Começou na quarta-feira no novo Tribunal de Paris o julgamento aos atentados terroristas de janeiro de 2015, que causaram a morte de 17 pessoas, na capital francesa e nos arredores. Com os perpetradores dos ataques mortos, as 14 pessoas no banco dos réus estão acusadas de vários crimes de cumplicidade e apoio na execução dos atentados. Cinco anos e oito meses depois da manhã em que Chérif e Saïd Kouachi, armados com kalashnikovs, entraram na redacção do Charlie Hebdo e fizeram um banho de sangue, abandonando o edifício minutos depois, começa um julgamento que se reveste de enorme carga simbólica, e que prosseguirá nos próximos dois meses, cercado de um enorme dispositivo de segurança e que, atraindo os meios de comunicação de todo o mundo, se espera que tenha um efeito catártico, sacudindo o estupor daquele que foi o período mais negro da história moderna francesa.
Além das 12 pessoas mortas a sangue frio na redacção do semanário satírico, depois de este ter ousado publicar caricaturas do profeta Maomé, o ataque dos irmãos Kouachi desencadeou devastadoras sequelas, com uma sucessão de atentados jihadistas nos dias e meses seguintes, culminando na noite de 13 de Novembro, em que 131 pessoas foram mortas. Em julho do ano seguinte, um camião em Nice atropelou 86 pessoas no Dia da Bastilha, pondo fim ao ciclo de terror. Desde 2016, não voltaram a ocorrer atentados de grande escala, mas houve alguns sustos, como o tiroteio num mercado de Natal, em Estrasburgo, há dois anos, e a facada a um polícia numa esquadra em Paris, no ano passado.
Logo após o ataque à redacção, todos os meios foram mobilizados e iniciou-se uma das maiores caças ao homem de que há memória em França, com a polícia a identificar os irmãos Kouachi que viriam a morrer dois dias depois numa troca de tiros com os agentes, na zona norte de Paris. Entretanto, um terceiro homem, Amédy Coulibaly, sentiu-se inspirado pelo atentado que depressa cativou a atenção de todo o mundo, e depois de ter morto uma polícia num subúrbio da capital, fechou-se num supermercado kosher, executando quatro reféns antes de ser abatido pela polícia.
Esses três dias traumatizaram França, e logo um intenso debate público se iniciou à volta dos valores seculares, dos hipotéticos limites à liberdade de expressão e da integração da minoria muçulmana no país. Estas tensões, que estão longe de estar resolvidas, tornaram-se centrais à definição da liberdade no seu regime mais insubordinado, e que, para que seja uma regra, e mesmo às vezes uma dura imposição, precisa ser exercida e defendida, especialmente quando assume a vocação vingativa de opor-se a dogmas, de criticar e satirizar preceitos religiososo e até as fundações de uma ou outra fé. No fundo, o ataque ao Charlie Hebdo expôs a verdadeira natureza infame das críticas que são feitas à liberdade de imprensa, e que, mesmo que melhor disfarçadas, não passam da manifestação de uma imoralidade reactiva. Assim, os dias que se seguiram aos ataques, viram milhões de pessoas irem para as ruas de várias cidades do país manifestarem-se contra o extremismo islâmico e defender a liberdade, mesmo quando esta nos pesa e ofende, mesmo quando faz tremer os homens, porque é esse o seu verdadeiro sentido, essa insubordinação que não está dependente, ao contrário do que pretendem tantos líderes religiosos, daquilo que a tolerância autoriza. Sob o slogan #JeSuisCharlie, nesses dias a França voltou a dar um exemplo ao mundo, o de que é preciso defender a liberdade precisamente contra aqueles que a abandonam à primeira contrariedade. E muitas vezes desde então voltou a ser lembrada a grande frase de Voltaire, que dizia estar pronto a bater-se até à morte para garantir a liberdade de manifestar até as opiniões contra as quais ele travava um combate de morte. E se o Charlie Hebdo ganhou o estatuto de bastião da defesa do “direito à blasfémia”, se há dias o próprio presidente Emmanuel Macron insistiu nessa “liberdade de blasfemar” que França reconhece aos seus cidadãos, no mesmo dia em que o julgamento começava, o semanário satírico imprimiu uma edição especial, fazendo questão de republicar na primeira página as caricaturas ao profeta Maomé, essas mesmas que foram usadas como pretexto para o ataque à sua redacção.
