Contas públicas em queda livre

Com a pandemia, o défice subiu para 8,3 mil milhões até julho. Analistas contactados pelo SOL não estão surpreendidos com o resultado e alertam para riscos nos próximos meses.

Os efeitos da pandemia continuam a dar sinais de si em termos económicos e os dados não são animadores. A execução orçamental em contabilidade pública das administrações públicas registou, até julho, um défice de 8.332 milhões de euros. Trata-se de um agravamento de 7.853 milhões de euros face ao período homólogo. Números que não surpreendem os analistas contactados pelo SOL, que admitem que «qualquer valor adiantado seria muito falível».

Um comportamento que leva Marco Silva a garantir que «esse é o motivo pelo qual a maioria das empresas a nível global deixou pura e simplesmente de fornecer o habitual ‘outlook’ para o próximo trimestre e semestre». No entender do consultor da ActivTrades, «estamos a falar de um evento disruptivo como nunca ocorreu: os seus efeitos eram imprevisíveis e continuam a ser. A única variável que é, seguramente, uma realidade é a continuação do agravamento do défice nos próximos meses».

Um cenário que, segundo o mesmo responsável, já era expectável desde o início da crise, dado que as medidas impostas iriam resultar numa forte contração da atividade económica e no aumento das despesas com os temas sociais. «O que importa é estar atento ao ritmo do aumento do défice. Será esse indicador que nos dará algumas luzes sobre quando se poderá esperar o estabilizar da situação a nível económico», refere.

Também Henrique Tomé lembra que a pandemia «tem vindo a fazer estragos e é a grande responsável pelo abrandamento da economia», reconhecendo que as consequências negativas em alguns setores «têm sido nefastas para as empresas e os apoios do Estado têm entrado em ação».

 E não têm dúvidas: «Os resultados referentes ao défice orçamental subiu e os analistas já poderiam prever este aumento, tendo em conta que o Estado tem andado cada vez mais participativo – na tentativa de ajudar as empresas e recuperar os danos causados na economia. Desta forma, tem utilizado as receitas para apoiar «as tais ajudas prometidas, acabando esse movimento por aumentar o défice orçamental», refere o analista da XTB ao SOL.

 

O que contribuiu para este agravamento?

O défice foi penalizado pelo efeito combinado de contração da receita (-10,5%) e do crescimento da despesa (5,3%). «A execução evidencia os efeitos da pandemia de covid-19 na economia e nos serviços públicos, também na sequência de adoção de medidas de política de mitigação», explicou o Ministério liderado por João Leão.

A queda da receita fiscal e da contributiva deve-se, segundo o Ministério, à «diminuição acentuada da atividade económica provocada pelo período mais intenso de recolhimento e de utilização do layoff».

Além do impacto da pandemia na diminuição das receitas e no acréscimo das despesas do Estado, em resultado da contração da atividade económica, o Ministério das Finanças lembra que as medidas extraordinárias de política de apoio às famílias e às empresas justificam uma degradação adicional do saldo de pelo menos 2271 milhões de euros.

Mas vamos a números. A quebra de receita (-672 milhões de euros), reflete os impactos da prorrogação das retenções na fonte (IRC e IRS) e pagamento do IVA, bem como da suspensão de execuções da receita – ainda sem quantificação da prorrogação das contribuições para a Segurança Social – e das medidas de isenção ou redução da taxa contributiva.

A receita fiscal caiu 14,6%, com a generalidade dos impostos a evidenciar quebras, em especial a diminuição de 12,8% no IVA e também influenciada pelo impacto no IRC do adiamento do pagamento do primeiro pagamento por conta para agosto de 2020. Já as contribuições para a Segurança Social apresentaram um decréscimo de 2,4%, mantendo a tendência de desaceleração face aos meses pré-covid-19 (até fevereiro, a receita com contribuições crescia 7,4%).

Um resultado que não surpreendeu Marco Silva. «Menor atividade económica resulta imediatamente em menores impostos, nomeadamente no IRS, IRC e especialmente no IVA, não apenas por causa do adiamento dos prazos de pagamento, mas, por exemplo, no caso do IVA, porque está ligado ao consumo. Relembro que durante os meses mais críticos, a poupança das famílias aumentou, um indicador claro de menores gastos, já que os rendimentos não aumentaram».

