolução, que, agora, está a condicionar a justiça», acrescentou.
Também o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, quis dar o seu parecer em relação à acusação aos 25 arguidos, dizendo que prova que os portugueses podem confiar na Justiça. Marcelo vê como uma «boa notícia» o facto de as investigações continuarem mesmo quando envolvem magistrados, pois mostram que «não há ninguém titular de órgão de soberania acima da lei». O chefe de Estado fez ainda questão de sublinhar que o processo sobre o GES não foi o único a ter desenvolvimentos recentes. «O caso Tancos já foi julgado. A Operação Marquês já foi para despacho, o que é uma boa notícia. A apresentação da acusação no caso BES é também uma boa notícia. As investigações sobre magistrados são também uma boa notícia, para mostrar que quem não deve não teme», afirmou. «Mais vale tarde do que nunca», acrescentou.
No caso de Rui Rio, presidente do PSD que usou as redes sociais para manifestar a sua reação – mais concretamente o Twitter –, foram realçados os seis anos da investigação até existir uma acusação – que conta com mais de 200 crimes na mira da Justiça. «Em linha com o habitual nível de eficácia, só a acusação demorou seis anos. Agora, o caso passa para os tribunais. De incidente em incidente e de recurso em recurso, quantos anos mais teremos de esperar para ser feita justiça no maior crime financeiro da nossa História?», questionou o líder social-democrata.
Defesa de lesados do BES acredita em mais arguidos
O advogado da associação dos lesados do BES garantiu que vê com bons olhos a acusação do MP e admitiu ao SOL que as eventuais próximas acusações deverão trazer mais 20 arguidos. «Não tenho qualquer dúvida sobre isso. Assistiremos à queda de muitos baralhos de cartas e será aberta a porta para um conjunto de relações e factos obscuros, caracterizados, essencialmente, pela promiscuidade de detentores de cargos públicos e agentes económicos criminosos. Esse será o mote para a necessidade de regras de compliance verdadeiramente singulares no seio dos sistemas político e financeiro portugueses», sublinhou Nuno da Silva Vieira, também advogado e sócio da Antas da Cunha ECIJA, realçando também que a acusação está muito bem fundamentada.
«A acusação que acabamos de conhecer prima pelo detalhe. Acredito que a defesa dos arguidos ficou, irremediavelmente, crítica. Depois de uma leitura atenta sobressai a capacidade que os senhores procuradores tiveram no elenco de produtos mobiliários que foram colocados nas mãos das vítimas e que estariam viciados de falsidade. Por isso, a probabilidade de indemnizações é elevadíssima. Vou mais longe ao admitir a possibilidade de esta acusação abrir a possibilidade de acolhimento do instituto anglo saxónico do Punitive Damages – a possibilidade de indemnizações elevadas com carácter punitivo e educativo da sociedade», atirou.
Ongoing recebeu 1,3 milhões do GES
De acordo com o despacho de 4117 páginas deste processo principal do Universo Espírito Santo, o MP acusou o grugo Ongoing, então liderado por Nuno Vasconcellos, de ter recebido 1,3 milhões de euros do GES através de um esquema que terá tido o objetivo de remunerar entidades externas. Segundo a acusação do MP, no centro deste esquema fictício estaria a sociedade suíça da Eurofin, comandada por Alexandre Cadosch – acusado de 18 crimes – e Michel Creton – alvo de uma acusação de um total de 17 crimes.
«Este circuito assentou num esquema de contratos fraudulentos, celebrados com um propósito tabelar de justificar, em termos contabilísticos, e de compliance, sempre que necessário, a saída de dinheiros», pode ler-se na acusação do MP.
Deste modo, o circuito fazia com que saísse dinheiro do BES para ser gasto em pagamentos do interesse do GES sem que fosse fácil perceber que era o banco comandado por Ricardo Salgado que estava a financiar uma série de pagamentos da área não financeira.
Luís Filipe Vieira também nas malhas da justiça
O presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira, está também envolvido numa investigação relacionada com questões fiscais – neste caso, diretamente ligada ao clube encarnado. Foi esta semana ouvido no âmbito do operação Saco Azul e constituído arguido por crimes de fraude fiscal e branqueamento de capitais, assim como a Benfica SAD e a Benfica Estádio. O caso começou em 2018, quando a Autoridade Tributária revelou uma elevada faturação de uma empresa de consultoria informática. A acusação dá conta de um pagamento feito pela Benfica SAD, no valor de 1,8 milhões de euros por serviços que nunca existiram.
«Clarifica-se que as diligências tiveram lugar no âmbito de um inquérito onde se investigam os crimes de fraude fiscal e branqueamento», garantiu a Procuradoria-Geral da República ao SOL, não confirmando, porém, a identidade dos arguidos.
Na altura em que começou a investigação, recorde-se, em junho de 2018, o MP cumpriu oito mandados de busca – três domiciliárias e cinco não domiciliárias – por suspeitas de crimes de branqueamento de capitais e fraude fiscal. A Benfica SAD e a Benfica Estádio foram alvo dessas buscas. «No âmbito de um inquérito, em que se investigam os crimes de branqueamento e fraude fiscal, foram emitidos três mandados de busca domiciliária e cinco não domiciliárias, de entre estes, dois às sociedades Sport Lisboa e Benfica SAD e Benfica Estádio Construção Gestão Estádios, SA», explicou, na altura, a Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa (PGDL), em comunicado.
Além disso, a PGDL esclareceu ainda, na nota divulgada, que «se realizaram várias transferências bancárias para uma conta titulada por uma outra sociedade, num valor total de 1.896.660,00 euros, montantes esses que acabavam depois por ser levantados em numerário».
A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) suspendeu a negociação das ações do Benfica, mas acabou por levantá-la horas depois, considerando já ter recebido toda a informação «relevante».