No editorial, Laurent Sourisseau (“Riss”), o director do Charlie Hebdo e um dos sobreviventes ao atentado, garantiu que não iriam recuar um milímetro na sua postura de insubordinação, e explicou que se resistiram, ao longo dos últimos cinco anos, a publicar novas caricaturas de Maomé, não foi por receio, mas porque não sentiram “que fizesse sentido e que trouxesse alguma coisa para o debate”. Mas agora, face à abertura do julgamento dos atentados de janeiro de 2015, e honrando a memória da equipa do semanário, que perdeu oito jornalistas, o director da publicação considerou que a republicação das caricaturas era um acto “indispensável”, não apenas pelo seu “valor histórico”, mas também porque constituíam em si mesmo “provas” naquele processo. Já em 2016, na edição que assinalou o primeiro aniversário do atentado, e na qual homenageava os seus colegas, “Riss” assinara uma defesa aguerrida do secularismo, denunciando “os fanáticos brutalizados pelo Corão” e outros, de outras religiões, que teriam celebrado a morte daquele semanário “por ter a coragem de rir das religiões”.
Num sentido não muito diferente, em fevereiro desse ano, na revista “Slate”, Christopher Hitchens, um dos mais belicosos e inspirados polemistas a tomar parte neste debate, alguém que se distinguiu pela exemplar campanha de contra-ataque face à “Kristallnacht” movida contra a Dinamarca, depois dos cartoons de Maomé que foram feitos pelo jornal Jyllands-Posten, e que viriam a ser republicados pelo Charlie Hebdo, veio chamar a atenção para o ridículo de se ter permitido que “uma pequena nação democrática com uma sociedade aberta, um sistema de confessionalismo pluralista, e uma imprensa livre fosse sujeita a uma campanha organizada de mentiras fantásticas e absurdas, de violência e ódio, a qual resultou numa das mais graves violações do direito internacional e de civilidade: a violação da imunidade diplomática.” O jornalista e escritor britânico que morreu em 2011, mostrava-se incrédulo ao constatar que não parecia haver ninguém numa posição de poder que tivesse o discernimento de vir afirmar aquilo que era óbvio e tão necessário: “Que estamos do lado dos dinamarqueses contra a difamação, a extorsão e a sabotagem”. Para Hitchens neste episódio espelhava-se a degenerescência dos valores ocidentais, e a rendição a tácticas terroristas, quando “toda a compaixão e preocupação parece ser gasta com aqueles que acenderam o rastilho de pólvora, e que gritam de exultação quando as embaixadas de países democráticos são incendiadas nas capitais de jactanciosas e miseráveis ditaduras”. Numa das suas impecáveis inflexões sardónicas, Hitchens adiantava que o que se mostra urgente é tomarmos todos os cuidados para não beliscarmos os sentimentos dos vândalos.
Depois de o Papa Francisco ter reagido aos atentados cometidos em nome de Deus, descrevendo-os como “um absurdo”, não deixou, no entanto, de exigir respeitinho na forma como são feitas críticas aos crentes, insistindo que “há limites”, uma vez que “cada religião tem a sua dignidade”. E, no primeiro aniversário dos ataques, coube ao Osservatore Romano, o diário do Vaticano, vir doutrinar o semanário satírico francês, notando que existe na escolha dos seus alvos “um paradoxo triste de um mundo que se mostra cada vez mais sensível ao politicamente correcto, indo quase ao ridículo nisto, mas que, ao mesmo tempo, não quer admitir ou respeitar a fé dos crentes em Deus, independentemente da religião”.