Uma opinião partilhada por Francisco Alves, para quem «a principal causa da queda da receita foi a diminuição abrupta da atividade económica nos últimos meses. O recolhimento obrigatório e o layoff abrandaram o desenvolvimento económico», admitiu ao SOL o analista da Infinox.

Já as contribuições para a Segurança Social apresentaram um decréscimo de 2,4%, mantendo a tendência de desaceleração face aos meses pré-covid-19 (até fevereiro, a receita com contribuições crescia 7,4%).

Por seu lado, a despesa aumentou (1.599 milhões de euros), principalmente associada às medidas de layoff (752 milhões de euros), aquisição de equipamentos na saúde (304 milhões de euros) e outros apoios suportados pela Segurança Social (342 milhões de euros).

A despesa primária cresceu 6,9%, influenciada pela significativa evolução da despesa da Segurança Social – +12,7%, +1.944 milhões, dos quais cerca de 1094 milhões são associados à covid-19 –, bem como da despesa com pensões (3,6%) e outras prestações sociais, excluindo medidas específicas ligadas à pandemia. É o caso das prestações de desemprego (21,4%), subsídio por doença (16,5%), prestação social para a inclusão dirigida a pessoas com deficiência (26,6%) e abono de família (13,1%).

Para fazer face à pandemia, a despesa do SNS aumentou 6,2%, destacando-se o aumento do investimento (+187,3%) e das despesas com pessoal (+4,7%). Já a despesa com salários dos funcionários públicos cresceu 3,3%, após o reforço de mais 9.673 profissionais na área da saúde, o que representa um crescimento homólogo de 7,4%. O aumento das despesas com pessoal resulta ainda da conclusão do descongelamento das carreiras, destacando-se o aumento de 4,8% da despesa com salários dos professores.

 

E o futuro?

«Já seria de esperar que houvesse um aumento na despesa. Este aumento de 5% nas despesas do Estado têm estado relacionadas com os programas de ajuda e estímulos à economia: o regime layoff suportado pelo Estado e o aumento na contratação de profissionais de no setor da saúde», admite o analista da XTB.

Para o responsável, os próximos meses serão um grande desafio para João Leão, que passa por conseguir gerir da melhor forma a dívida pública. «A política monetária do BCE também será fundamental para que esta gestão da dívida seja gerida da melhor maneira».

Também para Marco Silva é de esperar a continuação do agravamento do défice e da incerteza na retoma da atividade económica. «Os próximos dois meses vão ser o palco onde se irá definir muito do futuro de médio/longo prazo. Refiro-me à avaliação do tecido empresarial que sobreviveu, da necessidade de mais medidas de contenção e da retoma de confiança dos consumidores (esta última variável dependente das duas primeiras). No melhor dos casos, a partir de agora, será uma recuperação lenta mais sustentada; no pior, será o que se designa por um duplo fundo, ou seja, um regresso a uma contração significativa e só depois então a retoma», salienta.

E lembra que João Leão tem pela frente uma tarefa complicada, mas, ao mesmo tempo, representa uma oportunidade única. «Existe o que nunca existiu antes e que é disponibilidade dos parceiros europeus em apoiar de forma mais justa os Estados afetados. No entanto, que acontece nas Finanças é o resultado do que a economia consegue. Importa ter isto em mente e criar as condições para que a economia recupere o mais rapidamente possível. O tempo de meias medidas não é, certamente, o mais apropriado. Mais do que apoiar o desemprego, é fundamental apoiar o emprego e a criação de novo emprego; não estar obcecado com a perda de receitas, mas trabalhar para que a Economia cresça e, com ela, as receitas do Estado – com mais atividade económica e com menos impostos. É investir agora com mais défice para depois ter mais superávit e de forma mais célere».

Mais otimista está Francisco Alves ao considerar que considera que a recuperação da economia portuguesa tem superado algumas expectativas e, por isso, acredita que podemos esperar uma melhoria significativa nos próximos meses. Mas deixa um alerta: «A possibilidade de uma segunda vaga poderá pôr em questão toda a recuperação feita até agora» e caberá ao ministro das Finanças um papel crucial.