Por Filipa Moreira Cruz
Cruzei-me com o Ricardo Salgado algumas vezes em Paris. Nas suas várias deslocações à capital francesa costumava ficar alojado no hotel chique onde trabalhei algum tempo, no centro da cidade. As noites eram pagas pelo Banco Espírito Santo. Nada mais natural. O mesmo acontece com CEOs, presidentes de associações ou fundações e até mesmo políticos que, apesar de residirem na cidade, desfrutavam de estadias em hotéis de luxo pagas pelo partido.
Mas voltemos ao senhor em questão. Sim, os meus colegas pensavam que se tratava de uma personalidade importante e chamavam-lhe monsieur com pompa e circunstância. Recordo um homem calmo, imponente, seguro de si. De voz grave e sorriso discreto. Chegava sempre ao fim do dia e deixava o hotel na manhã seguinte. Na altura, eu era a única portuguesa a trabalhar no departamento e o presidente do banco fazia questão de cumprimentar-me sempre que me via.
Uma vez contei-lhe que tinha uma conta no BES desde os meus 18 anos, aberta na sucursal da avenida da Igreja, em Lisboa. O dito senhor assegurou-me que tomariam bem conta do meu dinheiro e entregou-me o seu cartão. No verso, escreveu o número do seu telemóvel e disse-me: «Se precisar de alguma coisa, ligue-me». Nunca o fiz, obviamente. Mas ainda devo ter esse cartãozinho guardado no fundo de uma gaveta. As reservas eram sempre feitas pela sua assistente e era ela quem eu contactava.
Este imbróglio já dura há vários anos e, como sempre, os lesados são os contribuintes que são chamados a salvar bancos, companhias aéreas e afins. No caso do BES, cortou-se o mal pela raiz. Desapareceu um dos bancos privados mais importantes e antigos de Portugal. O país inteiro assistiu à queda (in)esperada de um império. Separou-se o bom do mau, mas afinal parece que o tóxico está por todo o lado. O polvo não morre se atingirmos um dos tentáculos. É preciso cortar-lhe a cabeça. E parece que essa é habitada por diversas pessoas.
O Presidente da República e os partidos políticos da oposição querem averiguar a verdade, custe o que custar. Ato louvável e encorajador. Mas e depois? A justiça em Portugal é lenta e arcaica. Será que o Ricardo Salgado e os outros implicados vão ser devidamente punidos ou não passará tudo isto de uma farsa para calar os mais reivindicativos? O nosso país é perito em colecionar trafulhas e corruptos. Vale e Azevedo, Isaltino Morais, Fátima Felgueiras, Valentim Loureiro, José Sócrates, Duarte Lima, Armando Vara, Joe Berardo… A lista dos intocáveis é longa e interminável. Esta tradição cultural e histórica vem de longe. Até o Marquês de Pombal, no final do século XVIII, foi ostracizado e acusado de corrupção. Mais tarde, foi perdoado pela rainha D. Maria I por estar senil e doente. Pobres meninos ricos…
Deveríamos seguir o exemplo da Islândia, da Dinamarca e da Finlândia. Estes países não têm medo em colocar atrás das grades figuras públicas sem escrúpulos que roubam descaradamente. Até a vizinha Espanha pôs na prisão o cunhado do rei e não desiste da perseguição cerrada à poderosa família Pujol. As coisas evoluem lentamente no sul da Europa, por medo ou inércia. O mundo dos ricos é perverso e cheira a podre e os mais pequenos não ousam derrubar as leis dos mais fortes.
Até quando seremos o país dos brandos costumes? Terá a justiça a coragem de renunciar, de uma vez por todas, aos termos ‘prisão domiciliária’ e ‘pena suspensa’ nos casos de corrupção e abuso de poder?