Neste ponto, torna-se crucial desfazer o persistente equívoco de que estes atentados terroristas são cometidos em defesa da dignidade de uma qualquer religião. Na altura dos atentados de janeiro de 2015 os irmãos Kouachi disseram que os tinham feito em nome de um ramo da Al-Qaeda no Iémen, ao passo que Coulibaly jurou aliança ao Estado Islâmico, mas o certo é que, hoje, alguns dos principais analistas do fenómeno do terrorismo internacional, entre eles o filósofo político inglês John Gray e o académico e advogado norte-americano Philip Bobbitt, têm vindo a desmistificar a ideia de que este fenómeno se prenda ainda à ideia da guerra santa ou de uma defesa do Islão, mostrando-se ambos bastante cépticos quanto a uma prática religiosa ou à defesa dos seus valores.
Como nos diz Martin Amis num formidável ensaio que dedicou a este tema em 2008, nas páginas do Wall Street Journal, para pensadores como Gray e Bobbitt grupos extremistas como a Al-Qaeda ou o Estado Islâmico não passam de “epifenómenos”, sintomas ou até “efeitos secundários” do movimento que verdadeiramente aqui está em causa, que é a globalização. Estaríamos, pois, na presença da ovelha negra ou do “filho maldito da globalização, e, de igual modo, de um mímico da modernidade: diluído, descentralizado, privatizado, levado a cabo por terceiros (‘outsourced), e em rede”. De acordo com Bobbitt, a Al-Qaeda não é apenas um reflexo da economia de mercado, mas é ela mesma uma forma de Estado erigido pelo mercado. Assim, o que esta visão nos diz sobre a aparição destes espectros produzidos pelo mercado global é que, na avassaladora operação logística com vista à produção de riqueza, aquilo que a globalização também produz é uma enorme vulnerabilidade, criando um novo espaço, uma nova dimensão que pode ser explorada por oportunistas. O que nos dizem alguns dos principais especialistas no que toca a estes grupos extremistas é que a religião não passa de outro disfarce, mas que aquilo que, na verdade, está por trás das suas actividades, dos seus atentados e campanhas de terror, é um desejo de poder.
Mas então, diz-nos Amis, em face deste novo olhar sobre estas organizações terroristas, é normal que o leitor fique um pouco perplexo e se pergunte para que foi toda essa conversa à volta da jihad, dos infiéis, o Allahu Akbar e as cruzadas e as madrassas, a sharia, o fiqh e o takfir, e ainda as profecias que se lêem nas escrituras e a grande ambição do califado e o paraíso dos mártires. Tudo isso, essas expressões e referências que se despenharam sobre as torres do imaginário popular, foram particularmente úteis para se explorar a narrativa sobre uma outra realidade que teria entrado em choque com a nossa, configurando uma dimensão que se regia por outras leis e princípios, e em que pareciam desenhar-se filas de homens dispostos a fazerem-se explodir em nome das suas crenças religiosas. Amis prefere, no entanto, recorrer ao historiador Eric Hobsbawm, que acreditava que o “colapso pandémico das inibições morais” a que assistimos nos nossos dias se prendem a uma espécie de bestialização promovida pela cultura, e que resulta da perda de sensibilidade face à violência promovida pelos meios de comunicação de massas, desde logo a internet e as redes sociais. Mas Amis vai mais longe, e apoia-se na tese de Bobbitt segundo a qual o terrorismo não diverge da natureza da maioria dos conflitos actuais, e que derivam de uma mudança da orientação política nos regimes Ocidentais. Segundo este autor, à medida que do Estado de bem-estar social se evolui para economias de mercado, com o capitalismo a ditar as regras, constrangendo de tal modo o poder político que os Estados vão abandonando um número cada vez maior de cidadãos à sua sorte, esquivando-se das suas responsabilidades no sentido de promover uma sociedade mais justa por via da redistribuição da riqueza, o foco passa a estar no indivíduo, e na sua capacidade de se valer das oportunidades ao seu dispor para triunfar, não se contentando com o bem-estar mas gozando do tipo de luxos que o alçam à condição de um semi-deus.
Neste ponto, Amis vira-se para o seu herói literário, Saul Bellow, que, no romance “O Planeta do Sr. Sammler”, capturou um dos mais mordazes reflexos dessa década marcada por uma fabulosamente excêntrica deriva narcisista, a década de 1960, e em que o envelhecido protagonista dá por si a considerar que a receita para o individualismo de massas talvez não se tenha revelado um grande sucesso, e como pode mesmo vir a mostrar-se uma receita para o absoluto fracasso. Mas Amis não se fica por aqui, e da estante retira ainda um outro romance, “O Agente Secreto” (1907), de Joseph Conrad, e mostra-nos como este, servindo-se de um inamistoso bando de anarquistas inchados com a superioridade das suas convicções, consegue ser “terrivelmente presciente”. Entre outras coisas, Conrad diz-nos que o simples acto de se erguer um edifício significa pôr de pé uma nova vulnerabilidade, e é também nestas páginas, como refere o penetrante crítico, que damos por um revolucionário que se dá conta de como o poder da vida é bem mais frágil do que o poder da morte. “Na sua leitura da psicologia do terrorista, Conrad vinca insistentemente os atributos da vaidade e da preguiça – i.e., o desejo de alcançar a máxima distinção com o mínimo de esforço. Por outras palavras, a necessidade de causar uma impressão é esmagadora, e uma impressão negativa é muito mais fácil de se provocar do que uma positiva. Na nossa era isto traduz-se por uma desgovernada sede pela fama”, diz-nos Amis, para logo de seguida ressalvar que é provável que ninguém com menos de trinta, isto há mais de uma década, possa ter-se dado conta de como a fama se tornou uma espécie de religião – o novo ópio do povo, ou, nestes dias que correm, o “pó de anjo” numa sociedade que tem de acolher as delirantes noções de felicidade nutridas por estas massas de indivíduos.
Não é por serem reais que estes jovens “radicalizados” que se fazem transportar do universo dos jogos de vídeo para a redacção de um jornal, para uma sala de concertos ou para uma rua movimentada, empunhando kalashnikovs, facas, ou seja que arma for, com esse estado de percepções alteradas por convicções imbecis, e que conseguem cativar a atenção de milhões de pessoas em todo o mundo, não é isso o que faz deles os protagonistas de narrativas ambiciosas e magistrais. É a ansiedade das nossas sociedades que os eleva, a consciência da terrível vulnerabilidade de um modelo de vida insustentável e contra o qual qualquer conspiração de estúpidos se ergue como um inimigo ferocíssimo. De resto, como nos diz Amis, “o terrorismo internacional, por agora, não passa de um tíbio apocalipse”. Citando Bobbitt, o romancista britânico lembra que, desde o 11 de Setembro, “o número total de pessoas que foram mortas por terroristas não anda longe do mesmo número de pessoas que morrem por afogamento nas suas banheiras nos EUA”. Ainda que estes dados tenham de ser revistos para reflectir o reinado de terror do Estado Islâmico na Síria e no Iraque, isto torna claro o motivo porque o terrorismo precisa de toda a ajuda que lhe possam dar na propagação do medo, pois os seus preguiçosos esforços não conseguem por si só criar mais do uma ficção pouco original do medo. Ao invés de um negrume radical, um inimigo que nos apavora porque, estando no meio de nós, se mostra de uma estranheza sufocante, o que Amis nos diz é que tudo não passa de uma forma de oportunismo, uma espécie de pesadelo que nos acomete nalgumas noites por efeito de uma indigestão, a qual reside nos nossos próprios excessos, nesta religião que se alimenta da nossa vaidade e que, do mesmo modo que tem o seu clero regular (as celebridades), não podia deixar de produzir uma nova e degenerada inquisição.